SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 issue73On symbolism and symbolisation: the work of Freud, Durkheim and MaussLanguage of psychoanalytic scope: a transcendental difference author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022

 

LANÇAMENTOS

 

Mitos, Psicanálise, Eneida e as Bacantes

 

Myths, Psychoanalysis, Eneid and Bacchants

 

 

Celso Antonio Vieira de Camargo

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Ex-editor associado do Jornal de Psicanálise. Um dos organizadores das XIII Jornadas Psicanálise: Bion. São Paulo / celsovieira@uol.com.br

 

 


RESUMO

O trabalho trata das relações entre mitos e psicanálise, e procura estabelecer contatos com nossa prática clínica utilizando os mitos como modelos para nos aproximarmos das nossas experiências emocionais individuais e daquelas que vivemos durante a sessão psicanalítica. Utilizamos a Eneida de Virgílio e As bacantes de Eurípedes como meio de contato com nosso mundo mental.

Palavras-chave: mitos, psicanálise, As bacantes, Eneida, crescimento psíquico


ABSTRACT

This paper tries to establish contact and relations between myths, psychoanalysis and our clinical practice, using miths as tools or models to enrich our contact with ourselves and with the living experience during the sessions. For this purpose, we have utilized the Eneid of Virgil and The bacchants of Euripedes.

Keywords: myths, psychoanalysis, The bacchants, Eneid, psychic growth


 

 

Penso neste artigo complementar meus comentários feitos à Odisseia de Homero em trabalho anterior (Camargo, 2021, pp. 16-24), trazendo algumas observações sobre outra obra magistral, a Eneida, de Virgílio, inspirada em muitos aspectos nos dois livros de Homero (Ilíada e Odisseia). Além disso, pretendo abordar As bacantes, de Eurípedes, a meu ver, uma das tragédias mais significativas já escritas.

Mircea Eliade (1963, p. 11) nos apresenta os mitos como relatos sobre "uma história sagrada; eles relatam um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio". São histórias explicativas do começo do mundo, do surgimento dos deuses (como na Teogonia, de Hesíodo) e dos semideuses, mas podem também ser usados como modelos para penetrarmos mais na vida mental.

Pierre Grimal1 nos propõe:

o mito não se limita a seus termos. Esboça uma imagem, um símbolo, se se quiser, de uma realidade que, de outro modo, seria inefável. É bastante provável que, aos próprios olhos do poeta, o episódio não seja mais do que um meio de expressão, uma forma de revelação, que ajuda a conceber o mistério do mundo, mas que não pode ser interpretado apenas ao pé da letra. (Grimal, 1982, p. 10)

Essa é a proposta que nos faz Bion (1992, p. 234), de maneira bastante livre, em Torre de Babel,2 em que ele propõe usarmos os mitos como operadores de nossas experiências emocionais. "O psicanalista precisa saber quando está enfrentando um problema para o qual um mito poderia fornecer a contraparte psicanalítica do cálculo algébrico" (Bion, 1992, p. 236). Continuando com Bion, "poderíamos dizer que foi exatamente isso que Freud fez; ele reconheceu, como um cientista, que estava perante um problema cuja solução requeria a aplicação do mito edipiano. Daí resultou não a descoberta do complexo de Édipo, mas a descoberta da psicanálise... ou da psique humana".

Eles constituem histórias acumuladas por cada cultura, e com a psicanálise, podemos dar a elas um sentido psíquico através do qual eles podem nos levar a relevantes observações sobre a vida. Com este conceito em mente, tentaremos percorrer alguns aspectos da Eneida e de As bacantes.

Destaca-se logo, no poema de Virgílio, assim como na Odisseia, a busca pela identidade e por aquilo que é genuíno em cada um de nós. Este é um ponto básico nessa minha exposição, e voltarei a ele. As bacantes, de Eurípides podem ter uma abordagem um pouco diferente. Em As bacantes, temos o contato com o desconhecido. Baco, ou Dioniso, aparece como um deus estranho, que provoca uma expansão do eu e vivências de dissociação.

São dois mitos aparentemente até contrastantes, mas que teriam alguns aspectos complementares.

