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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro June 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Anorexia: da urgência de uma nova prática clínica

 

Anorexia: the urgency of a new clinical practice

 

 

Betty Bernardo FuksI; Tatiana Silvera Porto CamposII

IDoutora em Comunicação e Cultura; Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ); Professora do Curso de Especialização Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Editora da Revista Trivium: estudos interdisciplinares
IIMestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ)

 

 


RESUMO

Neste artigo, realizamos uma reflexão clínico-teórica sobre o pathos da anorexia. Para tanto, selecionamos algumas contribuições importantes em termos históricos, recorremos às teorizações de Freud e Lacan, a contribuições mais recentes de psicanalistas contemporâneos e à nossa própria experiência clínica. O comparecimento dos quadros de anorexia e bulimia no cenário contemporâneo faz com que muitos os considerem como uma nova doença, e a cultura contemporânea, uma de suas principais causas. De acordo com a psicanálise, devemos questionar a veracidade destas conclusões. Mesmo considerando-se que a cultura contemporânea pode contribuir para a incidência da anorexia, esta não constitui novidade, já que os primeiros registros da doença datam do século XVII. Porém a gravidade destes quadros de sofrimento e o modo como alguns pacientes apresentamse hoje tornam urgente repensar alguns aspectos da prática psicanalítica.

Palavras-chave: anorexia; bulimia; clínica psicanalítica; contemporaneidade.


ABSTRACT

This article presents a clinical/theoretical reflection about the pathos of anorexia. For this purpose, several contributions of historical relevance were selected as references: the theories proposed by Freud and Lacan, more recent contributions by contemporary psychoanalysts, and experiences originated in the clinical practice with patients. The contemporary appearance of anorexia and bulimia has led some to consider them as new diseases, caused mainly by contemporary culture. According to psychoanalysis, the veracity of such conclusions should be questioned. Although the role played by contemporary culture on the incidence of anorexia may be considered, this is not a new phenomenon, since the first records of the disease date from the 17th century. However, the severity of this condition and the way some patients present themselves today urgently demand that some aspects of the psychoanalytic practice be reconsidered.

Keywords: anorexia; bulimia; psychoanalytic clinic; contemporariness.


 

 

O aumento crescente da anorexia e da bulimia vem, cada vez mais, obrigando o psicanalista a abraçar o destino de crítico da cultura que testemunha e a reinventar a disciplina freudiana. Entretanto, a própria frequência com que hoje estes quadros se apresentam na clínica colabora para que muito rapidamente se aceite a ideia de que, junto com a toxicomania, transtorno de pânico, estresse e depressões, eles constituem novas patologias. Parecem ignorar que tal designação foi construída pela psiquiatria atual a partir da descrição minuciosa de quadros sintomáticos bastante conhecidos por séculos e do apoio nas pesquisas de neurotransmissores, supostos causadores de transtornos psíquicos. Talvez seja redundante lembrar que não se trata aqui de o analista aceitar ou não os pressupostos básicos de outros campos de saber e sim de fazer valer os fundamentos da psicopatologia psicanalítica. Para tanto, sabemos, desde Freud, que isso só é possível se mantivermos a escuta clínica endereçada à tensão discursiva entre o que é da ordem do intemporal - a vida, a morte, as paixões avassaladoras, os afetos demoníacos - e o que é da ordem da História.

Arriscaríamos antecipar que, se a cultura contemporânea provoca a incidência da anorexia, a rigor esta não constitui nenhuma novidade, contrariamente ao que quer fazer crer a mídia na ambição sensacionalista de difundir a existência de uma nova doença. Todos sofremos o bombardeamento midiático sobre as causas da anorexia quando da morte súbita de uma modelo famosa ou de uma jovenzinha que, ao contrário do que se divulga, não morreu por conta da identificação histérica aos padrões estéticos contemporâneos que subentendem o corpo magro, mas porque decidiu pôr fim à vida por meio da anorexia.

Por outro lado, permanece a urgência de pensar outras abordagens clínicas, na medida em que hoje esses pacientes, ao contrário do tempo de Freud, descrevem seus males sem implicação, esvaziados de emoção, sem relevos, em encadeamento monótono, sem historicidade em seus relatos e apresentam forte resistência à entrada em análise. Soma-se a esse impasse clínico o fato de que a anorexia restritiva e a bulimia encontram-se entre as patologias que levam o sujeito à morte com frequência relevante. Logo, o trabalho multidisciplinar é imprescindível no atendimento ao paciente cujo sintoma anoréxico faz parte de seu estilo particular de subjetivação; e isso não deixa de ser algo novo para os herdeiros de Freud.

 

BREVE HISTÓRICO

Para empreender uma reflexão clínico-teórica sobre o pathos da anorexia, é interessante começar rastreando na literatura algumas contribuições importantes sobre o tema. Os primeiros registros datam do século XVII. Em 1689, Richard Morton, médico inglês, descreveu uma síndrome de atrofia nervosa baseada na perda do apetite, amenorreia e emagrecimento importante. Cem anos depois, na França, M. Naudeau descreveu uma síndrome nervosa cujo signo, uma intensa repulsa pelos alimentos, era o principal traço (Bidaud, 1998).

