SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42 número1Anorexia: da urgência de uma nova prática clínicaMarcas do abjeto na arte contemporânea índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

As faces do pai

 

The faces of the father

 

 

Cynthia De Paoli

Psicanalista; Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID)

 

 


RESUMO

O cotidiano da clínica nos defronta cada vez mais com impasses diagnósticos impondo uma revisão nos fundamentos teóricos da psicanálise. Psicanalistas se lançam em esforços teóricos buscando constituir um fazer-saber que responda às angústias do homem contemporâneo. Acreditamos que a referência à Alteridade é um diferencial na abordagem clínica, decidindo por um fazer que procure equilibrar a estrutura subjetiva através de suplências, privilegiando a inserção no laço social, ou por um fazer que busque o sentido através da interpretação.

Palavras-chave: alteridade; laço social; sintoma; suplência; interpretação.


ABSTRACT

Nowadays, the idea of diagnosis in psychoanalysis has become suspicious. As often as not, psychoanalysts relate situations which cannot be classified by traditional psychoanalytical theories and that have, therefore, been overlooked. We would like to make considerations about new ideas that some psychoanalysts have developed in order to understand human suffering. We think that today some people deal with Alterity in a different way than they used to in the past. That point interferes in psychoanalytical treatment in a radical way, making psychoanalysts decide which orientation each particular treatment must have: if they will strive for balance and insertion in the social bond or if they are going to work searching for the unconscious meaning through interpretation.

Keywords: alterity; social bond; symptom; supply; interpretation.


 

 

A psicanálise é um fazer que acontece na particularidade da escuta de cada analisando, na forma pela qual é afetado e responde ao real que o atravessa. Ela opera sobre o sintoma, reduto primeiro e último do sujeito.

Muito se tem dito sobre uma nova sintomatologia na contemporaneidade, considerada por alguns decorrência do esvaziamento da autoridade paterna no seio familiar; já por outros, determinada pelo avanço da ciência e velocidade da informação, ou ainda, por um capitalismo selvagem. Concordamos com essas ponderações, contudo acreditamos fundamental investigar o contexto no qual se inserem as manifestações sintomáticas na referência à alteridade.

Para tal, partiremos dos pressupostos lacanianos construídos em meados do século XX, particularmente os desenvolvidos em O Seminário, livro 5 - As formações do inconsciente, onde Lacan (1957-1958) considera o sintoma uma metáfora construída a partir da mensagem invertida que vem do Outro, uma resposta ao "Che vuoi?", enigma do desejo do Outro. A teoria neste momento é totalmente construída na referência à alteridade, ponto de inflexão do sujeito.

Se acreditarmos que a dimensão alteritária se apresenta de forma diferenciada na clínica hoje, devemos não só interrogar a atualidade dos fundamentos da psicanálise como também examinar os novos esforços teóricos que visam responder à angústia do homem.

 

EM TEMPOS EM QUE O OUTRO EXISTE

Lacan trouxe contribuições teóricas importantes para a teoria psicanalítica formulada por Freud. Na tentativa de estabelecer uma maior precisão nas construções freudianas, procurou afastá-las dos mitos, reduzindo-as à estrutura para então transportá-las para o campo do significante.

O mestre francês acredita que a tragédia de Édipo espelha a lógica da construção subjetiva, assim como a definição sexual. Contudo, ele opõe-se a Freud ao acreditar que a questão central da tragédia repousa na figura do pai, sustentáculo da lei e limite para a voracidade do desejo. Para Freud, o amor da mãe e a rivalidade com o pai viriam a gerar sentimentos complexos que acompanhariam os homens por toda a vida: a angústia de castração e a inveja do pênis.

A percepção da castração materna, ou então, a percepção da falta no Outro seria o que introduziria o infans numa postura interrogativa, corte este que permitiria que uma atividade simbólica se constituísse.

Lacan diria que a interferência do pai junto à mãe é o que permitiria que a criança fosse desalojada da posição de falo materno, possibilitando um deslocamento subjetivo do ser para ter, conduzindo à significação do falo. O falo é, então, o significante da perda de gozo advinda da entrada do sujeito no campo da linguagem, é o preço a pagar para aceder ao campo do desejo.

