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Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022

 

CARTA-CONVITE

 

A odisseia: ode ao divino em ti: a travessia do herói entre crença e fé

 

 

Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira ScappaticciI; Celia Blini de LimaII; Edoarda Anna Giuditta ParonII; Evelyn Finguerman PryzantII; Flávio VerdiniII; Maria Aparecida Angélico CabralII; Luis de Paiva SilvaII; Maria Luiza Lana Mattos SalomãoII; Mariana EizirikII; Orlando Hardt JuniorII; Patrícia SchoueriII

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Nas tragédias gregas, como nas Bacantes, podemos pensar que os humanos mostram sinais de sua origem divina exatamente do mesmo modo que os deuses mostravam sinais de origem humana. Cada indivíduo retém um elemento inalienável, parte da própria deidade que reside em si mesmo.

Em O nascimento da tragédia no espírito da música, Nietzsche comenta a respeito de Dionísio e sua interação com Apolo:

Dionísio aparece numa pluralidade de figuras, sob a máscara de um herói combatente e como emaranhado na rede da vontade individual. É assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa precisão e nitidez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa aparição alegórica. (1871, p. 32)

Podemos entender Dionísio, essa divindade como Kaos - e encontrar uma correlação com o conceito de mudança catastrófica e de turbulência emocional de Bion, que, se tolerados, promovem o crescimento. Entrar em contato com nossos aspectos dionisíacos, divinos, pode ser assustador, pelo receio de que o contato com o psíquico, com a alteridade, seja enlouquecedor. Entretanto, aquilo que não está definido pelo establishment é a relação do sujeito com o próprio sujeito, algo que pode ser arrebatador, ou fonte de inspiração para o resto da vida.

A psicologia homérica mostra uma etapa no desenvolvimento humano na qual a distinção entre homem e deus fica indefinida, borrada. O deus finito é uma instituição e uma autoridade superegoica idealizada e fora do sujeito, muitas vezes tranquilizadora, mas que o afasta de sua divindade interior que sempre lhe será desconhecida. Talvez a diferença entre crença e fé resida exatamente nesse aspecto, a crença se ateria a um pressuposto externo, aos pressupostos básicos (Bion, 1961), a uma certeza que inibe a investigação, enquanto a fé é uma abertura para o desconhecido. A esse propósito, citamos um trecho do texto de Meg Williams para o lançamento da Ide, 43(72):

a ênfase na evolução mental como o bem último, substituindo a manutenção de qualquer moralidade fixa ou estabelecida - a busca individual por identidade que acontece por meio de um endoesqueleto orgânico em vez de um exoesqueleto mecânico.

Em 397 Santo Agostinho era bispo, mas estava impedido de ir mais fundo nas consequências de suas próprias ideias, mais profundamente em si mesmo. Foi quando escreveu O testemunho, uma forma íntima de escrita, diferente dos sermões. A escrita ocorreu como uma explosão acompanhada do lançar-se para fora de seu passado, em uma ascensão neoplatônica para o divino. Houve uma implosão de sua mente, movimento para dentro de si, como o local onde Deus poderia ser encontrado. Ele era eco de Deus, este estava oculto em suas áreas mais vastas e sentia que estava se abrindo por dentro: "você estava dentro de mim, eu, fora de mim". Deus estava "mais profundamente em mim do que eu mesmo". Portanto, com a coragem de um explorador Santo Agostinho mergulhou em si mesmo...

Shakespeare (1599), em sua peça Henrique V, reconheceu a dificuldade de transmitir a Guerra dos Cem Anos, algo épico e multidimensional, num pequeno palco elisabetano que possui apenas uma plataforma alta móvel, que atribui plasticidade a toda a narrativa, o topos para a narrativa e recurso cênico. O autor, portanto, faz que o coro evoque as Musas pedindo aos expectadores que utilizem sua imaginação, as suas conjecturas imaginativas, para suprir as deficiências de ordem material na transmissão do imaterial.

Exortamos, portanto, os nossos caros leitores: imaginem!

