SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número73Mitos, Psicanálise, Eneida e as BacantesOs poetas românticos e a psicanálise: a religião da mente índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo jan./jun. 2022

 

LANÇAMENTOS

 

Linguagem de alcance psicanalítico: uma diferença transcendental

 

Language of psychoanalytic scope: a transcendental difference

 

 

Arnaldo Chuster

Membro efetivo e didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), e do Newport Psychoanalytical Institute (NPI), Califórnia, e membro honorário do Instituto Bion, Porto Alegre. Rio de Janeiro / achuster@centroin.com.br

 

 


RESUMO

O autor parte de um comparativo entre as influências literárias em Freud e Bion, e com elas tenta desenvolver como influíram no desenvolvimento da técnica psicanalítica, com ênfase nas contribuições de W. R. Bion.

Palavras-chave: mudança de vértice, linguagem poética, linguagem psicanalítica


ABSTRACT

The author starting from a comparative between influences in Bion and Freud brought by literature, develops some ideas on how they influenced psychoanalytic technique, putting emphasis on W. R. Bion's contributions to psychoanalysis.

Keywords: change of vertex, poetic language, psychoanalytic language


 

 

Diferenças de vértice são uma consequência inevitável de qualquer diálogo sobre vínculos entre áreas que escapam de definições únicas e até mesmo descrição, como são os vínculos entre psicanálise e poesia.

Desse modo, meu trabalho começa por um vértice ligeiramente diferente do de Meg Harris Williams, ou talvez seja apenas complementar ao dela, ou ao de Bion - que ela menciona - e que considerou "os poetas românticos como sendo os primeiros psicanalistas".

Ela também afirma que "Bion estava reverberando Freud, porém, de forma mais empática". Penso que não se trata de "forma mais empática", mas reverberando a empatia de Freud por outros vértices.

Para justificar minha hipótese, inicialmente levei em consideração as sutis igualdades e diferenças entre o romantismo inglês1 em Bion e o romantismo alemão2 em Freud. Entendo que o romantismo alemão inspirou as passagens mais artísticas, emocionais, e reconhecidamente poéticas de Freud, por exemplo, "a sombra do objeto caiu sobre o ego", "os sonhos são a via regia para o inconsciente", "onde o Id era eu devo vir a ser", "há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento nos permite acreditar".

No entanto, Freud (1926), numa entrevista para o New York Times, firmemente considerou Nietzsche como o primeiro psicanalista. Freud disse que ninguém compreendeu tão bem como o filósofo o problema dos dois princípios de funcionamento mental. Após afirmar isso, Freud cita Nietzsche (1883-1885/2018) em Assim falou Zaratustra: "A dor grita: Vai! Todavia, o prazer quer eternidade pura, profunda eternidade".

O jornalista imediatamente rebate: "o senhor também é um poeta". Freud não negou, tomou como um elogio, e asseverou a enorme troca e contribuição entre a psicanálise, a poesia, e a literatura.

Com esses pensamentos e diferenças, me indaguei:a origem da psicanálise é a poesia ou a filosofia?

Também senti necessário, todavia, como contraponto, retirar o splitting e indagar a possibilidade de uma origem inconsciente comum, ou de um ponto em que ambas as disciplinas não estivessem separadas.

A raiz filosófica da psicanálise, reconhecida por Freud, tem um desenvolvimento absolutamente original na Teoria do pensar, de Bion (1962/1967d). Bion afirma que a psicanálise é uma resposta prática para questões filosóficas, ou seja, questões da vida, que os filósofos sabem formular muito bem, entretanto, não podem dar a singularidade do sujeito da prática que sofre a soberana influência do inconsciente na vida mental.

Ao mesmo tempo, Bion diz que a relação entre a filosofia e a psicanálise precisa seguir a mesma ordem que existe entre a matemática pura e a matemática aplicada, ou seja, a psicanálise precisa ter um campo, definido por seus limites e possibilidades, e que seja regido por princípios epistemológicos que o afastem de crenças e hábitos vazios (Chuster, 2011, 2014, 2018).