Com a transposição do Édipo para o campo da linguagem, a função paterna passou a ter estatuto de significante Nome-do-pai. O pai do romance familiar seria agente autorizado do pai simbólico, transmissor da lei e da tradição. Lacan afirma que o significante Nome-do-pai é o nome do desejo materno, definição que se prolonga até o Seminário, livro 16 - De um Outro ao outro (Lacan, [19681969] 2008).

A orientação do tratamento analítico privilegiava a atividade simbólica e o estabelecimento da metáfora paterna em detrimento do campo imaginário presente no discurso. A linguagem era o tesouro dos significantes, o campo do Outro.

A ênfase do tratamento analítico estaria na forma com que o sujeito se confrontasse com a falta de objeto, uma vez que Ding é para sempre perdido. A falta-a-ser, o nonsense no discurso, os atos falhos e chistes eram efeitos do real sobre o sujeito.

Em O seminário, livro 3 - As psicoses, Lacan ([1955-1956] 1985) apresenta mais claramente uma perspectiva estruturalista descontinuísta entre os quadros clínicos, determinada pela presença ou ausência do significante Nome-do-pai.

Na neurose, o significante Nome-do-pai legisla sobre o gozo, permitindo que se institua o objeto de desejo. Já a psicose seria decorrente da foraclusão deste significante regulador do gozo, o que deixa o sujeito indefeso frente à angústia que o invade, restando marginal ao código social. Para Lacan, o delírio, apesar de não ser percebido pelo sujeito como um discurso próprio, mas imposto a partir de uma exterioridade, seria uma tentativa de estabelecer um laço com o Outro.

 

O DECLÍNIO DO SIGNIFICANTE NOME-DO-PAI

Em O seminário, livro 8 - A transferência, Lacan ([1960-1961] 1992) apresenta a dimensão trágica do desejo do filho na relação com o pai. Através de uma análise da trilogia de Paul Claudel, ele anuncia o declínio da função paterna, apontando não só a degradação dos personagens masculinos, sua falta de compromisso com as instituições que representam, tanto no âmbito político quanto no religioso, mas também a decadência e o fracasso do pai do romance familiar.

Em 1958-1959, no Seminário, livro 6 - O desejo e a interpretação, Lacan analisará a tragédia de Hamlet, ressaltando a relação com o pai que ressurge como morto desde o inicio da narrativa. O pai aparece a Hamlet como um fantasma, o assombrando ao relatar o ocorrido: ele fora traído pela mulher e assassinado pelo irmão, que almejava o trono. O pai ressurge em sonho, privado do falo, pedindo ao filho que o vingue.

Lacan pretende expor a todos o fracasso do pai-rei como mantenedor da lei: destituído do poder e assassinado, não legislara sobre o gozo materno, não interviera em seu desejo devorador. O pai de Hamlet, destituído de sua função simbólica, não permitira ao filho construir uma metáfora que o apaziguasse frente ao real da castração. Muito ao contrário, o falo imaginário esteve sempre lá, presente e ostentado pelo tio, que toma sua mãe como esposa, em exuberante onipotência. Hamlet quer vingar o pai, matar seu tio e reaver o trono ao qual teria direito, contudo não o faz; paralisado e impotente, procrastina o ato que deseja realizar.

Lacan compara Édipo a Hamlet na sua referência ao pai: se Édipo não sabia de seu crime, Hamlet sabia de seu desejo. A ambivalência em relação ao tio devia-se à admiração que nutria por este na medida em que se antecipara e realizara seu desejo, matando seu pai. Cláudio era então quem verdadeiramente legislava: todo poderoso, não experimentava limites para seu gozo.

Hamlet parecia ora neurótico, ora perverso, ora psicótico, tal era a oscilação que o habitava. O assassinato do tio só se consumou às expensas de seu amor por Ofélia, afeto este que o levou a um processo de despersonalização e confusão tal que veio a incorporar a potência fálica inerente ao objeto de desejo. Contudo, ao exercer esse ato, Hamlet paga com o sacrifício da própria vida.