Vou abordar alguns aspectos da Odisseia, podemos dizer assim, de Eneias, o grande herói troiano, narrada por Públio Virgílio Maro, o grande escritor romano, nos doze livros da Eneida,3 em que somos apresentados às gestas, ou feitos, desse homem que foi um dos grandes destaques da Guerra de Troia. A Eneida (Virgílio, 2016) foi escrita usando o modelo de Homero, e contém duas metades bastante distintas: nos primeiros seis livros se narram as aventuras de Eneias pelos mares - é a parte odisseica da Eneida. Na Odisseia, temos as aventuras marítimas de Ulisses no canto v até o canto xii. Nos últimos seis cantos da Eneida, temos a parte iliádica, que narra a guerra que Eneias e seus homens têm de enfrentar no Lácio, já na Itália, portanto, para poderem se estabelecer por lá. Sob esse aspecto, os seis últimos livros da Eneida tomam a Ilíada como modelo. Não vou abordá-los aqui.

As obras de Homero, tanto a Ilíada quanto a Odisseia, foram compostas por uma sucessão de aedos, ou poetas, até encontrarem sua forma definitiva em Homero. O que faz também que muitas passagens fiquem repetitivas. A Eneida foi encomendada para narrar o início do Império Romano, e foi feita por um só poeta. Nesse sentido, é mais formal. Mas, por outro lado, Virgílio passeia, digamos assim, por toda a cultura mitológica e filosófica grega. É uma obra monumental!

A criatividade de Virgílio surge de maneira impactante. Uma das "invenções" mais curiosas é o nome de Ascânio, filho de Eneias. Inicialmente Ascânio Ilo, depois da queda de Troia (Ilion) passa a Ascânio Iulo, e com isso Virgílio conecta o filho de Eneias com a família Júlia, de Júlio César e de Otávio Augusto, a quem a obra é dedicada. E isso nos dá o plano geral desse poema. Há também o aproveitamento da referência, feita na Ilíada por Homero (2014), no Canto XX,4 numa conversa entre os deuses, de que Eneias está destinado a continuar a raça dos troianos, e sobreviverá à guerra.

Aproximadamente 1.200 anos se passaram entre os fatos narrados por Homero, e a escrita de Virgílio. A Guerra de Troia acontece por volta de 1250 a.C., época áurea da civilização micênica. Homero escreve suas obras no século VIII a.C., narrando de sua ótica as aventuras dos gregos, ou aqueus, como são chamados então. Virgílio escreve a Eneida no século I a.C., ele morre no ano 19 a.C., em Brindisi, mas passou algum tempo em Nápoles, cidade cujo outro nome é Parthenope.

A Eneida é, poderíamos dizer, uma transformação da Guerra de Troia. Acho útil lembrarmos que esse conceito de Bion, o de Transformações, antes de tudo significa que um determinado fato, é transformado por cada pessoa que o vive, numa versão própria. Penso que este é o aspecto fundamental, simples e evidente, desse conceito

A Eneida é a história dessa guerra na transformação dos vencidos, dos troianos, portanto. Para os vencidos, só há salvação na esperança perdida (Virgílio, 2016, Livro II, p. 161),5 diz significativamente Eneias, antes da fuga de Troia. Ele está conclamando seus companheiros a lutarem até a morte.

Bion depois nos fala da ampliação e da complexidade que podemos desenvolver com base nessa ideia da transformação (transformações em movimento rígido, projetivas, em alucinose, em sonhos, em "O"), mas o aspecto fundamental me parece ser esse: criamos uma versão (hoje está na moda dizer uma narrativa) daquilo que vivemos.

Essa versão pode estar mais próxima, ou mais distante, do que realmente aconteceu. A proposta de Bion aqui também me parece muito útil na prática. Há transformações, mas há também invariância - tudo muda, mas também algo permanece. Bion faz referência a um paradoxo com o qual todos convivemos. As obras de Homero e de Virgílio referem-se a fatos que têm diferenças, mas também semelhanças.

Na visão de Eneias, os gregos (ou, mais propriamente, os aqueus) vencem pela insídia, pela baixeza, pela falta de lealdade, pelo engano. Uma vitória vergonhosa, portanto. Certamente não é a transformação pela qual passaram os troianos.

Os feitos de Eneias começam logo após a Guerra de Troia. É clássica sua imagem carregando o velho pai, Anquises, nas costas, e tomando pelas mãos seu filho, Ascânio, ou Iulo, que será seu nome latino.

A esposa de Eneias (Creusa) se perde assim que eles saem de Troia. O fato desespera Eneias, que volta para buscá-la. No entanto, ela reaparece como uma visão (psicanaliticamente poderíamos dizer como um objeto interno projetado) para indicar que é o futuro que importa, e não o passado. O que nos leva a pensar que indiretamente o mito nos propõe também a necessidade de um objetivo genuíno, de um caminhar para a frente. O passado está morto, e só tem significado se nos serve como aprendizado para o futuro.

