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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo July/Dec. 2021

 

NOTAS DO LEITOR

 

Uma odisseia na formação: de volta para casa

 

An odyssey in training: back home

 

 

Marina Gregório Menita

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicóloga graduada pela Universidade Estadual de Maringá - São Paulo / marinamenita@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Crônica escrita por uma analista que é membro filiado na qual se realizam aproximações entre sua experiência na formação psicanalítica e o retorno de Ulisses para casa. Amplia os significados de habitar uma casa, sendo esta a representação da instituição que forma e também a mente formada ao longo do processo. Considera que, ao iniciar uma formação, o analista já percorreu uma trajetória tal qual uma Guerra de Troia dentro de si e em sua clínica, e anseia encontrar sua própria Ítaca, lugar no qual possa aportar.

Palavras-chave: odisseia, casa, travessia, próprio, singular


ABSTRACT

Chronicle written by analyst affiliated member in which approaches her experience in psychoanalytic training and Ulysses's return home. It expands the meanings of to belong a house, which is representation of the institution that forms and also the mind formed throughout the process. Consider that when starting training, the analyst has already followed a trajectory such as a Troia's war within himself and in his clinic, and looking forward to find own Ítaca, a place where rest an land.

Keywords: odyssey, home, crossing, own, singular


 

 

Recentemente rememorei uma fala que ouvi durante a reunião de boas-vindas aos novos membros filiados. O ano era 2015, e ouvi, num tom suave e firme, algo como "espero que a sbpsp seja como uma casa para vocês". Essa ideia me marcou e me emociona até hoje.

Talvez por ser jovem, já que não tinha nem 30 anos quando iniciei minha formação e ainda estava construindo minha casa; talvez por ser do interior e morar sozinha na capital; talvez pela dor de ter uma casa, bem estruturada e cuidada, mas com uma falta sempre presente; talvez pela fome de ter contato com o outro e com o mundo mental que me acompanha desde a infância. Quem somos, nossa história e nossas dores, faz com que determinada ideia nos atravesse de uma forma ou outra. A mim, fez brilhar os olhos.

É uma escolha habitar este espaço, que, como toda casa, tem seus limites, tão necessários às triangulações, odisseias edípicas de todos nós. Cada um tem sua odisseia no processo de vir a ser, repletas de renúncias e implicações.

Em meu primeiro relatório agradeci às duas árvores do meu jardim: minha mãe (in memoriam) e meu pai. Aos jardineiros sempre confiantes nos brotos que estão por vir: minha analista e meu supervisor. E a todos os que regam e nutrem esse jardim: meus pares, amigos e coordenadores. Penso que esses agradecimentos iluminam o que sinto ter feito na primeira etapa da minha formação: um jardim, espaço que inaugura e acompanha a entrada de uma casa.

Mas a continuidade dessa minha odisseia teve uma espécie de pausa nesse jardim. Ainda não sei se para recuperar um tanto do fôlego, se por medo de entrar para as áreas mais íntimas de uma casa. "Sair do portão e entrar para dentro", como se diz. O que é casa, se não um espaço em que podemos ser realmente quem somos? O que é casa, se não um espaço que possui condições de sustentar confrontos e paradoxos, tolerar os crescimentos e passagens? O que é casa, se não um espaço que suporta os abalos do amor e do ódio, as desidealizações e desilusões? O que é casa, se não um lugar que comporta reformas, mas também possui paredes estruturais? A casa aqui é entendida como a instituição que forma e também a mente formada ao longo do processo. Formada, nunca formatada.

Na Odisseia de Homero, acompanhamos o retorno de Ulisses para casa. Imagino que todos os que chegam para uma formação, independentemente da idade, percorreram uma Guerra de Troia dentro de si e de suas clínicas. Nos implicamos na formação com a esperança de, em Ítaca, encontrar uma Penélope a nossa espera, envolta no processo de tecer o tapete durante o dia e o desfiar durante a noite, tornando-o sempre inacabado, em processo. Em outras palavras, esperamos encontrar uma instituição em movimento, em constante devir e aberta para o encontro. Na minha experiência, é essa Ítaca que observo existir.

Cada um tem sua odisseia e suas parcerias ao longo da travessia. Alguns com vínculos extramuros, sócios dos mesmos clubes, outros num percurso mais solitário, que se encontram mais nos mares do que nos ambientes acadêmicos. Para os que navegam de forma mais solitária, talvez, ter a instituição como uma casa a ser cuidada e respeitada é, sim, uma necessidade. Seja como for, ninguém nos tira da tempestade. Estamos a todo momento em nossas travessias para nosso próprio mundo mental, lidando com a ilha das ninfas, que tenta nos prender nas promessas e encantos, nos cantos das sereias que capturam, nos ventos que levam a nau para lugares cada vez mais desconhecidos, chegando, às vezes, à ilha dos lotófagos, lugar onde, ao se comer a flor de lótus, se esquece o passado ou a ilha dos ciclopes, seres de um olho só. Esquecer o passado ou ter um olhar que não vê além são exemplos dos riscos de realizar uma formação fixada em ilhas.

Ao longo desses seis anos, como Ulisses, no percurso da formação, tento (re)tornar um lugar próprio, único e singular. É bom ter, na psicanálise e na vida, um lugar para aportar.

Tal qual Ulisses, contando com a ajuda de Atena para voltar para casa, tornarmo-nos irreconhecíveis em alguns momentos da formação, até que possamos assumir nossas verdadeiras identidades. Ulisses foi revelado por meio de algo que só ele poderia fazer, assim como imagino ser o destino de cada analista em formação: ser alguém que em cada dupla analítica realize um ofício humano, ético e próprio.

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