Lacan sustenta que a problemática de Hamlet, a referência ao pai, a exterioridade ao campo do desejo, sua confusa busca identitária - ser ou não ser - fazem dele um exemplo de herói moderno.

 

A INCONSISTÊNCIA DO OUTRO

Constatamos que os ideais que hoje norteiam os desejos sofreram alterações radicais, se os compararmos com os anseios do homem nos tempos do patriarcado. Se no mundo judaico-cristão havia consenso universal sobre a lei, podemos dizer que os valores éticos e morais não são mais unânimes em nossos dias1. Os parâmetros a seguir são determinados por grupos locais e/ou regionais que, como diz Miller (1997), resolvem o que seja verdade em comitês de ética, de acordo com os interesses de cada paróquia (Laurent & Miller, 1997).

Para ilustrar, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre uma pesquisa recentemente divulgada nos meios de comunicação, feita pela Organização das Nações Unidas, e que avalia o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH2. Nessa pesquisa interrogam quais são os valores que deveriam reger o grupo civilizado. As respostas foram: honestidade em primeiríssimo lugar, depois respeito, amizade, solidariedade, etc. Enfim, através de uma pesquisa que avalia a qualidade de vida, tenta-se estabelecer parâmetros e metas a alcançar pelos integrantes de um dado grupo social. As respostas vão ao encontro de valores que uma vez foram inquestionáveis e agora causam surpresa...!

Se a verdade não é mais uma questão interna, uma busca de um saber próprio sobre o desejo e o inconsciente, somos levados a concluir que a Alteridade não porta mais enigma algum. O che vuoi?, interrogação que emerge frente ao desejo do Outro, não mais inquieta. A compulsão ao gozo não é apenas um direito, mas um imperativo moderno. A angústia surge quando não desfrutamos como deveríamos. A verdade deixou de ser o que se almeja atingir, algo a ser imajado num aprofundamento sensível, para ser supostamente alcançada no site de busca da Internet.

Vivemos num tempo em que as leis se fluidificaram, como diz Bauman (2001), não são mais sólidas ou imutáveis. Ao contrário, a fluidez que apresentam está referida às modificações que sofrem de acordo com as circunstâncias, como os líquidos que se amoldam aos diversos recipientes que irão preencher.

Da mesma forma, vislumbramos uma significativa mudança na vida afetiva, se é que se pode ainda falar assim, tal é a superficialidade e rapidez com que se faz e se desfaz de amigos e parceiros na atualidade. A depressão e apatia são sintomas presentes num número cada vez maior de solitários acompanhados e desacompanhados.

Não há dúvida de que estamos em outro momento e de que devemos interrogar a adequação dos pressupostos teóricos da psicanálise construídos na primeira metade do século XX.

 

A CLÍNICA PSICANALíTICA HOJE

O cotidiano de nossa prática fez constatar que, cada vez mais, os diagnósticos de neurose, psicose e perversão apresentavam dúvidas. Os casos que fugiam à classificação convencional, por alguns denominados borderline, eram inúmeros, exigindo uma revisão conceitual. A fenomenologia mostrou a urgência de constituir um novo saber sobre a angústia do ser falante.

Um trabalho investigativo teve início. Foram promovidos encontros do Campo Freudiano com o propósito de repensar a clínica. Os resultados foram publicados por Jacques-Alain Miller nos livros: El conciliábulo de Angers (Miller, 1997), Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica - a conversação de Arcachon (Miller, 1998) e La psicosis ordinaria: la convención de Antibes (Miller, 2009), esta que, na verdade, aconteceu em Cannes. Eles compõem uma trilogia em que relatos clínicos ressaltam a maior incidência de neologismos, desencadeamentos abruptos de surtos em quadros clínicos sem características de psicose ou, ainda, neodesencadeamentos, a presença marcante de novos fenômenos corporais e, principalmente, outras formas de transferência. A interpretação do inconsciente, que deveria operar como um corte no discurso, produzindo novas associações, não se mostra tão profícua como antigamente.