Os seis primeiros livros da Eneida (os únicos aos quais nos referiremos aqui) compõem a parte odisseica da Eneida. Aí são narradas as aventuras marítimas de Eneias e de seus marinheiros, assim como na Odisseia são as peripécias de Odisseu pelos mares, até a chegada a Ítaca, que constituem o núcleo da narrativa.

Juno, esposa de Júpiter (ou Zeus), tem uma rixa imperdoável com os troianos, desde o julgamento feito por Páris Alexandre, escolhendo Afrodite, ou Vênus, como a mais bela entre as deusas, e consequentemente preterindo Atena e Juno (ou Hera), e também por saber que os descendentes de Eneias, os romanos, derrotarão Cartago, a cidade preferida de Hera, nas guerras púnicas. Além do fato de Ganimedes, troiano, ter sido amado por Zeus.

Vênus (Afrodite) é mãe de Eneias, e vai protegê-lo sempre dos ataques violentos de Juno (Hera).

A primeira cena descrita na Eneida, no Livro I, se inicia já no meio da aventura troiana, com a frota deles sendo acossada por uma tempestade terrível, mandada por Juno, por meio de Éolo, deus dos ventos, e essa situação os leva para Cartago, cidade do Norte da África. Eneias e seus homens deixam Creta, primeiro destino escolhido após o abandono de Troia, depois que uma terrível peste assola a região, e Eneias receber em sonhos um aviso de seus penates6 de que seu destino era a Itália.

A tempestade é violenta, os troianos vagam desesperadamente pelo mar, um dos navios vai a pique, mas finalmente chegam justamente a Cartago. Aqui Eneias é protegido por Vênus-Afrodite, que o envolve em névoa até ficar fora de perigo, até que ele encontre Dido, rainha de Cartago, ela própria uma emigrante, pois sua cidade original era Tiro, na Fenícia, de onde havia fugido depois que seu irmão (Pigmaleão) matara seu marido (Siqueu).

Há uma cena muito curiosa aqui, pois Eneias e seus homens encontram a rainha Dido e a cidade de Cartago construindo um templo, enfeitado por diversas cenas da Guerra de Troia, onde vamos encontrar cenas também das batalhas de Eneias nessa guerra. Portanto, é a história dentro da história, e Eneias fica extremamente comovido ao se contemplar e lembrar da grande derrota sofrida por Troia, e todo o sofrimento pelo qual os troianos passaram, e ainda estão passando.

Mas o inesperado se faz presente, e Dido se enamora (por obra de Vênus) perdidamente por Eneias.

No Canto ii, vemos a narração feita por Eneias, a pedido de Dido, de toda a saga da Guerra de Troia. É aqui que o famoso episódio do cavalo de Troia é narrado minuciosamente, e com detalhes significativos. É um relato emocionante, feito do ponto de vista dos vencidos. A crueldade com que a tomada da cidade é realizada encontra aqui um relato dramático em todos os momentos. E vejam como a Eneida segue os passos da Odisseia: nela, vamos encontrar também no Canto V Odisseus narrando aos Feácios suas aventuras na Guerra de Troia, logo após a grande aventura marítima ao sair da ilha de Calipso. Odisseu, ou Ulisses, havia nadado durante dois dias e duas noites até chegar à cidade dos Feácios. Eneias está contando sua história após enfrentar tempestades terríveis no mar, mandadas por Éolo, o rei dos ventos, este por sua vez incitado por Juno.

É a história se repetindo com algumas modificações. Como Ulisses, Eneias narra suas desventuras. A novidade é que Dido se enamora dele. Durante uma caçada, uma grande tempestade leva a rainha e Eneias a se abrigarem na mesma caverna. E aqui a grande paixão entre eles se consuma, para a infelicidade de Dido. As paixões não costumam ser boas conselheiras: elas podem iniciar um relacionamento, mas aqui vemos que um grande engano começa a se formar, ou, poderíamos dizer, cada um deles vive a história por um vértice diferente, faz uma transformação diferente do que estão vivendo. Dido vê o relacionamento entre os dois como um casamento, ou seja, um compromisso mais significativo, principalmente se levarmos em conta a delicada situação criada pelo relacionamento dos dois. Dido havia recusado diversos pretendentes de reinos vizinhos ao seu, para os quais sua escolha atual tinha o sentido de uma afronta.