A parte da matemática pura à qual Bion está se referindo são os fundamentos da matemática, que, particularmente, represento pelas questões epistemológicas desenvolvidas pelo matemático austríaco Kurt Gödel (Baaz et al., 2014) sobre as proposições indecidíveis e o Princípio da Indecidibilidade da origem. Essas ideias são complementadas pelo teorema do terceiro excluído, que significa um ponto de indecidibilidade (vazio), a ser preenchido por decisões interpretativas transitórias, criadas por detalhes de observação e imaginação criativa.

Na ciência, Werner Heisenberg (Asimov, 1986) aplicou essas ideias para criar o seu Princípio da Incerteza na física quântica,3 permitindo expandir a criação dos sistemas abertos, já apontados por Poincaré (Folina, 1992) para os sistemas vivos e dinâmicos.

Os sistemas abertos são espectrais, não lineares, não deterministas, não hermenêuticos, não diagnósticos, e sua existência a Teoria da Complexidade (Morin, 2003, p. 116) mostra ser uma forma ética universal de pensar, a ser seguida caso desejemos dar um futuro para a humanidade.

Existem muitos exemplos de sistemas abertos na obra de Bion: a teoria do pensar (1962/1967d), o objeto psicanalítico (1963), a Grade (1963, 1965, 1977b), a turbulência emocional e, sobretudo, o modelo observacional da cesura (1977b).

Tentarei dialogar agora sobre como Bion, ao utilizar os sistemas abertos, evolui para um complexo modelo de técnica psicanalítica que requer uma linguagem interpretativa que lhe seja adequada, e por isso se utiliza do paradigma da poesia, que é um vigoroso exemplo de sistema aberto.

Como esse modelo de técnica faz a confluência de questões filosóficas, epistemológicas e estéticas da Teoria do Pensar (1962/1967d), preciso assinalar que a utilização do poético em Bion vai muito além de um estilo literário. Trata-se de um modelo de expansão da intuição e da imaginação na criação de muitos conceitos que emergiram na prática psicanalítica. Neste ponto, talvez possamos falar do poético como continente e da poiesis como conteúdo; fazendo contraponto com a intuição como conteúdo e a imaginação como continente.

Em poucas palavras, penso que Bion, ao aplicar essa relação continente/conteúdo na maioria de seus trabalhos, pôde utilizar o que é mais profundo na ação poética - a poiesis -, sendo essa hipótese a que tentarei desenvolver a seguir.

Para fazer isso, vou citar o que chamarei de poesia psicanalítica de Bion, e focalizando-a com o auxílio de dois poetas do século XX, Paul Valéry e Mario Quintana, e de uma citação do sublime escritor brasileiro Guimarães Rosa. Eventualmente adicionarei a poesia de Fernando Pessoa.

A matemática é a Linguagem da Realização ou de Restauração? O que é necessário não é uma diminuição da inibição, mas uma diminuição do impulso para inibir; o impulso para inibir é fundamentalmente a inveja dos objetos que estimulam crescimento. Deve-se procurar uma atividade que seja tanto a restauração de deus (a Mãe) como a evolução de deus (o informe, infinito, inefável, inexistente), que pode ser encontrado somente no estado em que não há memória, desejo, compreensão. (Bion, 1970)

Guimarães Rosa: "A linguagem é uma porta aberta para o infinito" (Pontes, 1998).

Paul Valéry: "Aquele que escreve todo um poema numa noite de febre não é um delirante febril, mas sim um sábio calculista, quase um algebrista, aos serviços de um sonhador refinado".

Mario Quintana (2005): "Sonhar é acordar-se para dentro".

Correlacionarei essas citações poéticas com alguns conceitos desenvolvidos por Bion em Transformações (1965), Atenção e interpretação (1970) e Cesura (1977b). Estes conceitos, antes do mais, produziram uma guinada epistemológica que nos leva dos dois princípios freudianos de funcionamento mental para os três princípios de vida (Bion, 1979). Os três princípios são outro vigoroso exemplo da complexidade de um sistema aberto: (Sentimentos) + (pensamentos antecipatórios) + (sentimentos mais pensamentos mais Pensamentos), sendo este Pensamento com P maiúsculo sinônimo de Prudência ou previsão na ação.4

Os três princípios de vida, representando uma expressão ético-estética da poiesis psicanalítica (Chuster, 1999, 2003, 2011, 2014, 2017, 2018, 2020), são uma espécie de produto final das proposições que Bion desenvolveu em sua obra sobre o estado mental adequado para o trabalho analítico.