 

A FORACLUSÃO GENERALIZADA - A PSICOSE ORDINÁRIA

Se Lacan relacionou a crise dos costumes com o declínio da função paterna, J.-A. Miller foi além, ao asseverar que na contemporaneidade haveria uma foraclusão generalizada do significante Nome-do-pai. As questões que se sucedem a essa assertiva são óbvias: se a foraclusão é generalizada, podemos dizer que todo mundo delira? Somos todos psicóticos?

Miller anuncia a presença de uma psicose ordinária no cenário atual. A psicose ordinária diria respeito a uma estrutura subjetiva frouxa e bastante precária simbolicamente, mas que não apresenta delírios ou alucinações - os fenômenos elementares da psicose tradicional. Entretanto, desorganiza-se subitamente em momentos de grande angústia. Como inserir tais pessoas no campo psicanalítico?

 

UMA CLÍNICA DE SUPLÊNCIAS

Lacan (1973-1974), ao nomear o Seminário, livro 21 - Les nondupes errent, em português, os não-tolos erram, utilizou a homofonia para acentuar a amplitude do conceito.

A proximidade de Les non-dupes errent (Lacan, 1973-1974) e Les noms du père está referida à característica de exceção em que se constitui o Nome-do-pai, algo em que se crê e que funciona como um ordenador subjetivo.

O significante Nome-do-pai estabiliza a estrutura dando equilíbrio ao sujeito, impedindo que permaneça errático, perambulando sem rumo como fazem os "não-tolos", os que não se deixam enganar e portanto não creem. O jogo linguístico entre os nomes do pai e os não do pai - em francês, noms e non - reforça a relação da nomeação com a interdição ao gozo. A utilização do conceito no plural apontava a eficácia de outras modalidades do significante que não apenas aquela atrelada à função paterna.

A pluralização dos nomes do pai ampliou essa construção teórica permitindo enlaçar estruturas instáveis, na ausência ou debilidade de um ordenador subjetivo. Essa proposição deu origem à clínica borromeana que, a partir da topologia, fez uso de planos, interfaces, amarrações, pretendendo suprir e equilibrar as amarrações mais frouxas, nas quais o endereçamento ao Outro não existe ou é inconsistente.

Lacan concebera um nó de três elos - real, simbólico e imaginário - que acreditava poder representar a estrutura subjetiva. Em RSI (Lacan, 1974-1975), ele irá abandonar o nó de três elementos, considerando que a estrutura representativa mais adequada seria composta por um nó de quatro elementos, numa aproximação do complexo de Édipo, cuja estrutura quaternária implicava pai, mãe, filho e falo.

O francês concluiria que seria necessário um quarto elemento que enlaçasse a estrutura, impedindo o desencadeamento do surto psicótico. Esse quarto elemento, que teria função nodular e operaria como o significante Nome-do-pai, seria o sinthome, resto sintomático ao final de um trabalho interpretativo.

O sinthome é o sintoma não trabalhado do início do tratamento que, depurado de seus excessos simbólicos e imaginários, foi reduzido ao seu "osso", S1 e a, pela via interpretativa. Ele funcionaria em suplência ao significante Nome-do-pai e teria a função de nomeação enquanto um ato.

O analista, através do artifício, operaria com cortes, suturas e enlaçamentos, buscando constituir o quarto elemento que sustentaria o sujeito. Lacan afirma que o sinthome é o que melhor define o sujeito, tendo valor de nome próprio. Para o autor, o sinthome, resto sintomático indecifrável pelo tratamento analítico, condensa um sentido e uma forma de gozo próprios ao sujeito, inacessíveis ao outro.

A clínica borromeana visa o equilíbrio e a inclusão do ser falante no laço social, ao invés de operar unicamente na busca do sentido inconsciente como se fazia até então. Ela permite, numa nova abordagem, o tratamento dos anteriormente considerados inaptos para o tratamento analítico e que eram, portanto, excluídos. Essa proposta de tratamento permitiria que, na ausência ou fragilidade da função paterna, pudesse se estabelecer algum enlace que circunscrevesse o real, enlaçando as pulsões, tornando possível o tratamento da psicose. Essa perspectiva teórica mantém os quadros clínicos em continuidade entre si.

