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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

ATELIÊ

 

De bonecas, "figurinhas" do mundo primitivo e a morte

 

Teddy bears, little figures of the primitive world and death

 

 

Rogério Cezar de Cerqueira LeiteI; Helena de Cerqueira Leite PimentelII

IFísico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Campinas / cerqueiraleite@uol.com.br
IIMembro filiado do Instituto "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) - Curitiba / helenacerqueiral@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste trabalho busca-se uma aproximação entre a psicanálise e arqueologia para compreender o fenômeno das "figurinhas" de povos primitivos. Arqueólogos procuram entender as razões para o costume, tão disseminado entre povos pré-colombianos e de diversas outras culturas primitivas, de enterrar os mortos acompanhados de "figurinhas", estatuetas de pequeno porte, em geral representando figuras humanas. Discute-se a função das figurinhas como objetos transicional para criar um espaço de ilusão compartilhada na cultura, que afirma e nega a separação diante da morte.

Palavras-chave: figurinhas, povos primitivos, objetos transicionais, morte


ABSTRACT

This paper relates archeology and psychoanalysis in understanding the phenomena of the little figures found in many primitive cultures. Archeologists search for the use of these figures, small size statuetes, representing mainly human figures, that were buried with the dead, a widely spread habit among pre-Columbian and other primitive cultures. The little figures used as a transitional objects to create a shared illusory space, which both affirms and denies the separation in death is discussed.

Keywords: little figures, primitive cultures, transitional object, death


 

 

Freud tinha uma grande paixão tanto por mitologia como por arqueologia. Ele acompanhava com entusiasmo as descobertas arqueológicas que ocorriam à sua época, especialmente as importantes escavações no Egito (Burke, 1952/2010). Em "Construções em análise", ele usa o trabalho do arqueólogo como modelo para pensar a investigação do inconsciente e o minucioso trabalho de reconstrução feito pelo analista:

assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram em pé, determina o número e as posições das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir de restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. (Freud, 1937/1996a, p. 277)

Ao longo dos anos Freud adquiriu uma coleção bastante significativa de peças arqueológicas, e muitas delas ficavam em exposição na sua sala de consulta, como ainda pode ser visto em sua última residência, hoje o Freud Museum, em Londres. Ele desenvolveu um grande apego às suas peças, chegando a levar consigo algumas delas em suas férias de verão com a família no campo, nos arredores de Viena (Burke, 1952/2010).

Como vemos, a arqueologia foi uma importante fonte de inspiração para o pensamento psicanalítico nos seus primórdios. Neste trabalho, propomos trilhar também no sentido oposto e buscar em conceitos psicanalíticos uma contribuição para a compreensão de um fenômeno recorrente encontrado em achados arqueológicos da América pré-colombiana, as chamadas "figurinhas".

Figurinha é a denominação atribuída a estatuetas de pequeno porte, geralmente em cerâmica, representando seres humanos, e com muito menos frequência animais, encontradas em túmulos e outros espaços erigidos por diversas culturas da América pré-colombiana. Tais estatuetas têm entre 10 e 20 centímetros de altura e são encontradas, por vezes, em quantidades apreciáveis (20 peças não é surpreendente), em túmulos e ruínas de residências.

 

 

Há algum tempo arqueólogos vêm se preocupando com as razões para esse fenômeno tão extenso no tempo e em culturas tão diversas. Alguns atribuem às figurinhas a substituição em sacrifícios humanos. É verdade que existe uma quantidade incomensurável de fragmentos e principalmente de cabeças (cabecitas) separados dos corpos. Todavia, é mais provável que fossem meramente resultado de cerimônias rituais do que substitutas de sacrifícios humanos.

Nesta exposição, ocupamo-nos das "figurinhas tumulares" que foram encontradas inteiriças, ou com danos explicáveis pela demolição dos túmulos e manipulação por terceiros. Uma definição para esses artefatos, provenientes de ruínas de residências, diz: "nossa conclusão é que estas pequenas figuras eram usadas por mulheres em rituais caseiros, com a finalidade de prover acesso aos espíritos de ancestrais recentemente falecidos às vidas de seus descendentes". Ora, essa hipótese não é adequada para figurinhas tumulares, pois se assim fosse então seria de esperar que o objeto que facilita a comunicação ficasse junto ao receptor, como acontece em culturas africanas e tantas outras. Além do mais, para tal função não seria necessário mais que uma figurinha para assegurar a comunicação desejada.

Somos, pois, conduzidos a buscar outra possível função para as figurinhas, inicialmente para aquelas encontradas em túmulos. E a primeira ideia que nos aparece é a boneca, e consequentemente recorremos a Winnicott e seu conceito de objeto transicional.

Note-se que esse fenômeno, o de incluir representações humanas em túmulos, não é peculiar às culturas pré-colombianas. Por exemplo, são inúmeros os casos de túmulos de mandatários chineses que incluem estatuetas de figuras humanas desde a Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), seja em dimensões comparáveis àquelas pré-colombianas, seja em maiores, até a Dinastia Ming (1368-1644).

