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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022

 

ODE AO DIVINO EM TI: A TRAVESSIA DO HERÓI ENTRE CRENÇA E FÉ

 

 

Homero, Freud, Greenaway: escrita, memória, escritura psíquica

 

Homer, Freud, Greenaway: writing, memory, writing scenes

 

 

Eunice Nishikawa

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / eu.nishi@uol.com.br

 

 


RESUMO

Com base no livro A farmácia de Platão (Derrida, 2005) no qual o autor retoma o mito egípcio da escrita oferecida como phármakon para a memória, encontramos os fios da urdidura para tecermos considerações sobre a escrita desde Homero na Odisseia, Freud na criação da psicanálise e no filme de The pillow book (Greenaway, 1996) e pensarmos o psíquico como escritura.

Palavras-chave: Homero, Greenaway, escrita, memória, escritura psíquica


ABSTRACT

Based on the book Plato's Pharmacy (Derrida, 2005) in which the author takes up the Egyptian myth of writing offered as a phármakon for memory, we find there the warp threads for weaving considerations about writing since Ulysses in the Odyssey, Freud in the creation of psychoanalysis and in the film The pillow book (Greenaway, 1996) and think of the psychic as writing.

Keywords: Homero, Greenaway, writing, memory, psychic writing


 

 

Já dissemos, excetuando-se muito pouco, tudo o que queríamos dizer. Nosso léxico, em todo caso, não está longe de se esgotar. Excetuando esse suplemento, nossas questões nomeiam apenas a textura do texto, a leitura e a escritura, a mestria e o jogo; do mesmo modo os paradoxos da suplementaridade e as relações gráficas do vivo e do morto: no textual, no têxtil e no histológico. Nós nos manteremos nos limites desse tecido: entre a metáfora do istos e a questão sobre o istos da metáfora.
(DERRIDA, 2005)

 

Istos e Ulisses

Encontramos o que istos significa em nota do autor da epígrafe acima, sem que ele cite a fonte:

Istos, ou, propried. objeto erguido, de onde: i mastro de navio. ii rolo vertical entre os antigos, não horizontal como entre nós (salvo nos Gobelins e nas manufaturas da Índia), de onde partem os fios da urdidura sobre o tear de tecelão, de onde: 1. tear de tecelão; 2 segue-se, a urdidura fixada sobre o tear de onde a trama; 3. tecido, pano, pedaço de pano; 4. p. anal. teia de aranha; ou alvéolo de abelha. III vara, bastão. IV p. anal. osso de perna. (Derrida, 2005, p. 10)

Não teríamos seguido essa indicação de uma nota sem uma referência de origem, se não se tratasse de um texto tão interessante como esse de Derrida (2005), A farmácia de Platão. No livro Derrida retoma o diálogo Fedro de Platão no qual Sócrates discorre sobre o mito de Theut, deus egípcio que oferece ao rei o grande Amón um novo phármakon: a escrita para fortalecer a memória (Platão, s/d, p. 178). Tomaremos essa reflexão de Derrida para introduzirmos aquela que foi uma das primeiras narrativas da nossa cultura ocidental, a Odisseia de Homero, um legado que não sabemos ao certo se foi um texto escrito por um único autor ou se tratou de uma tradição da poesia oral posteriormente compilada (Knox, 2019, p. 11).