Afinal, todos nós, os perecíveis (Neruda), nós, os envolvidos com a psicanálise, precisamos da imaginação para suprir as brechas de nossa míope percepção diante do contato contemporâneo com o divino. Essa é a descrição de nossa batalha cotidiana.

Freud deu enorme importância ao negativo, lembremos aqui o pequeno trecho de uma carta que ele enviou a Lou-Andreas Salomé, em 25/5/1916, na qual o mestre de Viena afirma saber que, para escrever "tenho de cegar-me artificialmente a fim de focalizar a luz sobre um ponto escuro, renunciando à coesão, à harmonia, à retórica" (Freud, 1916/1974, p. 65).

Bion, logo no prefácio de seu livro autobiográfico, The long weekend, inaugura sua escrita e sua busca expondo o vínculo de fé. Mostra o brasão da sua família - e da cidade de Edimburgo - em que está inscrito Nisi dominus frustra, do Salmo 127.i:

Se o Senhor não constrói a casa,
Os construtores trabalham em vão;
Se o senhor não cuida da cidade,
De nada adianta a vigília dos guardas.
(Bíblia, p. 432)

Jeová é um modo articulado de falar a respeito de uma força, um poder que o discurso articulado não consegue descrever totalmente. O vínculo de fé (faith link, nos termos de Bion, 1970), na terminologia platônico-religiosa, é a união com O, ou at-one-ment. Ao enfatizar nossa constante oscilação entre a mãe finita e infinita, entre a realidade intrapsíquica e interpessoal, Bion comenta: "o que deve ser buscado é uma atividade que represente a ambos: a restauração do Deus (a mãe) e a evolução de Deus (o informe, o infinito, indescritível, inexistente)" (1970, p. 134).

Posteriormente a questão da fé foi expandida por Meltzer (1996), Eigen (1981), Kristeva (1987), Coltran (1986), Neri (2005), Williams (1997), Vermote (2011). Meg Williams define a fé como o meio pelo qual "determinado infante - o protagonista da sessão analítica - encontra o infinito, ou seja, suas potencialidades descontroladas e desconhecidas do seu desenvolvimento psíquico". Assim, o analisando, em última instância, precisa se identificar com a evolução da infinitude em si mesmo, como uma pessoa, e não com o pai, ou o analista.

Kierkegaard concebe a fé como viabilizadora de uma síntese de finito e infinito, define a base de um movimento de fé como "o agente da infinitização", pois "na paixão o sujeito existente é infinitizado na eternidade da imaginação e definitivamente, ainda assim, é também ele mesmo" (1985, p. 71).

Blake em Proverbs of hell ilustra essa sucessão poeticamente: "what is now proved was once only imagin'd" ("o que hoje é provado, um dia foi somente imaginado", 1790/2008, p. 30).

A ideia platônica de psicanálise surge como um pensamento implícito que urge por manifestação no encontro de uma forma ou à procura de um espaço "cintilando de sentido" (Meltzer) na tensão entre os opostos, ou ainda, nas palavras de Bion: que tipo de artistas podemos ser?

as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura, e, com menos frequência, a pintura. Isso me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito... Uma inclinação racionalista ou talvez analítica resista em mim contra o fato de comover-me sem saber por que me comovo e o que é que me comove (Freud, 1914/1974, p. 103).

 

Referências

Bion, W. R. (1961). Experiências em grupo. Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1970). Atenção e interpretação. Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1974). O Moisés de Michelângelo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completes de Sigmund Freud (Vol. 13). Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1985). Carta de 25/05/1916. In E. Pfeiffer (Ed.), Sigmund Freud and Lou Andreas-Salomé, Letters. Norton.         [ Links ]

Kierkegaard, S. A. (1985). Fear and trembling. Penguin.         [ Links ]

Nietzsche (1999). O nascimento da tragédia no espírito da música. In J. Florido (Ed.), Os pensadores. Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 1871)        [ Links ]

Santo Agostinho (1999). O testemunho. In J. Florido (Ed.), Os pensadores. Nova Cultural. (Trabalho original publicado em 397)        [ Links ]

 

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