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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo Jan./June 2022

 

RESENHAS

 

Dicionário de psicanálise de casal e família

 

 

Resenhado por: Suzana Grunspun

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Psicanalista de crianças e adolescentes (IPA). Psiquiatra. São Paulo / sgrunspun@uol.com.br

 

 

 

Orgs.: Ruth Blay Levisky, Maria Luíza Dias e David Léo Levisky

Editora: Blucher, 2021

 

 

Os bastidores de um dicionário

A obra foi elaborada em conjunto com 45 psicanalistas que se dedicam ao atendimento de casal e família. É constituída por 119 verbetes, mantém um padrão estabelecido pelos autores; em cada verbete é descrito seu conceito, sua etimologia, a evolução histórica do conceito e referência bibliográfica. Uma apresentação original que nos guia e esclarece. Fomenta a curiosidade do leitor em conhecer e aprofundar os tópicos apresentados.

O Dicionário de psicanálise de casal e família é a primeira publicação desse porte em língua portuguesa, o que nos faz reconhecer o esforço de todos os colaboradores pela ideia criativa e empenho na organização dessa publicação, que nos enriquece com sua consulta.

O dicionário propõe conceitos novos que desenham as teorias contemporâneas, e embasam a prática clínica. Janine Puget, psicanalista pioneira no atendimento em psicanálise de casal e família, prefacia essa obra e salienta:

as hipóteses de Freud acerca do funcionamento psíquico e da comunidade, deram lugar a múltiplos desenvolvimentos, como sucede quando uma teoria é suficientemente aberta para que cada um alce seu próprio voo... (pp. 11-12)

A importância dessa recente publicação está na contribuição de René Kaës, psicanalista, com trabalhos sobre a constituição do sujeito nos vínculos intersubjetivos, em seu prefácio ressalta:

Pode-se dizer que a construção de um dicionário como este se enquadra em diversos contextos e contempla diversas funções em espaços da realidade social, cultural, institucional e evidentemente da realidade psíquica... (p. 17)

O modo no qual o dicionário está organizado facilita seu manuseio, além de ser operacional. Amplifica o conhecimento, não só para os que trabalham com casais e famílias, mas também para aqueles que se dedicam ao atendimento de adultos, crianças, adolescentes e aos estudantes da área.

Cada colaborador contribui com coerência ao tratar de seu tema, a obra mantém equilíbrio teórico, tornando o dicionário fiel ao seu propósito. Os verbetes têm suas singularidades e possuem alguns termos em negrito com asterisco, estes são novos conceitos introduzidos e, ao segui-los, aprofunda-se as teorias subjacentes aos termos. As indicações das bibliografias após cada verbete são muito completas, engrandecem o dicionário, completam os conceitos e são sugestões de novas leituras.

Dentro dessa perspectiva, pode-se captar um fio condutor no Dicionário de psicanálise de casal e família, fruto de uma compilação científica de trabalhos de vários autores. Trata-se de uma obra em movimento, uma vez que os verbetes inseridos pertencem ao momento sociocultural em que vivemos, onde os valores de nossa época influenciam a construção de cada verbete. Humberto Eco, filósofo, semiólogo, no livro Como se faz uma tese, traz sua reflexão:

a importância em assinalar ser uma obra científica, aquela que reúne temas que se relacionam de forma orgânica e que poderão se modificar ao longo do tempo. Tendo em mente que o estudo deve fornecer elementos para verificação, contestação e permitir que outros contribuam e continuem a desenvolver os temas... (1996, p. 21)

Humberto Eco, denomina - tese panorâmica - um estudo reflexivo de um objeto específico sob o enfoque de diversos autores (1996, pp. 11-12). Proponho uma resenha panorâmica, escolhi alguns verbetes para ilustrar esse eixo teórico apresentado pelos organizadores.

No verbete vínculos, descrito por Ruth Blay Levisky (p. 557), as relações vinculares são abordadas de forma clara e objetiva, bem como conceitos clássicos da psicanálise são considerados. Um vínculo é construído a partir de acordos e pactos inconscientes que se originam com a função de preencher uma falta, um desamparo. Mesmo com as resistências iniciais entre os psicanalistas com a teoria vincular, ela continua em desenvolvimento por oferecer a possibilidade de nos familiarizarmos com sua estrutura e de expandir sua aplicabilidade. Nesse verbete, seguindo as sugestões dada pelos autores da obra, um asterisco marca a palavra subjetivação e assim pode-se pesquisar esse termo e complementar o conceito de vínculos.