No século XIX, Pinel, preocupado com o os casos de distúrbios alimentares, realiza uma série de reflexões sobre a conduta alimentar de vários grupos sociais através dos séculos e estabelece uma analogia com os distúrbios alimentares de pacientes. A ideia era a de que cada sociedade e cultura produzem uma questão alimentar. Passa a agrupar sob o nome de neuroses das funções nutritivas algumas doenças, entre elas anorexia e bulimia ou "fome canina" (Bidaud, 1998).

Na segunda metade do século XIX, o inglês Willian Gull chama de anorexia histérica e em seguida de anorexia nervosa o estado de privação do apetite em certas pacientes. Na mesma época, na França, C. Lasègue, dono de uma grande sensibilidade clínica, constrói um conjunto de descrições e comentários sobre a psicologia da jovem anoréxica bastante semelhantes ao que hoje encontramos na clínica: a) a anoréxica aceita todas as restrições que a doença lhe suscita e não apresenta um desejo de cura; b) mostra-se, sempre, irredutível em sua atitude e apresenta um otimismo inexpugnável contra o qual vêm se quebrar súplicas e ameaças; c) demonstra um prazer extremado pelo exercício do autocontrole, prazer em controlar o terapeuta e prazer ligado a uma forma de autoerotismo que se mantém na fome aguçada que se permite sentir.

Lasègue ressaltou, também, alguns outros pontos clínicos que confirmam a atualidade de suas percepções. São eles: a) a ligação entre anorexia e depressão; b) a pregnância e a influência do meio ambiente na doença, principalmente no que diz respeito ao drama familiar em torno do jogo de forças que a paciente estabelece com aqueles que dela cuidam; c) o perigo do erro médico na condução da cura: "Com a histérica, um primeiro erro médico jamais é reparável. Nesse período inicial, a única conduta sensata é observar e calar-se" (Lasègue, 1873, citado por Bidaud, 1998: 17).

Tal como Lasègue, Jean-Martin Charcot, o grande neurologista francês, estava convicto de ser a anorexia um sintoma histérico. Inaugurou o método de isolamento terapêutico sob os cuidados de religiosas a pacientes que apresentavam os sintomas de anorexia ou bulimia. O afastamento dos familiares era revertido mediante a melhora da doente, a título de recompensa. Charcot considerava as religiosas aptas a cuidar das jovens internas por conta da longa e especializada prática que tinham com a doença (Bidaud, 1988). De fato, essas mulheres conheciam e estavam acostumadas a lidar com restrições alimentares encorajadas pela Santa Igreja. Pela tradição, algumas religiosas que alcançaram a santidade após a morte eram extremamente preocupadas com a medida da comida e o valor dos alimentos. Até mesmo alguns santos, como San Juan de la Cruz, observavam jejuns extremamente rígidos sob corpos quase que cadavéricos. Entretanto - diferentemente da anoréxica contemporânea cuja paixão pelo corpo delgado está vinculada ao restabelecimento do gozo impossível e, na maioria das vezes, a serviço da estética midiática -, a santa anorexia indica uma paixão de ordem diversa: elevar-se a Deus. No caso, o desejo de transcendência conduz o sujeito à experiência mística de aproximação com o Absoluto, o Fora da linguagem, a Coisa, aquilo que, paradoxalmente, sustenta a linguagem. Ao contrário da anorexia contemporânea presa à religiosidade obsessiva diante da imagem de magreza ideal, a santa anorexia se enquadra, perfeitamente, na troca simbólica que mantém os laços sociais. O trabalho social fundado e sustentado por muitas religiosas da Idade Média, apesar de seus corpos esquálidos, cadavéricos e quase sem força, testemunha, se assim é possível dizer, uma anorexia diferida da atual.

Com isso, chegamos a Freud e suas contribuições ao estudo da anorexia. Poucos anos antes de fundar a psicanálise, escreve um texto - "Um caso de cura pelo hipnotismo" (Freud, [1893] 1980) - no qual expõe a história clínica de uma mulher que apresentara episódios de anorexia pós-parto do primeiro e do segundo filhos. Freud diagnosticou o caso, embora não sendo o médico da paciente, como uma "histeria ocasional" (Freud, [1083] 1980: 172) cuja sintomatologia revelava uma "perversão da vontade" (Freud, [1083] 1980: 178). No relato do caso de Emmy von N. (Freud, [1895a] 1980), referindose à anorexia histérica, aproxima a recusa alimentar ao sintoma de conversão. A abulia de Emmy, a quem se atribui a invenção da cena psicanalítica por ter fabricado as proibições necessárias que conduziram Freud a se instalar fora da visão do analisando, foi diagnosticada porque, para ela, a ideia de comer estava ligada, desde a infância, a lembranças repugnantes cuja carga afetiva não sofreu diminuição. Sob o efeito da hipnose, a paciente revelou cenas repugnantes de refeições frias que era obrigada a comer junto com os irmãos doentes. Neste caso, a anorexia aparece referida a um trauma psíquico cuja lembrança recalcada retornava sob a forma de recusa a comida.