A primeira proposição veio da poesia de T. S. Eliot (Four quartets): "trabalhar sem memória e sem desejo" (Bion, 1967c).

A segunda proposição foi descrita pelo poeta Keats como um estado mental necessário para alcançar a performance literária: capacidade negativa (Bion, 1970).

Bion (1975, p. 220) disse que Keats, com sua capacidade negativa, descobriu o Princípio da Incerteza. A afirmação de que um princípio matemático foi descoberto por um poeta, bem antes do físico quântico, nos leva às descrições de Bion (e também ao poema de Valéry) sobre um ponto de poiesis que tentarei esclarecer adiante.

O analista, ao se situar diante da existência desse ponto de indecidibilidade (incerteza), tem uma experiência emocional, por meio da qual procura alcançar a singularidade do analisando, e aí, se puder adotar como prática os três princípios de vida, se encontra, sempre de uma nova forma, diante da escolha5 da estrada de palavras (interpretação) a ser trilhada.

As palavras podem ser provenientes de muitas disciplinas, com a condição de seguirem um critério (Prudência na ação) no campo analítico, ou seja, serem utilizadas para a observação do objeto psicanalítico em três áreas integradas: mitos, sentidos e paixões (Bion, 1962b, 1963). Em diversos trabalhos, mostrei que são integrações ético-estéticas (Chuster, 1999, 2003, 2011, 2014, 2017, 2018, 2020, 2021), que pensam o mundo de forma intuitiva, não discursiva, e que se opõem ao conceito de narrativa que usarei mais adiante.

Encontrei em Hölderlin (Werle, 2005) uma afinidade poética (Safransky, 2021) para o que acabei de dizer, o poeta, ressaltando o vértice infinito da linguagem (da mesma forma que Guimarães Rosa), descreve uma "tripla natureza do Eu poético, pelo qual é possível operar a transição de um infinito determinado para um infinito mais geral". A tripla natureza de Hölderlin é constituída pelo sujeito (paixões), objeto (mitos) e humano (sentidos).6

Keats, com a expressão capacidade negativa, estava se referindo a um ponto em que enfrentamos algo que não possuímos, algo que requer a capacidade de tolerar uma tripla natureza: as incertezas, os mistérios e as meias verdades,7 com o critério de não ficar ansioso para entender e encontrar significado. As decisões executadas nesse ponto, através das palavras e da linguagem, resultam num Homem de Êxito (Man of Achievement) em literatura, que Keats exemplificou com Shakespeare e sua obra.

Bion (1970) trocou o substantivo Homem pelo substantivo Linguagem e postulou uma Language of Achievement, afirmando que a obra de Freud é um exemplo dessa linguagem. Não deveríamos então chamá-la de linguagem de alcance psicanalítico?

Bion (1970) também complementou suas ideias sobre a Language of Achievement usando a expressão Ato de Fé, o que significa que a linguagem psicanalítica deve intencionar a busca da verdade, não para encontrá-la, mas para que um ato de criação (poiesis)8 se estabeleça (Nietzsche).

Utilizei o verbo relativo a "intenção", não no sentido de um desejo, e sim no de uma invariância (Bion, 1965), uma direção que podemos escolher baseada na surpresa que a experiência emocional nos causa.

Na prática psicanalítica isso significa que o analista escuta diversos tipos de narrativas em seu consultório. Temos narrativas sobre o dia a dia das coisas da vida, discurso científico sobre os problemas do mundo físico, preocupações religiosas, narrativas históricas sobre eventos que ocorreram ou que se supõe estejam ocorrendo, discurso sociológico/político sobre as instâncias práticas da sociedade. É necessário, todavia, levá-los, com o uso da capacidade negativa, para uma direção do limiar que se aproxima do que pode ser o limiar do discurso poético. Se desse limiar, uma interpretação emergir, esperamos que possa ser, se não uma Language of Achievement, pelo menos uma linguagem de alcance psicanalítico.