Ele também se enamora, mas em grau menor. Na realidade, ele logo é lembrado, por um sonho, e pelos deuses, ou poderíamos dizer psicanaliticamente, por seus objetos internos, que ele tem outra missão: fundar um reino na Itália, reino este que futuramente dará origem ao grande Império Romano.

Esse é um ponto importante para pensarmos: tanto Ulisses, na Odisseia, quanto Eneias têm um projeto de vida, alguma coisa à qual eles dão muito sentido. Isso é acentuado intensamente no relato. Há uma lição de vida aí: nós também precisamos ter projetos, sonhos, para podermos ter uma vida mais plena. Esse projeto acontece espontaneamente na formação psicanalítica: ambicionamos a nos tornarmos psicanalistas. A vida nos dá um projeto natural quando nos tornamos pais: dar condições para que os filhos se desenvolvam, ajudar depois os filhos na criação de seus próprios filhos. Pode ser qualquer coisa que possa nos mobilizar mais significativamente. Mas esses projetos ficam mais interessantes e criativos se pudermos inseri-los em um outro maior, que é o de nos desenvolvermos, de cultivarmos nossas potencialidades e de, enfim, podermos adquirir alguma sabedoria sobre a vida em nosso crescimento.

Um estudo mais detalhado da paixão de Dido e, depois, de seu suicídio, quando é abandonada por Eneias, nos permite fazer algumas observações sobre esse poderoso sentimento - a paixão, que costuma ser avassalador.

Penso que o contato com o outro traz questões interessantes para pensarmos. Leva muito tempo para conhecermos outra pessoa, para sabermos se podemos de fato contar com ela. Dido comete esse engano fundamental e trágico: ela supõe que a realidade é a contraparte de seus desejos. O outro "é" o que ela deseja. Penso que podemos distinguir duas maneiras de vivermos a paixão.

Uma delas, a que Dido encarna, pertence à posição esquizoparanoide. É aqui que o processo passa por uma transformação em alucinose O outro, a outra pessoa, é vivido como uma posse, nesse sentido, como uma contraparte dos desejos. Notavelmente, Virgílio descreve assim a paixão de Dido, que termina em seu suicídio, quando Eneias, aliás, de maneira pouco digna, a abandona: "a rainha está ferida de cega paixão. Já não dorme, vaga sem rumo pela cidade, e descuida-se de seus deveres como rainha". De fato, quando percebe que foi abandonada, mata-se com a própria espada de Eneias, numa pira, numa fogueira incendiária.

A história amorosa pode ser muito diferente quando é vivida por uma ótica mais condizente com a posição depressiva, no modelo kleiniano. E um belo exemplo disto nos é dado pela relação entre Andrômaca e Heitor. Na Ilíada é narrada a despedida entre eles, quando Heitor sai para as batalhas. A preocupação de Andrômaca é com a pessoa de Heitor. Adotando uma ótica kleiniana, podemos dizer que a qualidade da relação é de outra ordem. Enquanto Dido, cega pela paixão, está preocupada com a sua infelicidade, com a perda de seu prestígio enquanto rainha, Andrômaca preocupa-se principalmente com Heitor. Claro que isso envolve também uma preocupação consigo mesma, mas o objeto principal é Heitor. Outro exemplo deste tipo de relação, vivida na posição depressiva, nos é dado por Bion (1985), nas suas cartas a Francesca.7 Há uma qualidade de relação muito difícil de ser atingida, se for tomada como modelo. Mas creio que fragmentariamente podemos manter essa relação, seja com o outro, seja com nossa própria pessoa, e com a vida. Uma relação que contenha elementos de paixão, mas também de consideração e de respeito, enfim, cuidados, com o objeto.

Outro ponto da Eneida que gostaria de chamar a atenção aqui é a catábase de Eneias, ou, como dizemos, a descida aos infernos. Nessa descida, Eneias vai conversar com seu velho pai, que havia falecido em Drépano, antes de chegarem a Cartago, durante suas desventuras com as tempestades.

Essa catábase é descrita no Livro VI da Eneida. Ulisses-Odisseu também faz sua descida ao Inferno, ou ao Hades. O que acontece aqui e como podemos pensar psicanaliticamente sobre o que se passa "no Inferno"? É nesse ponto que penso fica claro que Eneias tem uma missão, como se diria no mito, mas que psicanaliticamente podemos entender como um projeto, um sonho. É isto que o motiva a seguir adiante. Tenho um analisando que, em função do que poderíamos chamar de depressão, se queixa de não ter projetos, não ter sonho. Esse é um fato sério na vida: se não temos sonhos, a vida morre. É por isso que falei na paixão pela própria vida e particularmente pela nossa própria vida psíquica. E paixão aqui tem a ver com manter nossa curiosidade ativa, tal como vemos na criança. A criança tem a tarefa de conquistar o mundo, por isso ela é sempre apaixonadamente curiosa. Essa é a criança que temos de manter viva dentro de nós. Sem ela, vamos nos tornando idosos.