No "Rascunho G" (1895b/1980: 276), Freud chega a destacar os laços entre anorexia e melancolia. A equação proposta é: "Perda de apetite: em termos sexuais, perda de libido". Embora tenha reconhecido, nesse momento de sua obra, a "anorexia nervosa de moças jovens como uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu", não chega a classificá-la como uma psicose: "a neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia" (1895b/1980: 276). Na obra freudiana essa afecção é revista como um sintoma do recalque que incide sobre o erotismo oral. Éric Bidaud (1998), a partir da leitura da "Carta 105", observa que Freud faz "derivar a anorexia mental da corrente autoerótica na histeria" (Bidaud, 1988: 19), ao enfatizar a forte erotização da zona bucolabial que dá lugar à repulsa alimentar. Perguntando-se sobre os vômitos anoréxicos de uma paciente, Freud conclui, na referida carta, tratar-se da expressão do conflito intenso entre duas representações contrastantes (Freud, [1899] 1980). Imaginando-se grávida, sem poder abrir mão da fantasia de portar em si o filho de um amante imaginário, a paciente simultaneamente vomitava para não perder a beleza com que julgava agradar aquele homem. O que ganha relevo na leitura dessa carta é a possibilidade de estabelecer uma forte ligação da anorexia com o real do sexo e com a beleza enquanto forma de velar a castração feminina.

Finalmente, alguns anos mais tarde, em seu famoso estudo sobre o "Homem dos lobos", Freud se refere com mais clareza à anorexia como modalidade de "neurose feminina" a ser "examinada em conexão com a fase oral da vida sexual" (Freud, [1918] 1980: 133).

Abraham, Melanie Klein e Helen Deutsch trouxeram contribuições importantes ao entendimento da anorexia. Os dois primeiros analistas orientaram seus trabalhos em direção às fases pré-genitais do desenvolvimento (Bidaud, 1998). Já Helen Deutsch operou um giro na abordagem clínica da anorexia de modo criativo e original. A surpresa toma conta do leitor que tem a oportunidade de ler a apresentação de um de seus casos clínicos. Deutsch ([1947] 1999) estabeleceu condições de contrato absolutamente fora dos parâmetros clássicos da psicanálise com uma jovem anoréxica: deixava a paciente à vontade para ir e vir às sessões, interpretava muito pouco e tinha uma consciência muito clara de que era preciso um trabalho prévio para que a jovem viesse a se submeter a uma análise propriamente dita. Gênio clínico da analista que já se dizia preocupada com o número de casos de anorexia em sua época e adiantou-se muito em relação às intervenções clínicas que hoje percebemos necessárias. Anorexia nervosa (Deutsch, [1947] 1999) é um texto extremamente emocionante: acusa que o desejo do analista posto em causa faz avançar e renova a psicanálise.

 

QUERO NADA!!

Jacques Lacan - a partir da distinção conceitual entre necessidade, demanda e desejo - abre uma nova via ao entendimento e amplia o alcance da clínica psicanalítica em relação ao tratamento da anorexia e bulimia. Em "A direção do tratamento e os principio de seu poder" (Lacan [1958] 1998), enfatiza que é a criança a quem se alimenta com mais amor que recusa o alimento e joga com sua recusa como com um desejo (anorexia mental). Na história pessoal das pacientes anoréxicas e bulímicas, o Outro materno apresentase sem deixar margem para que o lugar da falta possa ser criado, isto é, responde rapidamente às demandas como necessidades, sem proporcionar o espaço necessário para que o desejo apareça. A mãe da anoréxica "empanturra-a com a papinha sufocante daquilo que ela tem, ou seja, confunde seus cuidados com o dom de seu amor" (Lacan [1958] 1988: 634). Num movimento de oposição, a criança, recusando-se a satisfazer a demanda da mãe de que coma, exige que esta tenha um desejo para além dela, porque é essa a via que lhe falta em direção ao desejo.

É bem conhecida a expressão "comer nada" cunhada por Lacan para designar o ato que denuncia a necessidade da anoréxica de que algo faça falta e reduza a onipotência do Outro. Em Clínica del vacío, anorexias, dependencias, psicosis, Massimo Recalcati (2003) retorna a essa trilha aberta pelo mestre de Paris e insiste em que a eleição da anoréxica de comer nada consegue tornar esse nada o objeto separador do Outro. É o que testemunha o relato de Vera, mãe de Alice, uma jovem de 15 anos internada numa clínica. Conta que, ao perguntar à filha sobre o que esta gostaria de comer, ouviu uma resposta aterradora: "Quero nada". Uma afirmativa que irrompe para a mãe como uma bofetada. Vera revela que a doença de sua filha trouxe um sentimento de perda indescritível: "eu sempre imaginava o meu mundo perfeito; desde que minha filha começou com essa história de não querer comer, ele caiu, e agora sinto-me sem chão".