Penso que esse limiar pode ser também chamado de cesura (Bion, 1977b), outro conceito vindo da poesia. O significado original é uma pausa no interior de um verso, mas trata-se de uma pausa que ao mesmo tempo separa e liga dois estados mentais distintos, uma pausa que produz continuidade e diferença.

Novamente surge a questão: como estabelecer um critério (como fazem cientistas e poetas), quando estamos trabalhando com psicanálise, para diferenciar a linguagem de alcance psicanalítico da linguagem que é simplesmente poética. Mais adiante incluirei a linguagem de Substituição (Bion, 1970) nessa diferenciação.

Para tal diálogo vou parafrasear Bion (1979) com duas perguntas: como tornar nossa escuta psicanalítica capaz de atingir o limiar poiético (cesura)? Pode esse limiar nos tornar melhores analistas?

Existiria algo - em analogia com Hölderlin - que poderia ser chamado de um Eu psicanaliticamente poiético (Chuster, 1996, 1997, 2014, 2018, 2020, 2021)? Aquele que opera com capacidade negativa, inserindo a intuição numa imaginação capaz de investigar a relação finito/infinito, até publicá-la em uma interpretação.

Por exemplo, posso utilizar nessa investigação um mito, um sonho, ou um pensamento onírico.

Escolho então o mito de Satã, descrito por John Milton em Paradise lost (a versão deste para o mito de Édipo9), como um modelo de Linguagem de alcance psicanalítico para pensar no conceito de transformação em O (Bion, 1965). Ao fazê-lo, digo que adoto Fernando Pessoa, com "o mito é o nada que é tudo".

A riqueza imaginativa fornecida pela linguagem da queda mítico-poética de Satã mostra um personagem que, em virtude da curiosidade sobre sua personalidade, está constantemente caindo no espaço em direção a um infinito, vazio e sem forma, e, quanto mais ele cai, mais cai em si mesmo.

A expressão cair em si mesmo traduzo pelo subtítulo de Nietzsche em Ecce Homo, "como chegar a ser o que se é", ou como tornar-se o Ser que verdadeiramente somos. Encontramos dificuldades em todos os idiomas para achar uma expressão adequada para a correlação entre Ser e tornar-se. Tal dificuldade é típica da abertura das palavras para o infinito.

O tornar-nos quem verdadeiramente somos é uma queda, uma mudança catastrófica (Bion, 1966), no sentido de que o estado anterior nunca pode ser totalmente reconstituído. Apesar de toda a atividade desconstrutiva, entretanto, a queda é poiética - é uma forma de criação, uma transformação. O que é criado é precisamente o advento de um novo sujeito, nunca dado, mas duramente conquistado no curso de uma luta por liberdade interna.10

Em outras palavras, a função do mito, enquanto cria um limiar poiético, pode ser descrita, em primeiro lugar, como função restauradora da intuição analítica. Mas trata-se também de pensar mais (evolução) sobre a afirmativa kantiana: toda intuição sem conceito é cega, todo conceito sem intuição é vazio, a questão é como eles podem ser juntados.

Intuição e conceito são vinculados num espaço-tempo de resultados incertos. É nesse espaço de incerteza que podemos encontrar uma importante contribuição de Bion. Ele foi além de Kant quando deixa implícito que intuição e conceito são ligados por meio da imaginação (Chuster, 2020, 2021).11

Bion define o mito, em Elementos de psicanálise (1963), como uma forma básica de pré-concepção e um estágio pelo qual o conhecimento individual é comunicado ao grupo: uma public-ação. Seguindo Hölderlin, trata-se da tripla natureza da linguagem, passando de um infinito individual para o geral.

A pré-concepção abre o caminho para a vida mental, através da realização que gera concepções e conceitos. A realização expressa um pensamento antecipatório12 (Bion, 1979), um movimento transitório.