Creio, psicanaliticamente, que um bom modelo para entendermos a catábase é pensarmos nela como uma conversa direta e franca com nossos objetos internos genuínos. E realmente Eneias encontra diversos companheiros, reencontra Dido, que não se aproxima dele, e finalmente tem uma conversa reveladora com seu pai, Anquises.

Depois disso, Eneias vai ao encontro de seu destino, no Lácio, para fundar o que futuramente será o Império Romano. Finalmente, ele se vê face a face com seu sonho.

É muito interessante ver a maneira com que são feitas várias releituras desses mitos. Há um autor, Fabius Fulgentius,8 escrevendo no século v ou vi d.C., que aborda a Eneida como se estivesse falando com o próprio Virgílio, que lhe teria contado o outro sentido da sua narrativa. Fulgentius diz: se não me falha a memória, primeiro Juno-Hera busca Éolo, o deus dos ventos, a fim de que ele imponha um naufrágio. Eneias sobrevive com sete naus. Em seguida, é acolhido no litoral da Líbia, após a tempestade. Vê a mãe (na realidade, Vênus aparece a ele, disfarçada), e não a reconhece. É encoberto por uma nuvem, truque de Vênus para protegê-lo. Em seguida, dirige sua atenção a pinturas, quando contempla a construção do templo de Juno em Cartago. É recebido numa ceia, a convite de Dido, e entretido ao som de cítara. Esta é a síntese do primeiro livro. Supostamente, Virgílio acrescenta: "pusemos o naufrágio à maneira do risco do nascimento. É com este risco que a raça humana tem que lidar". E, de fato, Juno-Hera é a deusa do parto. Ela é quem, digamos, reina nesse primeiro livro. Depois, Eneias vê a mãe (Afrodite-Vênus), e não a reconhece, como a criança demora a perceber os atributos da mãe. Está envolto numa nuvem, ou seja, não percebe o mundo muito adequadamente. Entretém-se com a música e a comida, tal como uma criança almeja ser deleitada pelo canto e saciada pela comida. No segundo e terceiro livros (quando narra suas histórias aos cartagineses, a Dido em particular), é instigado pelas fábulas, como acontece com a tagarelice dos meninos. Encontra o ciclope (isto é parte da narrativa de Eneias), ou seja, não tem um olhar mais pleno e racional. Depois, sepulta o pai, ou seja, ao crescer, repudia o peso do vigor paterno.

Esta última frase nos remete a Édipo, visto por outro ângulo!!!

Avança para o amor (o episódio de Dido), ainda na luxúria, poderíamos dizer, da juventude. Exercita-se, como fazem os jovens (ao comemorar o primeiro aniversário da morte de Anquises, com jogos, como se fazia então). Chegando ao templo de Apolo, desce aos lugares infernais. Isto quer dizer que tem de deixar toda sua vida anterior para trás, o que é simbolizado pela perda de Palinuro, que era o timoneiro da esquadra, e adquirir uma outra forma de sabedoria, pois confronta-se com a morte, o sofrimento, a doença, a velhice etc. Cresce, enfim. No sétimo livro, sepulta Caieta, sua ama, ou seja, rejeita o "peso do temor dos ancestrais". E, lá no final, casa-se com Lavínia.

Nós poderíamos dizer que ele encontra um amor já numa fase mais amadurecida da vida.

Fulgêncio faz suposições, ou seja, conjecturas imaginativas, como diria Bion. Elas podem ser verdadeiras, ou completamente falsas. É aí que nós, psicanalistas, temos uma grande vantagem: todas as conjecturas imaginativas que fazemos numa sessão podem ser testadas e confrontadas com a realidade que vamos podendo ver que se desenvolve no contato com nossos analisandos. Nós temos essa grande oportunidade de verificar, na prática, se nossa imaginação corresponde à realidade. Neste confronto, entre o que pensamos e o que de fato acontece, contamos com uma colaboradora muito preciosa: a experiência emocional que vivemos na sessão analítica.

Para terminar este trabalho, gostaria de rever outro mito, a meu ver dos mais fascinantes de toda a mitologia grega, que aborda duas questões fundamentais na vida: a criatividade e os aspectos alucinatórios da mente humana. Aqui o panorama mitológico é completamente outro.