De qualquer maneira, odisseia no sentido comum refere-se a uma longa viagem marcada por aventuras, eventos imprevistos e singulares. Mas, Odisseia de Homero é a narrativa épica do Odisseu, Ulisses, rei de Ítaca, na sua volta para casa após a guerra de Troia. Penélope sua mulher o aguarda apesar dos vários pretendentes que desejam ocupar o trono vago de Ulisses. Ela os entretém ardilosamente enquanto tece durante o dia a mortalha destinada a Laertes, seu sogro, para desfazê-la durante a noite. Não é uma mulher qualquer. E Telêmaco, filho deles, deixado por Ulisses criança, cresce e é ele que, já adolescente, na telemaquia inicia a narrativa na busca de seu pai. O famoso Ulisses, de mil ardis, ou o astucioso Ulisses é um homem de muitos estratagemas. "Ulisses possui o talento necessário ao enganador: é um orador persuasivo" (Knox, 2019, p. 56) e será com essa fama que transmitirá o maior escrito da nossa tradição ocidental. Foi ele que, na guerra de Troia, engendrou o tão conhecido cavalo de madeira que, ao ser levado para dentro daquela cidade indefensável até então, permitiu a vitória dos gregos. Estes aproveitaram a curiosidade vaidosa dos troianos que abriram a guarda da sua cidade e foram ludibriados ao aceitar o presente oferecido. Na calada da noite os gregos dentro da cidade murada puderam descer do cavalo e tomar Troia de assalto. Esse seria o epílogo da famosa guerra de Troia.

O curioso é que o episódio mais famoso dessa guerra não está escrito na Ilíada. Temos apenas uma menção ao cavalo de Troia na Odisseia, cantado pelo aedo na cidade dos Feáceos na presença de Ulisses, ainda a caminho de Ítaca, já que tal feito tinha alcançado outras terras no longo tempo que durou a volta do herói grego (Homero, 9 e 7 a.C/2019, pp. 253-254, Canto viii, 490-520). Porém o episódio completo será contado com todos os detalhes apenas na Eneida, de Virgílio, no canto ii (Virgílio, 19 a.C./2020, pp. 132-189), cerca de oito séculos após a Ilíada.

Mas retomemos: a proposta da Ide não é a guerra, mas a volta e a grande jornada de Ulisses no seu retorno para Ítaca.

Começamos com o istos. O que essa palavra significou para nós? O dicionário nos informou que, em primeiro lugar, designa o mastro de navio, a estrutura vertical que sai da proa em sentido longitudinal, dando sustentação às velas, fazendo-nos então associar com as embarcações de Ulisses no seu longo trajeto pelo mar. O segundo significado, o rolo vertical de onde partem os fios da urdidura do tear nos levou a rememorar Penélope tecendo a mortalha de Laertes. Derrida não faz essa correlação, mas acreditamos que também não deixa de fazer - os fios não estão ali ao acaso. A nossa surpresa foi descobrir uma correspondência entre essas duas imagens: a do mastro e a do tear. A construção dessa narrativa que perdura por séculos tem nessa relação sua principal sustentação. No meio dessa tessitura, Telêmaco, o filho, fruto desse casal. E, mais além desse filho natural, conjecturamos a criação da escritura dessa narrativa, em um pergaminho (uma pele) o tecido tramado pela ardilosa dupla Ulisses e Penélope. Os outros personagens gregos podem ser mais poderosos como Agamemnon e Clitemnestra, mas eles sucumbem aos próprios atos (Agamemnon orgulhoso da vitória no seu retorno ao lar é assassinado por Clitemnestra e seu amante, Egisto) enquanto Ulisses e Penélope criam ardis, mentiras, entre si, para não se deixar enganar, fazendo da chegada de Ulisses à Ítaca uma nova "odisseia".

Retomemos Platão: seria a escrita de fato um phármakon, um remédio para a memória? Theuth apresenta um phámakon ao rei e deus Amon-Ra, deus Sol, que deverá julgar o valor dessa arte oferecida a ele. Eis a resposta ensolarada do rei:

Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas uma recordação. Transmitistes aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em consequência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios. (Platão, s/d, p. 179)

Sábias palavras do Deus Amon. E tão atual, pensando agora na nossa memória digital que carregamos no celular, computador, ebook etc. Ele reconduz a ambiguidade da palavra phármakon e acusa a ingenuidade ou artimanha de Theuth de fazer passar um veneno por remédio. E aqui a mesma suspeita em relação a Ulisses - o duplo de Homero? Ele engana pelo seu discurso persuasivo, mas está sempre prestes a se perder, esquecer e ser esquecido. E mesmo a tessitura de Penélope que de dia tece e à noite desfaz. Não será esse o trabalho do grande leitor aquele que também escreve para conseguir ler? Eis aqui a artimanha de Derrida:

Se há uma unidade da leitura e da escritura, como hoje se pensa facilmente, se a leitura é escritura, esta unidade não designa nem a confusão indiferenciada nem a identidade de todo repouso: o é que une a leitura à escritura deve descosê-las. (Derrida, 2005, p. 7)

O nosso trabalho será como o de Ulisses e Penélope, do escritor e do leitor, de tecer, desfazer e refazer toda escrita significativa nesta nossa odisseia.

Mas vamos além com Derrida: as marcas da escritura (túpoi) não se inscrevem na cera da alma, elas vêm de fora, elas são exteriores ou estrangeiras e em sua essência marcas mortas. Você pode até esquecê-las que elas continuarão lá, exteriores. E o autor se indaga: "Será que se pode dizer ... que os túpoi são os representantes, os suplentes físicos do psíquico ausente?" (p. 52). Em sendo estrangeiras, a escritura aparece à Platão como essa sedução fatal, uma simples repetição, um veneno debilitante da memória (p. 57). E nesse ponto fazemos a correlação com o cavalo de Troia, engendrado por Ulisses, de mil ardis, que com sua sedução fatal toma de surpresa a cidade adormecida (dominada por Lethe, o rio do esquecimento) de Troia. Não teríamos um paralelo desse cavalo com o pharmákon da escritura, como já nos alerta Homero fazendo de Ulisses o seu grande herói, como esse suplemento (um túpoi) perigoso "que entra por arrombamento exatamente naquilo que gostaria de não precisar dele que, ao mesmo tempo, se deixa romper, violentar, preencher substituir..." (Derrida, 2005, p. 57)? Enfim, seria a escrita um presente de gregos?

É ainda com essa indagação que os escritos homéricos têm atravessado séculos, assim como os escritos de Platão, Virgílio, Shakespeare, Goethe, Milton e outros lembrados pelos editores da Ide, na proposta para este número. E agora retomando o diálogo de Fedro, temos uma fala de Sócrates que considera que, "aquele que conhece o justo, o bom e o verdadeiro não irá escrever na água" (Platão, p. 180) ao que ele acrescenta no seu diálogo:

Sócrates: Mas acho muito mais bela a discussão dessas coisas quando alguém semeia palavras de acordo com a arte dialética, depois de ter encontrado uma alma digna para recebê-las; quando esse alguém planta discursos que são frutos da razão, que são capazes de defender por si mesmos e ao seu cultivador, discursos que não são estéreis mas que contêm dentro de si sementes que produzem outras sementes em outras almas, permitindo assim que elas se tornem imortais. Aos que levam consigo, tais sementes proporcionam a maior felicidade que é dado ao homem possuir. (Platão s/d, p. 181)

No final do diálogo um elogio à escrita, aos escritores que deixaram as suas sementes; a maioria deles seguindo caminhos tortuosos, errantes perfazendo uma verdadeira odisseia pessoal na busca do que Sócrates escreve como sendo o justo, o bom, o verdadeiro e acrescentamos na busca das marcas da escritura que se inscrevem na cera da alma.

 

A odisseia de Freud e a psicanálise

Freud estava com 40 anos quando morre seu pai, em 23 de outubro de 1896. Segundo Anzieu "O luto suscita em Freud um intenso trabalho psíquico" (1989, p. 83). Sabemos que por essa ocasião, Freud já tinha se dedicado a pesquisas neurofisiológicas, zoológicas (ele fora designado aos 20 anos para descobrir o sexo das enguias em Trieste por indicação do seu professor Karl Klauss), tinha ido para Paris onde fizera um estágio com Charcot na Salpetrière (1885), tinha publicado o livro sobre Afasia (1891) e enviara a Fliess o seu Projeto para uma psicologia científica para neurólogos (1895). Mas a morte do pai será um ponto de inflexão tanto na sua vida interior como em sua obra. Sabemos o quanto os escritores acompanharam todas as inquietações do nosso autor; segundo Anzieu, a referência goetheana é uma constante em Freud, assim como será importante acompanhá-lo como Eneas nos escritos de Virgílio na sua descida aos Infernos (p. 85). Vamos encontrar também referência em "A interpretação de sonhos" da descida aos infernos de Ulisses na Odisseia, que vale a pena citar aqui, pois iremos voltar a esse episódio mais adiante. Na nota de rodapé - quando Freud nos apresenta aos desejos inconscientes reativados no sonho, que seriam desejos sempre em estado de alerta - ele nos lembra:

Eles partilham este caráter de indestrutibilidade com todos os outros atos mentais que são verdadeiramente inconscientes, isto é, que pertencem apenas ao sistema Inc. São caminhos que foram formados de uma vez por todas, que nunca caem em desuso e que, sempre que uma excitação inconsciente os recatexia, estão prontos a conduzir o processo excitatório à descarga. Se posso utilizar um símile, eles só são capazes de aniquilamento no mesmo sentido que os fantasmas do mundo inferior da Odisseia - fantasmas que despertavam para uma nova vida assim que provavam sangue. (Freud, 1900/1972, p. 589)

Freud com sua obra também nos convida à descida aos Infernos do Inconsciente e Anzieu escreve sobre esse momento específico de Freud: "A lição é clara: ninguém pode descer aos infernos interiores sem 'mexer' com forças obscuras. É com estes riscos e perigos que Freud começa sua autoanálise, propriamente dita" (Anzieu 1986, p. 86).

Outro ponto de mudança é o abandono do embasamento neurofisiológico desde o seu livro Sobre a concepção da afasia, em que ele concebe um aparelho da linguagem e o Projeto para uma psicologia científica com os neurônios Φ, Ψ, ⍵, escritos esses que têm se mostrado, ao serem revisitados, sólidos alicerces em que a psicanálise se assentará. Mas a construção do aparelho psíquico será formulada de maneira cabal apenas em "A interpretação de sonhos" (1900/1972).

Anzieu pontua outra influência no pensamento de Freud nesse período, que são as escavações arqueológicas e como para ele, na análise dos seus sonhos, a figuração do sonho começa a ganhar importância. Junto com o tema da figuração, o analista francês nos lembra o "duplo trilinguismo de Freud: latim-grego-hebreu, para as línguas 'mortas', inglês-espanhol, francês para línguas estrangeiras" (Anzieu 1986, p. 109) e, posteriormente, o italiano. Esse trilinguismo permitirá a Freud uma apreensão especial para a descoberta de Champollion quanto aos hieróglifos, inscritos na pedra de Roseta: uma inscrição trilíngue (egípcio sacro, demótico ou egípcio popular, grego). Anzieu considera que essa descoberta de Champollion forneceu "inconscientemente a Freud um fio condutor" (1986, p. 110) Do mesmo modo que o sistema hieroglífico tem três categorias diferentes: pictográficos, ideogramáticos e fonéticos, Freud concebeu um aparelho psíquico composto de três sistemas: consciente, pré-consciente, inconsciente.

Outro passo é apontado por Derrida (2009, p. 303) na famosa carta 52 (6/12/1896), considerando que nela se evidencia a passagem do neurológico para o psíquico. No centro dessa carta está o termo Wz [Wahrnehmungszeichen] - indicação de percepção (Freud, 1977/1896, p. 318) ou signo (zeichen) de percepção, que seria a primeira inscrição de memória, completamente incapaz de ter acesso à consciência, já que consciência e memória se excluem mutuamente; a inconsciência seria a segunda inscrição que constituirá os traços de memória inconscientes e a pré-consciência seria a terceira inscrição ligada às representações verbais, correspondendo ao nosso eu oficial. Ele considera ser esse o momento em que o aparelho psíquico começa a se configurar como uma escritura.