Sandra Aparecida Serra Zanetti escreveu o verbete subjetivação (p. 511). Esse conceito é proposto como o processo de transformação assumido pelo Eu que está sob o efeito da intersubjetividade, isto é, das situações dos sujeitos do inconsciente do vínculo. A condição do processo subjetivação é a intersubjetividade. É no espaço intersubjetivo que o sujeito é representado e procura se fazer representar.

É importante enfatizar a necessidade de se introduzir uma organização para o entendimento da teoria dos vínculos no grupo e na família. No verbete metapsicologia do vínculo e tópica de terceiro tipo (p. 340), David Léo Levisky descreve uma metapsicologia adicional àquela proposta por Freud, na qual procura compreender os espaços gerados pelos vínculos em seu aspecto dinâmico, tópico e econômico, o aparelho psíquico é discutido sob o ponto de vista do sujeito singular e o conceito é agregado com o indivíduo no vínculo de suas relações tanto familiares, transgeracionais, sociais e culturais.

O verbete plural (p. 410), escrito por Solange Aparecida Emílio, explica a condição da pluralidade no sujeito. Aquele sujeito que se apresenta em uma sessão individual de psicanálise, ele também é plural, pois seu inconsciente foi e continua sendo constituído em vínculos intersubjetivos, por alianças inconscientes e por espaços psíquicos compartilhados. O sujeito individual é uma pluralidade organizada de pessoas psíquicas.

Quem desenvolve o verbete grupo multifamiliar (pp. 244-247) é Maria Luiza Dias, que explicita o método terapêutico, inclui reunião com todos os pacientes, seus respectivos familiares, terapeutas e pessoal auxiliar. A condução da reunião fica a cargo de uma pessoa ou de pequenos grupos que trabalham em coterapia. Uma vez definido o conceito essa autora contextualiza esse tipo de atendimento com o advento da pandemia de covid-19 e a necessidade do distanciamento social. Descreve as soluções e decisões para manter as reuniões de forma virtual.

Desse modo os problemas de atendimento durante a pandemia já estão atualizados nessa primeira edição. O dicionário é uma obra atual que permite sugerir revisões sistemáticas que possam ser inseridas à essa primeira publicação, pois a teoria evolui também diante de situações inesperadas, além de crises sanitárias, crises de valores e mudanças sociais.

Diante dos fenômenos que favorecem tensões e traumas, como os vivenciados atualmente durante a pandemia de covid-19, saliento o verbete resiliência familiar (pp. 463-464), escrito por Silvia Brasiliano. Sua definição considera a capacidade de uma família recuperar seus laços psíquicos de filiação e afiliação em situações potencialmente geradoras de crises. A utilização desse conceito em psicanálise não é consensual, o dicionário aborda temas que ainda estão em debate no próprio cerne da psicanálise. Do ponto de vista psicanalítico, a resiliência está ligada à clínica do trauma.

A psicanálise vincular formula novos paradigmas, uma teoria que ampliou a compreensão teórica além do sujeito singular. O vínculo (p. 439) é proposto em outra lógica, pois é constituído em um enquadre dinâmico, contínuo de subjetividades, esse verbete coube a Ruth Blay Levisky, é também denominado psicanálise das configurações familiares. Trabalha-se com base na observação do vínculo entre sujeitos numa dimensão intersubjetiva, ou seja, com o material que emerge na presença dos envolvidos, entendendo os vínculos entre os sujeitos e o grupo. A teoria das configurações de casal e família remonta a pontos muito significativos da vasta obra de Freud.

Freud foi um precursor e compreendeu as condições humanas desde sua origem, apontou a importância do desenvolvimento da vida mental individual ter sido alicerçada mesmo antes das organizações sociais mais complexas, nos primeiros grupos humanos, nas hordas primitivas. Freud em "Psicologia de grupo e a análise do ego" escreve:

As relações de um indivíduo com os pais, irmãos e irmãs, com o objeto de seu amor e com o médico, na realidade, todas as relações que até o presente constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais... (Freud, 1921/1976, p. 91)

Congratulo os organizadores do Dicionário de psicanálise de casal e família e seus colaboradores por terem se dedicado à composição dessa obra. A proposta de ter a psicanálise como referência, e a teoria dos vínculos como o instrumento de estudo e sua aplicabilidade no atendimento de casais e família é a realização de um projeto e sua publicação têm relevância no momento atual.

 

Referências

Eco, U., (1996). Como se faz uma tese (G. C. C. Souza., Trad., pp. 11-12.). Perspectiva.(Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Freud, S., (1976). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, p. 91). Imago (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

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