No Seminário 4, A relação de objeto, Lacan ([1956-1957] 1995) enfocará, mais de perto, esse nada que exerce um poder de força entre o sujeito e o Outro. Através do nada - através do comer nada -, a anoréxica abre um furo no Outro. O nada aparece nesse seminário, como ressalta Recalcati (2003), como escudo e como suporte do desejo. Ou seja, eleger o nada constitui uma defesa subjetiva que salvaguarda o desejo, operando uma pseudosseparação entre o sujeito e o Outro. Como observa o analista italiano, a separação é um como se, porque a anoréxica se consome como pura atividade de negação, como uma oposição unilateral ao Outro. O sujeito não leva em conta a dependência simbólica em relação ao Outro, e por isso a radicalização da eleição anoréxica é uma "paixão absoluta pela liberdade em detrimento do vinculo imposto pelo significante" (Recalcati, 2003: 23).

A anoréxica come o nada e se oferece, pela via da identificação, ela mesma a ser esse vazio. "Tomo laxante para esvaziar tudo o que há dentro de mim", diz Alice, a jovem adolescente seca e esquálida. Seu corpo transforma-se em um semicadáver, se consome, mas apenas para abrir no Outro materno uma falta (Recalcati, 2003). Sua mãe insaciável e devoradora tem a tendência de reduzi-la a objeto real do próprio corpo. Através do não ao imperativo de comer, Alice institui uma diferença entre a demanda do alimento, que o outro tem, e a demanda de amor, demanda orientada em direção à falta que há no Outro.

Mas há um outro nada na anorexia, alerta Recalcati (2003), que se caracteriza pela dimensão psicótica dos casos considerados graves, não necessariamente tratando-se de estrutura psicótica. Um nada que, ao contrário do primeiro que está em relação ao desejo do Outro, diz respeito ao gozo do Outro.Trata-se de um nada congelado, impossível de dialetizar, e que expressa, justamente, uma recusa à alteridade do Outro. Para o autor, enquanto o nada na neurose é uma tentativa de afirmação do desejo, o segundo nada está referido a uma modalidade de gozo assexuada, sem relação com o falo e a castração. A inclinação à passagem ao ato, nestes casos, requer muita cautela do analista que, se dispondo a atendê-los, presencia, muitas vezes, uma possível vitória da pulsão de morte sobre a pulsão de vida.

Maria desenvolveu um quadro de anorexia aos 22 anos. Dizia ao longo de seu tratamento que foi interrompido abruptamente por terceiros: "optei pela anorexia porque se trata de uma morte lenta, indolor e até mesmo agradável". Maria sentia-se vitoriosa e em êxtase a cada corrida e/ou jejum que indicavam um empuxo do corpo à própria destruição. Diferentemente de uma histérica anoréxica que sacrifica o corpo para obter do Outro o signo de sua falta, o quadro de anorexia em Maria apresentava-se como prática de um gozo sem limite que se voltava contra ela.

Na clínica não é difícil diagnosticar um quadro de anorexia; principalmente porque o sujeito assume com muita galhardia o sintoma. Quando perguntada numa primeira entrevista sobre o motivo de sua vinda, a jovem respondeu: "Não dá para ver que tenho anorexia?". Esta resposta sob a forma de pergunta fez com que a analista, por instantes, tivesse a impressão de que a paciente estaria reconhecendo na anorexia um sofrimento. Uma percepção que durou pouco, pois, em seguida, a jovem continuou falando como se estivesse lendo os pensamentos do outro: "Mas veja bem: só estou aqui porque obrigada por meus pais; não acho que anorexia seja uma doença".

Em nossa experiência, o problema maior sempre recai sobre o diagnóstico da estrutura do sujeito que elege a anorexia como expressão subjetiva. De fato, trata-se de uma patologia que pode se apresentar tanto na neurose ou na psicose quanto na perversão. É digno de nota que quando a doença eclode num quadro de histeria ou de neurose obsessiva os impasses clínicos são sempre maiores do que o esperado. O sujeito anorético sempre visa um gozo, uma satisfação pulsional substituta que tende a ultrapassar a tendência homeostática do princípio do prazer; e veremos, mais adiante, o quanto isso dificulta a direção de uma cura, mesmo em se tratando de pacientes neuróticos.

Lacan ([1964] 1996) situa o desejo na cadeia significante, no intervalo do discurso do Outro, cortando os significantes; através da metonímia o desejo comparece e escapa: "é lá que desliza, é lá que foge como furão o que chamamos desejo" ([1964] 1996: 201). Ou seja, é a presença do real na estrutura significante, o objeto a como causa de desejo. Nesse mesmo seminário, apesar de ainda não ter designado a função de mais-gozar para o objeto a, Lacan parece tratar desta função quando delimita o estatuto do objeto a enquanto presente na pulsão, o que localiza na fantasia: "O sujeito se situa a si mesmo como determinado pela fantasia" ([1964] 1996: 175). A exceção estaria no caso da perversão; neste caso, temos "O sujeito que se determina a si mesmo como objeto, em seu encontro com a divisão da subjetividade" ([1964] 1996: 175).