Dioniso é um dos mais complexos deuses da mitologia grega (e dos mais apaixonantes). Único olimpiano filho de uma mortal, Sêmele, e de um imortal (e que imortal! - seria filho do próprio Zeus!). Chega a Tebas, na versão de Eurípedes, para impor seu culto à cidade, que duvidava se sua origem divina.

Aqui, de certa maneira, se repete a saga do deus na própria cultura grega. Ele é rejeitado pela cultura dominante, representada por Penteu, mas se impõe como deus das classes populares. Era considerado uma introdução muito tardia no grupo das divindades olimpianas, até que o deciframento da escrita linear B por Michael Ventris, em 1952, revelou a presença de seu nome, como diwonusos, e já possivelmente associado ao vinho (Chadwick, 1977, p. 134).9 Portanto, uma divindade muito antiga, já presente na cultura aqueia em 1250 a.C., época do auge da civilização micênica, quando ocorre a guerra de Troia.

Dioniso surge em Tebas, como já disse, para impor seu culto à cidade onde nasceu. Mas encontra uma resistência agressiva por parte de seu primo Penteu, neto de Cadmo, e atual governante da cidade. No mito, Dioniso é filho de uma união entre a princesa tebana Sêmele (filha de Cadmo) e Zeus. Essa união, no entanto, é questionada pelas irmãs de Sêmele, e até a divindade de Dioniso é negada. Ele surge, portanto, dentro de um contexto em que pretende ser reconhecido e realizar sua vingança fazendo com que seu culto e seu caráter divino sejam aceitos.

A história desse momento da lenda de Dioniso nos é contada por Eurípedes em As bacantes: ele "enlouquece" as mulheres de Tebas, que, acompanhando as mênades (grupo de mulheres que circundam o deus), correm para as montanhas, onde praticam danças desenfreadas nas montanhas (oreibasias). Faz parte do grupo Ágave, irmã de Sêmele e mãe de Penteu.

Dodds (1988, Apêndice 1, "Menadismo", p. 290), historiador irlandês, ao estudar o menadismo, comenta: "resistir a Dioniso é reprimir o que há de elemental na nossa própria natureza, e o castigo é o colapso completo e súbito dos diques interiores, quando o elemental vence as dificuldades à força e a civilização desaparece". Dodds considera que podemos imaginar que existem elementos invariantes entre esse estado mental descrito por Eurípedes e nossa mente atual.

Marie Delcourt comenta que "as lendas gregas representam Dioniso como um deus que vem do estrangeiro, que foi mal acolhido de início no solo helênico, e que rompe as resistências de maneira cruel" (Eurípedes, 1962, p. 1207).

Dioniso acaba por convencer Penteu a ir olhar às escondidas as bacantes, depois de tê-lo "enfeitiçado". Quando estas o descobrem, acabam por matá-lo por desmembramento, já que todas, incluindo Ágave, enxergam nele um animal selvagem. No final da peça, Ágave aparece em cena, alucinada, sob o olhar doloroso de Cadmo, trazendo a cabeça de seu filho Penteu nas mãos, tomando-a por um leão. Vagarosamente, vai saindo do transe dionisíaco, e percebe ter matado seu próprio filho. A cena tem uma carga dramática das mais impactantes.

O tradutor Mário da Gama Kury chama a atenção para a seguinte fala do coro, no fim da peça: "A vontade de um deus tem muitas formas, e muitas vezes surpreende-nos na realização de seus desígnios. Não acontece o que era de se esperar e vemos no momento culminante o inesperado. Assim termina o drama" (Eurípides, 1993, p. 279).

Os mitos podem servir como uma espécie de "grade bioniana", para exercitar nosso contato com a intuição e com nossa vida mental. Assim, podemos ver em Dioniso a ruptura com o establishment, tanto interno quanto externo. Ele é o deus do êxtase e do entusiasmo. Êxtase vem de ek (para fora) e stasis (permanecer), ou seja, a personalidade própria fica fora e é substituída provisoriamente pelo deus, no entusiasmo (en=dentro, theos=deus, ter o deus dentro de si).

Vou me referir a um episódio clínico que já publiquei em trabalho anterior (Bion, 2009, p. 105), mas que é, a meu ver, muito abrangente em relação a todos esses elementos. Por isso, faço uma transcrição integral dele.

O analisando é um economista bem-sucedido, de mais ou menos 30 anos, separado da mulher, com filhos pequenos, e veio à análise em função de uma depressão e do uso frequente de álcool e de cocaína.