 

 

Sabemos que diante da morte pode haver uma perturbação do uso de mecanismos de projeção e introjeção, e uma forte identificação com o morto pode ser uma defesa contra a experiência de perda. Freud, em seu trabalho "Luto e melancolia", descreve estados patológicos resultantes da perda de diferenciação entre o eu e o objeto, sobretudo quando o vínculo era muito ambivalente: "a sombra do objeto recai sobre o ego" (1917/1996b).

Para Winnicott, o uso de objetos transicionais pode ter uma função importante no desenvolvimento emocional da criança e especialmente na gradual capacidade de assimilar o impacto das experiências de separação. Ao projetar com sucesso aspectos amorosos da mãe e do eu em um objeto disponível, como um paninho, um bichinho de pelúcia ou uma boneca que ela pode carregar e manter próxima, a criança recupera a sensação de controle, e com isso pode mitigar o medo de perder a mãe ou outra figura de apego e assim sustentar um relativo bem-estar nas ausências periódicas desta ou em momentos como a hora de dormir. Os fenômenos transicionais criam um espaço de ilusão, e seu surgimento no primeiro ano de vida favorece um gradual contato com a realidade. Escreve Winnicott, em O brincar e a realidade: "Reivindico aqui um estado intermediário entre a inabilidade do bebê e sua crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade" (1971/1975, p. 15).

Winnicott ainda reconhece nos fenômenos transicionais os primórdios de toda atividade cultural, religiosa ou artística. Ele também salienta como a aceitação da área de ilusão favorece a formação e coesão de grupos: "Podemos compartilhar do respeito pela experiência ilusória, e, se quisermos, reunir e formar um grupo com base na similaridade de nossas experiências ilusórias. Essa é uma raiz natural do agrupamento entre os seres humanos" (Winnicott, 1971/1975, p. 15).

O costume tão disseminado em diversas culturas primitivas de enterrar os mortos acompanhados de figurinhas talvez tenha um sentido semelhante à concessão dada às crianças de levarem seus ursinhos ou bonecas para a cama. Ao projetar aspectos do eu nas figurinhas, que irão continuar em contato com o corpo do morto, estariam assim os descendentes e amigos negando a difícil realidade da separação diante da morte.

Além disso, se o morto, em fantasia, não ficou isolado e desamparado, ao contrário, levou consigo uma companhia amorosa e devotada, isso facilitaria a reintrojeção e identificação com um objeto mais benigno, favorecendo assim o luto e paradoxalmente a aceitação mais tranquila da morte. Seria sem dúvida bem mais vantajoso carregar, no mundo mental, ancestrais amados e bem cuidados em vez de solitários e entristecidos ou, pior, abandonados, ressentidos e raivosos.

O conceito de figurinhas pré-colombianas como objetos transicionais pode certamente ser estendido àquelas encontradas em ruínas residenciais, pois este é um mecanismo aparentemente habitual.

Goethe disse uma vez que quanto mais extensa a área de aplicação, menor seria a profundidade alcançada. Justamente ele que foi poeta, romancista, ensaísta, filósofo, físico (preocupou-se com a natureza da luz), químico e burocrata. Um "homem do Renascimento", como se dizia antigamente. Todavia, a Revolução Industrial veio a valorizar a tal ponto o profissional especializado que engenheiros, médicos e até advogados, forçados pelo acúmulo do conhecimento e pela exigência da velocidade de respostas, passaram a ser verdadeiros idiot savants, ignorantes em tudo, exceto em uma diminuta área de sua especialização. Passamos assim a desprezar o homem do Renascimento.

Mas eis que, por um paradoxo da ciência moderna, percebemos hoje que qualquer das ciências fundamentais já não progride com a mesma desenvoltura se não se aliar, se fundir, fortemente com outras áreas do conhecimento. As grandes descobertas no campo da ciência exata estão se fazendo hoje em grupos, que exigem a interação entre matemática, biologia, física e química. Até muito recentemente essa competência diversificada era alcançada pela cooperação de especialistas de campos diversos.

Embora algum sucesso tenha sido obtido com essa prática, reconhece-se hoje que é insuficiente. E muitas são as iniciativas de formação de pesquisadores competentes em duas ou três áreas distintas. Freud já mostrou seu interesse em arqueologia. Talvez seja por aí que venhamos a ressuscitar o homem do Renascimento. De todo modo, a psicanálise e a arqueologia têm muito a ganhar de um diálogo para se aproximar dos enigmas e paradoxos de aspectos primitivos do homem.

 

Referências

Burke, J. (2010). Deuses de Freud. Record. (Trabalho original publicado em 1952)        [ Links ]

Freud, S. (1996a). Construções em análise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 275-290). Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1996b). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 245-266). Imago. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Marcus, J. (2009). Rethinking figurines. In C. T. Halperin, K. A. Faust, R. Taube e A. Giguet (Eds.), Mesoamerican figurines (pp. 25-50). University Press of Florida.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

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