Podemos levantar a suposição de que, nesses casos, trata-se de sujeitos determinados pela fantasia, fixados a uma identificação imaginária com o objeto em seu encontro com a divisão subjetiva, à moda da perversão. Lacan também afirmou que a fantasia é a sustentação do desejo, e não o objeto, e que essa posição de objeto assumida pelo perverso é uma posição de gozo.

Fenomenologicamente, o que se apresenta na clínica da anorexia-bulimia é uma metamorfose do corpo seguida da angústia de engordar e do êxtase de ver os próprios ossos aparecerem. Luciana afirmava: "Quanto mais vejo os meus ossos mais me sinto plena e satisfeita. E o azul das minhas veias me traz um sentimento de paz". Eis o testemunho de uma prática de gozo que dificulta ou mesmo impede o estabelecimento da transferência, motor da análise. Diferentemente do sujeito neurótico, que procura uma análise pela impossibilidade de realização do desejo, a clínica da anorexia testemunha sujeitos que têm como meta pulsional o gozo, sem que com isso esteja anulado o sujeito do desejo (Recalcati, 2003).

A bulimia também compartilha essa mesma dimensão do sofrimento da anorexia. Trata-se de duas faces do mesmo pathos. Enquanto a anoréxica se apropria do Ideal do corpo magro através da prática de privação, a bulímica tem crises de fome devoradora. Entretanto, compartilham o mesmo Ideal do corpo magro, que representa controle e perfeição, e a mesma ameaça da fome devoradora. A anorexia é almejada pelas bulímicas e a fome bulímica é uma ameaça compartilhada pelas anoréxicas. A bulimia seria, segundo Brusset, Couvrer e Fine (2003), o gozo ao mesmo tempo desejado e violentamente rejeitado da anorexia. Ao vomitar no final das crises de fome devoradora, a bulímica ostenta o fato de que nenhum objeto ou substância é capaz de preencher sua falta. O vômito realiza aquilo que o significante não realizou: depois de se empanturrar, corresponde a erigir um dique em relação ao desejo do Outro.

A leitura do material exposto em espaços virtuais pró-anorexia e pró-bulimia criados e visitados por um número crescente de adeptas (a participação é majoritariamente feminina, porém já há uma relevante presença masculina) ajuda a esclarecer melhor o jogo no qual o sujeito precisa reinar para que o Outro não o governe. Uma das principais temáticas destes blogs e sites é a afirmação de que Ana e Mia, denominações aí registradas para anorexia e bulimia, são estilos de vida. Um vocabulário específico é utilizado pelas participantes, que se identificam com o estilo - Ana Mia lifestyle. A troca de experiências, dietas e a promoção de campeonatos de jejum são aí estabelecidas.

Oi. Quero começar mandando algumas pessoas para a puta que pariu. Eu não preciso de vocês para que me vejam e julguem: "VOCÊ ESTÁ MAGRA", "VOCÊ ESTÁ GORDA". Primeiro, que se eu me importasse com a opinião dos outros eu continuaria com meu corpo normal que é o aceito por 95% do resto do mundo. Eu sou egoísta e estou moldando um corpo perfeito que eu escolhi para mim, e fodam-se vocês que se sentem incomodados com a minha decisão. Vão cuidar de suas vidas, continuem comendo e mantendo o corpo que vocês querem ter agora, mas no futuro quem vai rir da cara de vocês vai ser eu, rindo de vocês com quarenta anos, tudo acima do peso e não conseguindo emagrecer porque não conseguem largar os vícios engordativos que adquiriram durante metade de suas vidas [...]. É o seguinte: semana passada eu, Netotchka Malu e Mia que não tem blog nem nada, combinamos de ontem, na sexta, tomarmos Benflogim, 20 comprimidos. Marcamos hora e tudo mais. (Disponível em: <http://www.anorexianervosa.weblogger.terra.com.br>. Acesso em: setembro 2008)

Em geral, a literatura psicanalítica atribui o aumento dessas patologias em nosso tempo ao desenvolvimento maciço do capitalismo na sociedade de consumo. Sauret (2005) afirma que o capitalismo, a par e passo com a ciência positivista moderna, parece prometer na atualidade a recuperação do gozo que lhe fez falta (gozo perdido) e, simultaneamente a isso, promete ainda se acomodar aos "pequenos gozos" (Sauret, 2005: 11) de cada um. Dá ênfase à radicalização da evitação da castração que podemos observar na atualidade, ao ressaltar que um dos traços dominantes desse laço social - o capitalismo - reside no que Lacan qualifica de foraclusão da castração. Entretanto, isso não significa que seja possível reduzir a cultura contemporânea ao diagnóstico de psicose.