A primeira sessão que relatarei ocorre numa segunda feira. Estamos próximos do final do ano.

Analisando: Estou bem hoje, mas estive muito mal no último fim de semana. Não sei o que aconteceu, mas tive uma vontade muito grande de usar cocaína. Senti aquela "fissura" da droga. Fui ficando deprimido, estava com minha namorada, acabei bebendo muito, não estava me aguentando. Foi muito ruim. Hoje não, hoje estou bem.

Digo-lhe então que ele descrevia uma espécie de "crise", vivida no fim de semana. Seria útil, acrescento, se pudesse trazer mais associações ao que viveu e ao que estava chamando de depressão.

Começou quando falei com minha ex-mulher. Há certas coisas que eu não aguento. Ela me dizendo que vai viajar e passar o Natal com meus filhos e o atual namorado dela. Isso foi mexendo comigo, fui ficando muito triste, bebi bastante, só não 'cheirei' porque minha namorada ficou comigo. Depois, ela foi embora, foi horrível, fui para a casa dos meus pais, um Natal triste, sem alegria.

Digo então que uma dificuldade que havia experimentado era de ficar na sua própria companhia, antes de tudo, e tolerar esse sentimento doloroso de ausência da sua própria família - dos seus filhos, da sua ex-mulher, e principalmente da família que haviam formado. Essa separação tinha tido uma dimensão insuportável.

Foi horrível, eu fico mexido, triste. Após certa pausa: Engraçado, pensei que você estava trabalhando só comigo, hoje... que você me atenderia, e depois iria embora. O paciente não diz, mas poderíamos acrescentar: e me deixar sozinho, com todos esses sentimentos penosos e desconfortáveis.

Na sessão seguinte, terça feira, dia 31 de dezembro, não vem a seu horário de sessão pela manhã. Por volta da hora do almoço, recebo um telefonema da irmã do paciente, aflita, me informando que ele estava desaparecido, circunstância de resto frequente antes da análise. Combinamos que me avisariam quando fosse encontrado.

Nesse momento, creio que ele me fez passar por essa experiência de ser abandonado, através de seu desaparecimento. Por algum tempo, "sou" uma parte de seu self. Nesse momento, de fato fiquei preocupado com o que poderia ter acontecido com ele.

Voltando para o trabalho no dia 2 de janeiro, recebo da família o recado de que ele viria para a sua sessão à noite.

Ao entrar, senta-se como habitualmente, parece preocupado, constrangido, e começa logo a falar.

Foi irresistível - saí daqui na segunda-feira, andei um pouco, aí tomei um táxi e fui para o centro da cidade. Bebi, falei com um travesti e fui para um hotelzinho. O travesti trazia cocaína, eu cheirava, pensava em alguma atividade sexual com ele, não me animava, continuava cheirando. Às vezes, era outro travesti que vinha me trazer a droga. A diferença com as outras vezes em que eu me drogava anteriormente é que não consegui ter nenhum tipo de atividade sexual, nem mesmo prazer com o uso da droga. Dentro de mim, era como se tivesse uma voz me dizendo: "cai fora daqui, cai fora daqui". Antes, eu cheirava cocaína, aquilo me dava um enorme prazer, eu ficava momentaneamente feliz, e aí conseguia me liberar sexualmente. Tinha relações sexuais ativas e passivas com os travestis, às vezes até pagava para ver um casal tendo relações - até me cansar. Quando eu não tinha mais vontade de fazer aquilo, telefonava para alguém vir me buscar, ficava com uma culpa horrível, uma depressão muito intensa, chorava com meus familiares, pedia perdão, uma cena dolorosa e muito humilhante para mim.

Assim, podemos conjecturar que meu analisando lidava com elementos dionisíacos fora do controle em sua personalidade. Momentaneamente, era um homem que penetra a mulher durante a relação sexual; depois é uma mulher que é penetrada; em outros instantes, apenas contempla o casal em coito, como uma pequena criança. Tudo isso é vivido de maneira extremamente conflituosa e clivada, como vemos através do quadro depressivo ao final.

Na peça, Penteu, já dentro do transe dionisíaco, após vestir-se de maneira feminina, diz: "Afigura-se a mim que o sol dobrou, Tebas também dobrou, cidade sete portas, e, guia, tu me pareces touro, os cornos projetando-se do crânio..." um pouco depois: "Como pareço? Tenho o porte de Ino?10 Tenho o porte maternal de Ágave?" (Eurípides, 2003, p. 96).