Mas é "a partir da Traumdeutung (1900), a metáfora da escritura vai apoderar-se ao mesmo tempo do problema do aparelho psíquico, na sua estrutura, e do problema do texto psíquico, na sua textura"1 (Derrida, 2009, p. 304). E, na mesma linha de Anzieu, ele considera que Freud irá se apoiar nos hieróglifos para conceber a construção dos sonhos com seus mecanismos de condensação e deslocamento, um pouco como uma palavra escrita (como hieróglifo), mas não redutível à palavra. Encontro no próprio Freud a seguinte afirmação:

O conteúdo onírico, é expresso, por assim dizer, num roteiro pictográfico, cujos caracteres têm que ser transpostos individualmente para a linguagem dos pensamentos oníricos. ... As palavras que juntamos dessa forma não deixam mais de fazer sentido, mas podem formar uma frase poética da maior beleza e significado. Um sonho é um enigma de figuras... (Freud, 1900/1972, p. 296)

E Derrida lembra que Freud defende a ideia de que não existe uma chave única para se interpretar o sonho e, então, recorre à escrita chinesa que como ideograma/pictograma precisa ser contextualizada para se apreender o seu significado (Derrida, 2009, p. 308).

Para Derrida será apenas com "Uma nota sobre o 'bloco mágico'" (Freud, 1976/1925) que Freud irá completar sua metáfora do aparelho psíquico como escritura. E é com essa metáfora da escritura na cena psíquica freudiana e o texto psíquico na sua textura como a tessitura de Ulisses e Penélope, que entramos na odisseia de Nagiko personagem do filme de Peter Greenaway, The pillow book.

 

The pillow book: de Sei Shonagon a Peter Greenaway

Peter Greenaway em seu filme de 1996, The pillow book, se inspirou no livro Makura no Sôshi de uma escritora japonesa do século X, Sei Shônagon, que foi traduzido para o português como O livro do travesseiro (Shônagon, 2013). O filme de Greenaway por sua vez foi traduzido como O livro de cabeceira, que não corresponde bem ao título original inglês e nem ao japonês, pois a palavra makura significa travesseiro.

Há controvérsias quanto à origem desse título Makura no Sôshi, mas o mais aceito é o episódio contado pela própria Sei Shônagon, ocorrido na corte japonesa quando o casal imperial recebe de presente pacotes dos preciosos papeis, objeto raro na época. O Imperador imediatamente ordena aos seus subalternos a cópia do Shiki - a história da China escrita em 91 a.C. A Consorte Imperial por sua vez indaga às suas damas o que elas poderiam fazer com esse objeto precioso. A resposta vem de Sei, que sugeriu: "Talvez, nestas folhas, pudéssemos escrever um 'Travesseiro'..." (Shônagon, 2013, p. 533) o que foi imediatamente aceito pela Consorte.

A curiosidade em relação à escolha desse nome é que o termo Shiki em japonês teria dois significados: o de Registros Históricos e também o ato de estender ou forrar, o que remete à roupa de cama, o colocar "um sobre o outro". Isso teria despertado em Sei Shonagon a associação com a palavra travesseiro. Esse episódio nos interessou, pois no ideograma oriental ocorre a junção da imagem e som que necessita ser contextualizada, pois uma mesma palavra falada (som) ao ser escrita de forma diferente (imagem) ganha outros significados. Isso é o que Freud se refere aos sonhos como ideogramas, como rebus, como imagem que precisa ser contextualizada.

Além disso, nos chamou atenção essa proposta do cineasta inglês, por trazer no seu filme do século xx, uma escritora japonesa - do século X, portanto, 1000 anos depois, através da personagem Nagiko, uma menina que ganha ao nascer o mesmo nome da escritora japonesa. Há no filme uma constante sobreposição de épocas como a memória que "se desdobra em vários tempos" (Freud, 1896/1977, p. 317). Para isso o diretor utiliza-se da "caixa de pintura eletrônica" que permite o fracionamento das imagens, criando vários quadros dentro de uma mesma cena, permitindo a simultaneidade de situações e sobreposição de acontecimentos de tempos diferentes, como ocorre nas cenas oníricas.