Outro aspecto da cultura contemporânea que merece ser perscrutado como elemento desencadeador de uma série de patologias de excesso é o da substituição da ordenação pelo simbólico, do laço social, por um suporte imaginário que tende a se fechar narcisicamente e a empobrecer os sujeitos (Sauret, 2005). O Um do narcisismo, que é a própria imagem do sujeito, parece ter substituído o Um do significante mestre, dos nomes do pai. Apesar desse parentesco com a psicose, isso não significa que os sujeitos contemporâneos sejam psicóticos. Embora o autor marque uma distinção no que ocorre na atualidade no âmbito das neuroses, observa que há uma série de sujeitos não psicóticos que encontram, nessa rejeição do sexual, um meio de se "desembaraçar das barras do sexual" (Sauret, 2005: 12). Isso, porém, não é sem consequências, traz outro tipo de sofrimento, distinto daquele do sintoma psiconeurótico.

Podemos facilmente reconhecer a cultura contemporânea como um Outro muito próximo da descrição relativa à mãe da anoréxica dada por Lacan. Em uma análise aproximada à de Sauret (2005), Recalcati (2004a) afirma que na atualidade há uma promoção do "sujeito-gadget". Ou seja, o sujeito é chamado ao lugar de consumidor dentro da lei atual do mercado, que não o leva em consideração. Valoriza apenas a produção de pseudonecessidades, que mascaram a falta, e a produção consequente de objetos novos, oferecidos como solução imediata. Isso, aliado ao discurso da ciência positivista, realiza certa anulação do sujeito do inconsciente e do desejo.

É nesse contexto que se destaca a alta incidência do par anorexia-bulimia como efeito da cultura contemporânea e, ao mesmo tempo, como oposição a ela. Como efeito, esse par é uma resposta ao Outro, na medida em que tanto a anoréxica quanto a bulímica se identificam com o lugar de objeto para esse Outro. Por outro lado, essas patologias fazem oposição à lógica de mercado, recusando os objetos que o Outro empurra goela abaixo, numa tentativa de manter o desejo - assim como na época de Freud o ataque histérico era uma ação de protesto contra a repressão da sexualidade.

Mas alta incidência não quer dizer que o sintoma seja novo, conforme vimos no início desta apresentação. O que é novo - o ideal do corpo magro, a ditadura da moda - é mais uma causa concorrente para o desencadeamento da anorexia na história do sujeito. História que não deixa de estar dentro da grande História da qual a psicanálise também participa. Preferiríamos mudar o sintagma novas patologias para o de nova clínica, na medida em que esta designação pode transmitir o desejo de Freud de que a psicanálise esteja sempre pronta para mudanças e reformulações.

Uma nova clínica voltada às evidências de que a política da repressão cedeu à política do imperativo de gozar a qualquer preço nos parece ser urgente. Vimos que a anorexia foi nomeada no século XVII e que, desde então, só faz aumentar, obrigando o analista a estender a clínica para fora do campo das neuroses ou até mesmo dentro delas, mas com particularidades que fogem ao campo da interpretação do sintoma. Isto nos convoca a rever, de um modo ou outro, os quadros que o próprio Freud reconheceu como pertinentes à sua época - neuroses atuais - mas para os quais não recomendava a psicanálise. É impressionante como a descrição que o fundador da psicanálise apresenta do ataque de angústia é extremamente semelhante ao que hoje chamamos de "ataque de pânico". Dos sete traços apontados atualmente pelo CID-10 como constitutivos do Transtorno de pânico, apenas um - a sensação de irrealidade - não foi apontada de forma direta pelo inventor do método analítico. Daí porque alguns autores aproximam o que hoje se chama de nova forma de sintoma a uma das mais antigas contribuições de Freud à clínica psicanalítica - à teorização das neuroses atuais, neuroses estas às quais atribuía uma falta de inscrição psíquica que inviabilizaria a aplicação do método analítico.

É esse vazio de representação em jogo também na anorexia que denuncia a sexualidade autoerótica na atualidade, isto é, o excesso de excitação sexual, cuja descarga inadequada (masturbações obsessivas em torno do tema da comida) ou diretamente no corpo (vômitos e jejum), como veremos mais adiante, impede a entrada em análise.

 

O IDEAL DO CORPO MAGRO

Freud ([1914] 1980) ressaltou o valor libidinal atado à constituição do Eu, investimento narcísico através do qual se dá a aquisição da imagem corporal pelo sujeito. Trata-se de uma identificação primária com o Eu ideal, identificação que se dá à moda da pulsão oral, ou seja: o sujeito incorpora essa unidade narcísica. A partir da intervenção de terceiros e de sua própria autocrítica, o sujeito se vê incapaz de "reter aquela perfeição" (Freud [1914] 1980: 111). É assim que surge o Ideal do eu, outra forma, menos imaginária, de buscar recuperar algo da perfeição e gozo infantis; o Ideal de eu funciona no registro simbólico.