Temos, então magistralmente descritas, as clivagens que acontecem quando não conseguimos internamente um "casamento", uma integração dos aspectos femininos e masculinos da personalidade. Dioniso representa o desconhecido dentro de nós, o estrangeiro, aquilo que ainda não conhecemos, mas que quando nos penetra permite uma ampliação do nosso espaço mental.

Quando esses conflitos podem ser elaborados, experimentamos uma eclosão de criatividade, tal como vemos no teatro grego: dos ditirambos dionisíacos surgem as tragédias, com toda sua força criativa emocional.

É interessante perceber que essas integrações nunca são completas: passamos por estados mentais mais criativos, aos quais podem suceder-se outros mais empobrecidos, num ciclo que se repete ao longo da vida.

Mas com o casamento entre certas percepções que o mito nos apresenta e algumas das ideias centrais da psicanálise, como pretendo ter exposto nesse caso clínico, penso que podemos expandir nosso contato com a realidade psíquica. Os gregos dão um primeiro passo quando evoluem da epopeia para a tragédia, em que os conflitos íntimos dos heróis são expostos de maneira mais aprofundada. A psicanálise dá outro passo importante quando permite que cada um de nós busque dentro de si sua própria verdade pessoal, e perceba como podemos dar um sentido genuíno à nossa curta existência.

 

Referências

Bion, W. R. (1985). All my sins remembered. Another part of a life and the Other side of genius. Family letters. Fleetwood.         [ Links ]

Bion, W. R. (1992). Cogitações (Torre de Babel). Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (2009). Psicanálise: Bion, transformações e desdobramento (C. J. Rezze; E. S. Marra; M. Petricciani, Eds.). Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Camargo, C. A. V. (2021). O olhar de Ulisses. Ide, 43(72), 16-24.         [ Links ]

Chadwick, J. (1977). El mundo micénico. Alianza.         [ Links ]

Dodds, E. R. (1988). Os gregos e o irracional. Gradiva.         [ Links ]

Eliade, M. (1963). Mito e realidade. Perspectiva.         [ Links ]

Eurípedes (1962). Tragédies complètes, II. Les Bacchantes (M. Delcourt-Curvers, Ed.). Gallimard.         [ Links ]

Eurípedes (1993). Ifigênia em Aulis, As fenícias, As bacantes (M. da Gama Kury, Trad.). Jorge Zahar.         [ Links ]

Eurípedes (2003). As bacantes (T. Vieira, Trad.). Perspectiva.         [ Links ]

Grimal, P. (1982). Mitologia grega (5.ª ed.). Brasiliense.         [ Links ]

Homero (2014). Ilíada (F. Lourenço, Trad., 6.ª ed.). Cotovia.         [ Links ]

Virgílio (2016). Eneida (C. A. Nunes, Trad., 2.ª ed.). Editora 34.         [ Links ]

 

 

1 Grimal tece também, à p. 8, excelentes comentários sobre a diferença entre mytos e logos.
2 O capítulo todo é dedicado ao uso clínico dos mitos.
3 Públio Virgílio Maro viveu entre 70 a 19 a.C. A tradução de Carlos Alberto Nunes é a que emprego quando me refiro aqui às aventuras de Eneias.
4 Cujo original é do século vii a.C. Virgílio aproveita essa referência para relatar como se deu a criação do Império Romano, começando pelas ações desses sobreviventes.
5 Nesse livro, Eneias narra a Dido dramaticamente os últimos momentos da tomada de Troia pelos aqueus, feita de modo cruel e extremamente sanguinário, e como ele exortava seus companheiros à luta, que só é interrompida por interferência dos deuses.
6 Penates eram os deuses da cidade. Aqui são os deuses de Troia, que estão sendo levados por Eneias, para a fundação de outra cidade. Vemos também como os mitos nos contam "o tempo das origens", mais especificamente a origem do Império Romano.
7 A segunda parte desse livro (Letters to Francesca) contém várias cartas delicadas em que Bion mostra uma afeição apaixonada por sua mulher.
8 Observações feitas pelo dr. Marcos Martinho, professor de Letras Clássicas da usp, em comunicação oral.
9 John Chadwick foi um dos parceiros de Michael Ventris no estudo das tabuinhas micênicas encontradas em Cnossos (Creta), Pilo, Micenas, Tebas e Tirinto, e descreve muito detalhadamente o trabalho feito.
10 Ino era uma das irmãs de Sêmele e Ágave.

Creative Commons License