O mais surpreendente, no entanto, é que Peter Greenaway, como diretor-roteirista-escritor escreve treze poemas em inglês que foram traduzidos para o japonês, em escrita ideogramática que no filme serão caligrafados sobre a pele de 13 diferentes homens, nas diversas partes do corpo, como se fossem as folhas de papel criando o chamado livrocorpo (Rafaelli, 2005). Essa escritura sobre o corpo nos posiciona frente à Odisseia de Nagiko no filme de Greenaway.

Serão várias as cenas impactantes que nos remetem às inscrições originárias.

Peter Greenaway inicia seu filme com imagens em preto e branco. Ao som gutural de um mantra oriental, uma menina japonesa de 4 anos, tem as bochechas, a testa e os lábios pintados com pincel pelo pai com ideogramas japoneses, em uma espécie de ritual que se repete a cada aniversário da criança. O pai escreve e declama: "Quando Deus fez o primeiro modelo em barro de um ser humano, ele pintou os olhos, os lábios ... e o sexo". Ao som dessa última palavra, ele passa o dedo no pincel, retira dali tinta e marca com o dedo os lábios da criança. Continua: "Depois, ele pintou o nome de cada pessoa... para que o dono jamais o esquecesse". O pai olha para esse rosto, beija a criança com carinho enquanto as tias colocam ao fundo uma música alegre infantil, a criança é mostrada no espelho e a sua imagem refletida ganha cor. Ao redor do espelho é escrito: "Nagiko Kiyohara no Motosuke Sei Shonagon". A essa criança é dado o nome da escritora japonesa do século x. Em seguida, as tias viram a criança de costas para que seu pai escreva na região da nuca: "Se Deus aprovou sua criação, Ele trouxe vida ao modelo de barro pintado, assinando Seu próprio nome".

Esta cena é abruptamente cortada, a música torna-se incisiva e o cenário agora é ultramoderno com arranha céus, evidenciando o mundo ocidentalizado; um pequeno quadro no canto da tela ganha espaço e apresenta o mundo fashion, com modelos desfilando ao som de música eletrônica; sobrepondo a essa imagem, trechos do livro de Sei Shonagon, são lidos em japonês, aparecendo em quadros simultâneos: imagens do mundo fashion moderno com seu som e imagens de trajes da tradição japonesa como escritos no livro do século x, dando a impressão de um palimpsesto. O diretor retoma a cena no quarto da criança com seu rosto caligrafado e a tia pega o livro de Sei Shônagon, dizendo à menina que ela tem o mesmo nome dessa autora e que, quando tiver 28 anos, o livro terá feito 1000 anos e ela poderá escrever o seu próprio diário. Enquanto a tia lê trechos do livro, de novo ao som do mantra solene japonês, a criança abre uma porta e assiste ao pai sendo sodomizado pelo editor. Essa visão se alterna com imagens suscitadas pela leitura do livro. Nagiko, a menina-personagem se expressa: "No meu aniversário de 4 anos, minha tia leu Sei Shônagon, eu vi meu pai e seu editor juntos pela primeira vez. Mas certamente, uma clara noção do que testemunhei eu só teria ao ficar mais velha".

É uma introdução e tanto. Retomemos a cena do pai escrevendo no rosto da menina um ritual de aniversário que nos remeteu às primeiras inscrições psíquicas marcadas no corpo, como signos de percepção, o Wz [Wahrnehmungszeichen], de Freud, ou o início do aparelho mental como escritura conforme proposto por Derrida. O curioso é que do corpo são nomeados os olhos, os lábios e nesses mesmos lábios o sexo é marcado. A boca local de primeiro contato com o mundo (Aulagnier, 1979, p. 40) será o emissor da fala, da linguagem, da comunicação; o que torna o sexo, como Sexual (Laplanche, 2015), algo essencialmente humano. Segundo Laplanche é no encontro originário do adulto e o infans, a situação antropológica fundamental, que o inconsciente sexual do adulto seria reativado, inscrevendo no infans uma mensagem ainda não compreendida por este, mas que seria "mantida sob a camada fina da consciência ou "sob a pele". (Laplanche, 2015, p. 195)