No caso da anorexia-bulimia, vemos o mesmo Ideal do corpo magro estabelecido como objetivo a ser alcançado e como representante de perfeição. Aliás, perfeição é um significante recorrente no discurso anoréxico-bulímico. Propomos pensar o Ideal do corpo magro como um Eu ideal, e a anorexia-bulimia como um quadro clínico que fica estabelecido aí, nessa passagem de Eu ideal para Ideal do eu. Diante da intervenção de terceiros, o sujeito, ao invés de caminhar em direção a uma nova forma de Ideal, recua e reinveste em não abrir mão de um gozo de que outrora desfrutou, porém ao preço de ficar identificado imaginariamente; logo, aprisionado a esse Eu ideal. Aqui o sujeito sustenta o que quer no desmentido peremptório da realidade: "Eu sei que vou morrer... mas, mesmo assim, pretendo continuar assim".

Essa entrada do terceiro, apontada por Freud, seria o confronto com a castração, que no caso da anorexia-bulimia já é, de saída, insuportável para seu Outro materno. Sendo assim, não lhe é oferecido um suporte fálico especular que permita um trâmite simbólico eficaz. Ao invés disso, a anoréxica-bulímica é forçada a tamponar a castração com sua própria imagem. Como a imagem corporal necessita do Outro para ser constituída, esse Eu ideal anoréxico fica estabelecido como a solução para a castração. O controle que busca sobre sua imagem e seu corpo corresponde ao domínio (imaginário) do corpo pulsional. Porém essa imagem deve obedecer ao Eu ideal, mas não realizá-lo.

A imagem que a anoréxica vê no espelho é sempre distorcida, discrepante em relação ao real de seu corpo: por mais magra que esteja ela sempre verá um excesso de carne, uma excrescência que precisa eliminar. "Quando me olho no espelho depois de comer penso que estou grávida; e vem o desejo de cortar minha barriga com uma faca", dizia Maria. Sob a forma de brincadeira a analista pergunta: "então você come e pensa ter ficado grávida?". "Sim, logo quero fazer uma cesária", responde delirantemente.

O Ideal da anoréxica é tirânico, e assim seu projeto de domínio do corpo pulsional através da imagem converte-a em uma serva do impossível. Esse é o drama de uma jovem da comunidade Ana Mia que através da escrita do poema "Espelho" revela seu apego narcisista ao corpo e à voz imperativa e cruel do supereu que a açoita.

Ele tenta desviar o olhar, mas não pode / Então, reclama do meu desleixo, / critica minha postura, / diz que meu cabelo está desarrumado... / Além disso, minha barriga está enorme, e a bunda desproporcional. / Ele me conta que sou um pouco estrábica, / os dentes são tortos, o pescoço comprido demais... / Sugere também que a pele oleosa faz meu nariz parecer ainda maior, / e a roupa é cafona... / As coxas são grossas demais, / As sobrancelhas são esquisitas, o rosto muito redondo, / seios pequenos e murchos, / e um calo no pé... / Daí, ele me conta onde eu posso comprar uns frasquinhos. / E diz que a felicidade estará lá dentro./ Eu sei que ele está mentindo, / mentindo desavergonhadamente como sempre faz. Mesmo assim, eu vou comprar... (Weblog: Doce ilusão, disponível em: <http://www.doceilusao.weblogger.terra.com.br>. Acesso em: setembro de 2008).

O ódio à própria imagem testemunha a vivência de uma anoréxica que não encontrou no espelho o olhar benevolente do Outro, a erotização suficiente de seu corpo. Através do poema, a jovem testemunha que encontrou no espelho apenas juízo superegoico, isto é, a sentença que coloca a Lei contra o desejo e o desejo contra a Lei (goza) (Recalcati, 2003).

O que Alice diz a seus pais é que precisa de uma operação plástica para corrigir a imagem imperfeita de si mesma: "sei que com a plástica vou conseguir tirar estas gordurinhas que tenho nas costas e os meus vômitos vão passar". A mãe, Vera, diz para a analista que a filha tem razão, porque, de fato, "herdou o corpo da família do pai, sem cintura". E acrescenta: "acho que é uma chance real que temos de melhorar o corpo dela e com isso ela pode se curar dos laxantes e dos vômitos". A crítica materna empurra a filha à morte. Alice responde à rejeição materna, encarnando o ideal de perfeição no que concerne ao real do corpo.

 

A RETIFICAÇÃO DA DEMANDA

A clínica da anorexia-bulimia é uma clínica do corpo que se diferencia da clínica clássica da histeria. Em geral, a paciente é levada pela família, que também deve ser escutada. Seria um erro atender apenas a doença - anorexia. O drama familiar, os jogos de força estabelecidos entre a paciente e aqueles que dela cuidam precisam ser quebrados. A cada vez que Alice demandava algo (troca de escola, compra de acessórios, cirurgias plásticas) seus pais respondiam afirmativamente, mantendo a ilusão da satisfação da demanda tomada como necessidade.