Como linguagem matemática, a linguagem de realização é uma sucessão de conjuntos infinitos se combinando, criando um futuro, ao permitir a escolha de uma direção em que um padrão simbólico será encontrado (Matte-Blanco, 1975).

O padrão encontrado, todavia, que podemos chamar de linguagem de restauração, não perde a incerteza antes presente na pré-concepção, ou naquilo que ela contém de representação da complexidade da vida, criando uma inevitável tensão.

Essa tensão, ou turbulência emocional (Bion, 1977a), é comum a toda criação. Quando levamos em conta as alterações na observação produzidas pelo observador, a tensão fica maior, e faz-se imperativo considerar que, de fato, somente em um passo à frente, no futuro que ainda não aconteceu, é que encontramos uma continuidade de pensamento ou mesmo o pensamento em si.

Pode parecer uma contradição se digo que o que penso não está no presente, mas no amanhã que ainda não aconteceu. Tal contraditório, entretanto, existe apenas no determinismo psíquico, não na Teoria da Complexidade, pela qual se acolhem as hipóteses mais imaginativas e fictícias, como também aquelas que constituem o lugar-comum.

Posso aproximar as afirmativas acima do "misticismo filosófico" notavelmente representado por William Blake. Blake certamente não era filósofo, mas enquanto poeta era um visionário, e assim evolui para restaurar um ponto em que não se pode separar a poesia da filosofia, ao dizer: "Eu escrevi esse poema ao mesmo tempo sem nenhuma reflexão e contra a minha vontade... não fui nada mais do que um secretário. Os autores permanecem na eternidade".

De certa forma, Blake está se livrando de suas memórias e de seu desejo para explicitar o que causa seu ato poético - linguagem de restauração ou realização?

No "Casamento do inferno com o céu", Blake (2008) afirma que a razão pela qual Milton escreveu Paraíso perdido foi o fato de ter tanto de poeta verdadeiro, "quanto de parte com o Diabo sem o saber". Observe-se que a visão artística e literária de Blake apreende o processo de criação associando a queda do conhecimento prévio, mostrando que não é o conhecimento que nos faz mudar, mas o enigma que nos invade. Esse enigma é "O", que é tanto um Onthos quanto um Opus (Chuster, 2014, 2018, 2021).

Esclareço: quando tentamos encontrar uma linguagem para expressar o enigma, ela estimula o pensamento enquanto abre para as emoções, que são subjetivas e nada acrescentam às narrativas sobre o mundo. O resultado necessariamente não aumenta o conhecimento, embora possa ser um prelúdio para o espaço do Ser através dessas emoções.

Suponha, no entanto, que o discurso narrativo usurpa nossas observações, substituindo o que poderia fazer emergir a experiência emocional (Bion, 1962b). Neste caso, torna-se uma linguagem de Substituição. Ela substitui a ação e não é prelúdio; ou seja, retira o potencial criativo da pré-concepção, podendo transformar-se em crenças e dogmas, e inibir a matriz amorosa geradora do prelúdio e da ação (Bion, 1970).

Narrativas são sempre o produto de memórias e desejos, obscurecem o enraizamento primário do Ser e endossam uma visão não crítica da realidade que se transforma em um conceito de verdade-adequação - que coincide com a produção de falsidades e mentiras.

Para ir numa direção diferente das narrativas, preciso da poiesis, e para expandir a afirmativa vou citar, mais uma vez, Fernando Pessoa, com o heterônimo de Alberto Caeiro.

Se algumas vezes eu digo que as flores sorriem

E se digo que os rios cantam

Não é porque eu penso que existem sorrisos nas flores

E canções nos rios

É porque desta forma eu faço os homens falsos sentirem

A real existência de flores e rios.

Adoto a poesia acima como modelo de descrição do espectro reverie/função alfa para a seguinte situação no trabalho do analista: quando entramos em contato com o paciente na sala de espera ele nos permite sentir o cheiro do movimento, a cor do silêncio, o gosto da presença, o som da pele, o ruído do olhar. Não sabemos o que captamos nesse mundo infrassensorial/sensorial até nos instalarmos na poltrona e, com esse prelúdio para a sessão, entrarmos no simbólico do ato analítico. Acaso e escolha se unem nesse ponto de Indecidibilidade.