 

 

O corte da cena de um mundo infantil originário, oriental, para o cenário moderno e ocidental, produz um atordoamento no espectador, que acompanha a reviravolta na cena seguinte, no momento traumático em que Nagiko criança assiste o pai sendo sodomizado pelo editor. Será essa segunda inscrição que deverá ser retomada junto com a primeira, a posteriori, como o flash do mundo fashion que antecipa a personagem Nagiko já adulta. Além do mais, o tema da escrita e da escritura se faz mais do que presente no filme. O pai, um escritor, que de forma solene junto com as tias dá o nome da escritora do século x para sua filha, na expectativa de que ela também se torne escritora, se submete ao editor que dirá se sua obra será ou não publicada, um elemento perverso que invade a cena originária. Essa configuração nos fez rever o mito de Theuth que oferece ao deus Amon o pharmakón para a memória. Derrida vê em Amon aquele que dará o valor, fixará o preço àquele remédio, a escrita - e em Platão, o rei egípcio rejeita, desconsidera o phármakon que foi apresentado (2005, p. 22). Será esse também o papel do editor. A escrita está duplamente ameaçada: de um lado pode ser um cavalo de Troia que invade o mercado dos livros como produto de consumo segundo escolha do editor na busca do lucro, e de outro a escrita como semente pode não encontrar condições propícias para cumprir a função de phármakon da memória, por não ter os nomes e a autoria preservados. Lembramos que no ritual de origem, o nome (do ser/a criança) é escrito e depois é assinado o nome de Deus para não serem esquecidos.

Será com essa dupla ameaça que Nagiko foge da sua terra natal, após o rompimento do seu casamento com o sobrinho do editor em busca de si mesma, de sua identidade como escritora, mas carregando consigo a inscrição original dos ideogramas escritos pelo pai. Ela pede então que homens escrevam sobre sua pele em troca de sexo. Ao mesmo tempo, se envolve no mundo fashion, dos tecidos, dos lugares de encontros, na busca da tessitura mental quando conhece Jerome, inglês, tradutor de várias línguas, que sugere que ela inverta a posição, que em lugar de ter o seu corpo escrito, que ela escreva nele, Jerome. Mas é apenas quando descobre que Jerome também é amante do mesmo editor do seu pai, é que ela se interessa pelo rapaz. A relação Nagiko-Jerome torna-se um verdadeiro encontro, e é Jerome-tradutor quem irá resgatar o ritual de origem ao escrever no rosto de Nagiko as marcas deixadas pelo pai. Lembramos novamente Freud, que escreve na carta 52 que na fronteira entre duas épocas as marcas mnêmicas sofrem um rearranjo, havendo "uma tradução do material psíquico" (Freud, 1896/1977, p. 319). É dessa união que nascerá o livrocorpo sendo o corpo de Jerome o livro em que Nagiko escreve o primeiro poema de Greenaway,

O editor ao entrar em contato com o LivroJerome, se excita fortemente: pelo inusitado da cena, pelo conteúdo ali presente e, finalmente, pela sua sexualidade. Toma posse do livro e do amante, o que deixará Nagiko transtornada mais uma vez. Mas ela não abandona seu projeto, mandando para o editor os livrocorpos até o de número cinco.

Jerome percebe que o editor não está interessado nele, mas nos livros, e busca Nagiko que machucada não o recebe. Greenaway cria uma cena shakespeareana dentro do filme remetendo a Romeu e Julieta, Jerome como Romeu toma "veneno" com o intuito de chamar a atenção de sua Julieta/Nagiko e, como na peça, a encenação leva a uma fatalidade. Diante da morte de Jerome, Nagiko escreve na pele já sem vida o seu sexto livrocorpo que será chamado O amante e o enterra num ritual fúnebre. Fica profundamente tocada com essa perda, este é outro momento de ruptura na sua vida e resolve retornar ao seu local de origem, em um movimento de recolhimento e introspecção, lembrando o retorno de Ulisses à Ítaca.