Em geral, mesmo quando uma paciente vem por conta própria ao tratamento ela não tem certeza de que deseja realmente se tratar. Por outro lado, também não tem certeza de querer permanecer com a anorexia como resposta subjetiva desejante. Esse é o material transferencial que temos de início; uma transferência imaginária e frágil que precisa ser trabalhada. Como vimos, a anorexia-bulimia se compõe como uma resposta ao Outro. Sendo assim, criar uma indagação sobre essa expectativa imaginária pode propiciar uma abertura. A apresentação do analista como alguém que se dispõe a escutar o inconsciente, e não a retificar uma função orgânica, pode provocar algumas interrogações. É o que constatamos dentre as propostas de um tratamento preliminar para a clínica da anorexia-bulimia no livro La ultima cena: anorexia y bulimia, de Recalcati (2004b), como retificação da demanda. Mas, nesse processo de retificação da demanda, há de se ter um extremo cuidado no manejo clínico para não repetir o Outro materno típico da anorexia-bulimia: um Outro que responde às necessidades sem deixar margem para o desejo. Talvez este seja o principal motivo do fracasso dos tratamentos de abordagem cognitivo-comportamental na clínica da anorexia-bulimia, já que neles se assume o lugar de um Outro onipotente que sabe como curar um sujeito que se oferece como objeto, porém somente para provar, mais uma vez, a impotência do Outro. Essa abordagem acaba proporcionando o que a anoréxica-bulímica necessita para continuar gozando.

Dessa maneira, a direção do tratamento preliminar, ao invés de ser a de mobilizar o saber especializado do Outro, é a de colocar o sujeito para trabalhar. É fundamental que se dê o esvaziamento do Outro do saber, que não se permita que o saber seja tratado como comida. Empanturrar o sujeito com respostas, soluções objetivas, não produz nada além do reforço da própria anorexia-bulimia como resposta frente a um Outro que tem tudo.

Em contrapartida, geralmente os psiquiatras não indicam a psicanálise nesses casos, porque constatam uma resistência ao tratamento pela palavra, e pelo tempo que uma análise pode tomar. Tempo que, nos casos mais graves, não se tem. Concordamos que considerar a anorexia-bulimia como um sintoma psiconeurótico é infrutífero. A partir desta análise da arquitetura anoréxica-bulímica e sua relação com o Outro, podemos pensar em um manejo clínico diverso, sem deixar de fazer valer os conceitos fundamentais da psicanálise. Nesse preliminar da clínica da anorexia-bulimia, o acolhimento, a escuta, o esvaziamento do Outro do saber são fundamentais. Observamos que os efeitos desse primeiro momento da transferência se traduzem em atuações e depois em actings-out.O acting-out é o endereçamento transferencial que abre a oportunidade de a intervenção do analista ter um efeito de virada na análise. Mas constatamos também que essa intervenção do analista deve ser em ato, já que a anoréxica-bulímica tende a tomar a interpretação como resposta-saber-comida e, assim, anular seu efeito.

Maria chegou à sessão e pediu para ir ao banheiro; horas depois o vaso entupido dava indícios de que algo fora depositado ali. Ela havia atirado barras de cereal que era obrigada a comer pela equipe médica e escolheu, não por acaso, o banheiro da analista para dispensá-las. Na sessão seguinte a analista disse a ela que não iria denunciá-la sobre o ocorrido, mas que não poderia estar conivente com isso. Foi estabelecido um pacto de que se ela repetisse aquela atuação o tratamento seria interrompido. Desse momento em diante inaugurou-se outro lugar transferencial fora do tratamento do distúrbio alimentar e dirigido àquela analista.

A prática psicanalítica trabalha com um movimento de subtração, de criar uma falta, um furo no saber que possa abrir espaço para a dimensão inconsciente do discurso, e consequentemente, fazer o sujeito trabalhar. Porém é necessário admitir que isso pode vir a levar bastante tempo e, nos casos mais graves, realmente não se tem este tempo. A anorexia restritiva está entre as patologias psiquiátricas que levam, como já dissemos, o sujeito à morte com frequência relevante. Porém deve-se considerar que ela ainda é uma defesa contra a morte.

Pedro desenvolveu um quadro de anorexia quando começou a trabalhar na profissão que disse ter sido escolhida pelo pai. Depois de um ano de tratamento com uma equipe cognitivo-comportamental, recomeça a apresentar os sintomas restritivos da anorexia que foram logo coibidos. Faz uma tentativa de suicídio. Passado algum tempo, procura a ex-analista e conta o que o levou à passagem ao ato: "Não tive opção, depois que me forçaram a voltar ao trabalho que eu odiava e diante da situação de ser cuidado por enfermeiros que passaram a impedir minha morte lenta". A anorexia ainda era uma possibilidade de Pedro jogar com sua recusa de se alimentar como um desejo.

Nesses casos mais dramáticos, o trabalho multidisciplinar, como já se disse, torna-se uma indicação necessária. Acreditamos que a escuta analítica, passando a fazer parte do tratamento, seja uma alternativa ao Outro especialista que faz diferença e, assim, possa contribuir para que o tratamento se torne realmente eficaz, na medida em que proporcione, além da dimensão da necessidade, um espaço para o desejo.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 23 de abril de 2009
Aceito para publicação em 12 de março de 2010

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