Não existe nada de científico nessa descrição da realidade captada; eu não coincido comigo mesmo quando sigo essa forma de pensar. Eu discordo com o comum, com a forma coloquial, com a lógica trivial, entretanto, essa não coincidência é de onde surge a exatidão da linguagem psicanalítica. Posso exemplificar essa não coincidência nas passagens de Memória do futuro (Bion, 1975) em que existe o diálogo entre Bion, Myself e P.A. Os três não coincidem. Myself informa algo a Bion, que não coincide com Bion, que precisa publicar essa informação como P.A., também não coincidente com Bion ou Myself. Trata-se de um inevitável sonhar, que, como disse Quintana, é um acordar-se para dentro.

A linguagem de alcance psicanalítico é uma espécie de poética da exatidão, porque fala de sentimentos. Os sentimentos têm precisão matemática, assim explicitou Bion, e criam uma cesura que é como uma diferença transcendental para um momento específico do vínculo analítico. Volto aqui ao poema de Valéry, quando o matemático fica a serviço de um sonhador refinado.

Utilizo a expressão diferença transcendental como um sinônimo pessoal para o enigma, para "O" ou para a pré-concepção. A expressão propõe um diálogo sobre a psicanálise em Bion como uma prática da transcendência cuja poiesis nos tira da ética dramática voltada para a morte, e nos traz para o contexto de uma linguagem que tem a matriz amorosa pela verdade (Bion, 1970).

As afirmativas acima me levam a propor para a psicanálise o adjetivo de atividade prático-poiética (Chuster, 1997, 2006, 2021). Penso que essa é a mais antiga definição da techné, aquela que está em Homero,13 significando o decifrar de um enigma que faz trazer algo à tona (Chuster, 1997, 2014, 2018, 2021), ou fazer ser - sem perder o vigor do enigma - o que era para vir a ser.

A psicanálise é prática, porque seus participantes são parte ativa no processo, sendo o analisando o agente principal de sua transformação.

A psicanálise é poiética, porque é criativa, seu resultado confere uma nova forma de se relacionar com o inconsciente, promove o uso da estética das emoções na descrição do mundo, e nos leva também ao universo ético-estético da liberdade de pensamento.

Para finalizar, cito Bion (1965) dizendo que a interpretação deve fazer algo mais do que aumentar o conhecimento do analisando sobre si mesmo. Esse algo mais, fornecido pela estética das emoções e pela ética da sinceridade, pode favorecer o tornar-se o Ser que verdadeiramente somos, e assim gerar algo que melhora a qualidade de vida. Quando digo, contudo, "pode", é para não dizer que não falei da incerteza (ou de flores e rios).

 

Referências

Asimov, I (1986).. O que é o Princípio da Incerteza de Heisenberg? (E. Feldman, Trad., 3.ª ed.). Francisco Alves.         [ Links ]

Baaz, M. et al. (eds.) (2014). Kurt Gödel and the foundations of mathematics: horizons of truth. Cambridge University Press.         [ Links ]

Bion, W. R. (1962b). O aprender da experiência. Zahar.         [ Links ]

Bion, W. R. (1963). Elements of psychoanalysis. Heinemann.         [ Links ]

Bion, W. R. (1965). Transformations. Heinemann.         [ Links ]

Bion, W. R. (1966). Catastrophic change. Bull. Brit. Psychoanal. Soc., 5.         [ Links ]

Bion, W. R. (1967a). Differentiation of the psychotic and non-psychotic personalities. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 43-64). Heinemann (Trabalho original publicado em 1956)        [ Links ]

Bion, W. R. (1967b). On arrogance. In W. R. Bion, Second thoughts. Jason Aronson (Trabalho original publicado em 1957)        [ Links ]

Bion, W. R. (1967c). Second thoughts. Heinemann.         [ Links ]