O editor por sua vez, ao saber da morte de Jerome e do livro escrito sobre sua pele, faz com que o corpo seja exumado. A pele com os escritos é cuidadosamente dissecada, tratada como pergaminho, para a confecção do livro em cenas precisas e estéticas. Em vez do luto, o editor se apossa da pele-livro do seu amante, outro destino pervertido da escrita.

Com a morte de Jerome entendemos que Nagiko, em sua epopeia, como Ulisses na Odisseia de Homero (9 e 7 a.C /2019) e Freud em "A Interpretação de sonhos" (1900/1972, p. 589), tem como destino descer ao reino de Hades, para conseguir, através de sua dor, fazer falar a seus fantasmas. Será como a descida ao Inconsciente, ao reino das imagens e como no registro de Homero, os fantasmas ganham vida e podem falar à medida que bebem sangue. É uma descida que permite a Nagiko entrar em contato com as cenas do mito de origem, assim como a cena traumática e fazê-las falar, dar-lhes um sentido. Aquelas imagens cristalizadas, traumáticas da infância ganham expressão e com isso empreende o seu caminho de volta. Agora seu projeto tem um destino certeiro e ela negocia com o editor os seus próximos livrocorpos em troca do livro-pele Jerome. O último livrocorpo escrito na pele de um lutador de sumô terá como título O livro do morto. O editor, após a leitura deste, aceita que o lutador corte o seu pescoço. Nagiko consegue com esse escrito vingar a honra do seu pai e do seu amante. É uma execução que se faz necessária para o resgate da memória dos seus entes queridos. Mas, acima de tudo, vemos, após toda a sua trajetória, ela assinar o último livro como Nagiko Kiyohara no Motosuke Sei Shonagon, nome que lhe foi atribuído, mas que ela enfim se apropria ganhando o direito de nomear, criar, escrever.

Na terra natal vemos Nagiko aos 28 anos, no aniversário de sua filha de 1 ano, concebida na sua relação com Jerome. Ela recebe o livro-pele O amante para enterrá-lo sob uma árvore bonsai florida e repete o ritual do mito de origem caligrafando agora no rosto de sua filha. Como Ulisses, ela retorna à sua terra, depois de ter atravessado oceanos e terras perigosas, carregando consigo cenas psíquicas em si, fadadas ao esquecimento. A descida ao país de Hades será fundamental para realizar o que seria o seu trabalho de luto, e com Fedida, levantamos a hipótese de que "o verdadeiro trabalho de luto é trabalho de sonho" (Fedida, 1991, p. 81), entendido que no sonho é liberado o figurável, as imagens mudas presas no inconsciente. Além disso, será necessário o "retorno do sopro", a palavra poietica para que aquelas imagens ganhem visualidade. Na descida de Ulisses ao Hades, a busca não é o do reino arcaico da imagem por si só, assim como Freud se apoia nessa Odisseia de Homero para fazer falar essas imagens, na busca do mito, do arcaico, do traumático. "E a construção na análise vincula-se tanto a esta colocação em figura quanto a este reerguimento do nome - espécie de verticalidade abrupta tomada pelo visual..." (Fedida, p. 82). E aqui retomamos ao istos inicial, à confluência do mastro de Ulisses e do tear de Penélope, e a urdidura, a tessitura do sonho e a textura da escrita psíquica.

Também podemos conceber o momento em que a escrita transforma-se em sementes que produzem outras sementes em outras almas, permitindo assim que se tornem imortais. É a possibilidade de a escrita ser o phármakon da memória da nossa civilização.

 

Referências

Anzieu, D. (1986). A autoanálise de Freud e a descoberta da psicanálise. Artes Médicas.         [ Links ]

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1 Itálicos no original.

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