Bion, W. R. (1967d). A theory of thinking. In W. R. Bion, Second thoughts. Jason Aronson (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (1970). Atenção e interpretação. Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1975). Uma memória do futuro (Vol. 1). Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1977a). Emotional turbulence. In P. Hartcolis (ed.), Borderline personality disorders. Int. Univ. Press.         [ Links ]

Bion, W. R. (1977b). The grid and cesura. Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1979) Making the best of a bad job. In W. R. Bion, Clinical seminars and Other Works. London: Karnac        [ Links ]

Bion, W. R. (1994). W. R. Bion: clinical seminars and other works. Karnac.         [ Links ]

Blake, W. (2008). Casamento do Inferno com o Céu. LP&M Books.         [ Links ]

Brandão, J. S. (1986). Mitologia grega (Vol. 1). Vozes.         [ Links ]

Castoriadis, C. (1987). As encruzilhadas do labirinto. Paz e Terra.         [ Links ]

Chuster, A. (1989). Um resgate da originalidade. Degrau Cultural.         [ Links ]

Chuster, A. (1996). Diálogos psicanalíticos sobre W. R. Bion. Tipo & Grafia.         [ Links ]

Chuster, A. (1997). The myth of Satan: an aesthetic view of Bion's concept of transformation in O. International Centennial Conference on the Work of W. R. Bion, Turim.         [ Links ]

Chuster, A. (1999). W. R. Bion: novas leituras. A psicanálise dos modelos científicos aos princípios ético-estéticos (Vol. 1). Companhia de Freud.         [ Links ]

Chuster, A. (2003). W. R. Bion: novas leituras. A psicanálise dos princípios ético-estéticos à clínica (Vol. 2). Companhia de Freud.         [ Links ]

Chuster, A. (2006) Transformações e significado In J. R. Avzaradel (Org.), Linguagem e construção do pensamento. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Chuster, A. (2011). O objeto psicanalítico. Instituto W. Bion.         [ Links ]

Chuster, A. (2012). Cesura e imaginação radical: obtendo imagens para a ressignificação da história primitiva no processo analítico. In J. R. Avzaradel (Org.), Sobre a linguagem e o pensar. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Chuster, A. (2013). A importância da imaginação do analista na prática clínica: um ensaio sobre a capacidade de se conectar com o mais primitivo. Trabalho apresentado na x Jornada Científica do Instituto Wilfred Bion, Porto Alegre.         [ Links ]

Chuster, A. (2014). A lonesome road: essays on the complexity of W. R. Bion's work. TrioSudios/Karnac.         [ Links ]

Chuster, A. (2017). Simetria e objeto psicanalítico; desafiando paradigmas com W. R. Bion. Trio Studio.         [ Links ]

Chuster, A. (2018). Capacidade negativa: um caminho em busca da luz. Zagodoni.         [ Links ]

Chuster, A. (2020). Psychoanalytical intuition in dream and waking life. Trabalho apresentado no Congresso Internacional sobre a obra de Bion, Barcelona, fev.         [ Links ]

Chuster, A. (2021). O enigma de Ulysses em Homero e James Joyce. Ide, 43(71), 126-146.         [ Links ]

Chuster, A. & Trachtenberg, R. (2009). As sete invejas capitais. Artmed.         [ Links ]

Chuster, A.; Soares, G. & Trachtenberg, R. (2014). A obra complexa. Sulina.         [ Links ]

Cormican, L. A. (1982). Milton's religious verse. In B. Ford (Ed.), The New Guide to English Literature. Penguin.         [ Links ]

Eliot, T. S. (1968). Four quartets (1.ª ed.). Houghton Mifflin Harcourt.         [ Links ]

Folina, J. (1992). Poincaré and the philosophy of mathematics. Macmillan.         [ Links ]

Freud, S. (1926). Entrevista a G. Viereck. The New York Times.         [ Links ]

Lacroix, J. (1979). Kant e o kantismo. Rés.         [ Links ]

Laplanche, J. (1993). La interpretación entre el determinismo y la hermenéutica, reenunciando el problema. International Journal of Psycho-Analysis, Libro anual de psicoanálisis. Escuta.         [ Links ]

Matte-Blanco, I. (1975). The unconscious as infinite sets: an essay in bi-logic. Duckworth.         [ Links ]

Meltzer, D. (1989). Notas sobre o processo introjetivo. Rev. Bras. Psicanál., 23(3), 125-133.         [ Links ]

Meltzer, D. (1992). Além da consciência. Rev. Bras. Psicanál., 26(3), 397-408.         [ Links ]

Morin, E. (2003). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (8.ª ed). Bertrand Brasil.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2001). Além do bem e do mal ou Prelúdio de uma filosofia do futuro. Hemus.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2018). Thus spoke Zarathustra. Wordsworth (Trabalho original publicado em 1883-1885)        [ Links ]

Nietzsche, F. (2019). Ecce homo. LeBooks.         [ Links ]

Paz, O. (1993). A outra voz. Siciliano.         [ Links ]

Pontes, H. (1998). Guimarães Rosa, uma leitura mística. Gráfica Sulminas.         [ Links ]

Quintana, M. (2005). Poesia completa. Nova Aguilar.         [ Links ]

Ray, C. (1994). Tempo, espaço e filosofia. Papirus.         [ Links ]

Robson, W. W. (1982). Paradise lost: changing interpretations and controversy. In B. Ford (Ed.), The New Guide to English Literature. Penguin.         [ Links ]

Safransky, R. (2021). Romantismo, uma questão alemã (R. Rios, Trad.). Estação Liberdade.         [ Links ]

Sandler, P. C. (2010). Bion e poesia. Jornal de Psicanálise, 43(78), 151-172.         [ Links ]

Werle, M. A. (2005). Poesia e pensamento em Hölderlin e Heiddeger. Editora Unesp.         [ Links ]

 

 

1 Ascensão de classe e revolução de costumes, como background do romantismo inglês.
2 Sturm und Drang, movimento de unificação do país, como background do romantismo alemão.
3 Temos desdobramentos dos teoremas de Gödel nos sistemas computacionais, na Teoria do Caos, na Teoria dos Fractais, na Teoria da Catástrofe e na Teoria da Complexidade.
4 O termo "prudência" é usado por Aristóteles designando a mãe de todas as virtudes, que se traduz por um continente ético para a estética das interpretações. Trata-se de uma ética de pensamento psicanalítico. A Prudência dá à luz o que chamo de barreira de contato ética (Chuster, 2020).
5 Uso o verbo "escolher" no sentido descrito na poesia The road not taken, de Robert Frost (Chuster, 2018).
6 Se quiserem, podem levantar a hipótese de haver elementos comuns nos romantismos inglês e alemão.
7 São as três facetas do objeto psicanalítico: pré-concepção (incerteza), complexidade (mistérios), meias verdades (espectro narcisismo-social-ismo).
8 Posso complementar esse aforismo nietzschiano com a famosa analogia de Fernando Pessoa da frase do general romano Pompeu: navegar é preciso, viver não é preciso. Pessoa disse: viver não é preciso, o que é preciso é criar. Que podemos entender como dar sentido à vida.
9 Aproveito para dizer que posso usar quaisquer aspectos do mito de Édipo.
10 Podemos entender esse movimento mítico-poético na linguagem de Bion como uma transformação de K->O (a transformação psicanalítica que pode ter como consequência uma transformação em O).
11 A imaginação, bem trabalhada no texto Transformações (1965), se refere à criação de um modo que nenhuma filosofia, com exceção da de Castoriadis (que era também psicanalista), dá conta. Todos falam de produção, desde Kant até Marx. A criação implode a ontologia tradicional, que é uma ontologia determinística, na qual se exclui a possibilidade de novas determinações.
12 Um dos três princípios de vida descritos por Bion (1979).
13 O surgimento da poesia de Homero, como infância da humanidade, assinala uma disjunção. Entusiasmado pelo fogo de Apolo, o poeta toma um gole de água sóbria roubada do cântaro de Juno. A cisão que lança contradições é a mesma que traz a liberdade.

Creative Commons License