A escuta do analista deveria orientar-se para a posição particular do sujeito frente ao desejo e ao gozo da pulsão. Ao invés da preocupação com a classificação diagnóstica, os analisandos deveriam ser considerados no "um a um" do seu ponto de gozo.

Se Freud lamentou a resistência do sintoma à interpretação, desiludiu-se com sua presença ao final da análise - o sintoma remanescente foi chamado por ele de rochedo da castração -, já Lacan "bendisse" o sintoma.

 

PERVERSÃO E PÈRE-VERSION

Freud, em suas formulações sobre o complexo de Édipo e a constituição do eu, construiu mecanismos psíquicos que seriam próprios à neurose, à psicose e à perversão.

A Verleugnung, mecanismo da perversão, negaria a percepção da castração materna ou, então, recusaria a percepção de um desejo na mãe para além dele, seu filho. A exclusão do pai da cena familiar determina um rechaço aos valores sociais, afirmando a potência do falo em cada ato transgressivo.

Lacan ([1956-1957] 1995), no Seminário, livro 4 - A relação de objeto, assegura que tal negação é uma afirmação da plenitude materna; a ela nada falta, pois nada deseja, esvaziando o pai de qualquer potência e/ou interferência junto ao filho.

No Seminário, livro 22 - RSI, Lacan (1974-1975) declarará que todo sujeito é père-versé, ou seja, cada um porta, em sua singularidade, um endereçamento ao pai que o determina. Assim sendo, não haveria quem não fosse submetido à lei paterna, derrubando-se dessa forma a ideia de transgressão à estrutura. Essa assertiva traz novidades à prática clínica, que se orienta à escuta da versão do pai que se impõe àquele ser falante, no campo do desejo e gozo.

 

PERVERSÃO ORDINÁRIA

À época do patriarcado, em que a lei era bem definida e universal, a transgressão e o desrespeito aos valores morais eram considerados ataques ao grupo organizado. Logo, o que era marginal deveria ser combatido por constituir uma ameaça à moral civilizada. O perverso, pela clara exclusão do pacto social, adotaria uma posição de escárnio frente aos mortais respeitadores das normas e da tradição.

Jean-Pierre Lebrun (2008) sugere uma forma de perversão mais sutil, que, de tão banal, se tornou comum no contemporâneo: a perversão ordinária.

A perversão ordinária seria um quadro clínico determinado por uma forma particular de desrespeito que, de tão usual, não parece configurar um desafio ao pacto social. Ela implica em transgressões sutis, praticadas de forma frequente no cotidiano, não gerando críticas ou surpreendendo os demais, e que se justifica por premissas pessoais.

Para Lebrun (2008), essa situação é decorrente de uma crise de legitimidade que atinge as figuras de autoridade, que não suscitam mais admiração ou identificação nos integrantes do grupo, condição para a coesão social. A perversão ordinária subverte: a desobediência à lei esconde-se no questionamento da própria lei.

Se vivemos em tempos em que o ideal social foi substituído pelo direito e dever de gozo individual, como falar em ética?

 

UM MUNDO SEM DEUS

Lebrun (2008) acredita que o progresso da ciência determinou um homem materialista e cético que, buscando a verdade, nega a transcendência. Qualquer assertiva crível deve ser legitimada pela ciência, que aponta o falso e o verdadeiro, excluindo do horizonte o que não é demonstrável. Logo, a verdade do homem, referida ao inconsciente e ao sintoma, passa a ser considerada crendice sem muito valor.

Negar a transcendência é negar a exterioridade ao significante, não apenas a crença no mito ou na existência de Deus, mas também o reconhecimento de um saber a mais em alguém. Negar a transcendência equivale a dizer que não existe exceção, que somos todos equiparáveis ou iguais, numa busca inútil por homogeneidade, pois o real não cessa de não se inscrever. É afirmar que a diferença sexual não existe. Essa é a face da perversão mais moderna e eficiente, pois se inclui no laço social.

Lebrun (2008) denuncia a presença cada vez mais comum de um movimento de grupo que reage fortemente frente a qualquer reconhecimento diferenciado de valor, não outorgando especial deferência e credibilidade a alguém.

Vamos investigar tal situação tomando o significante falo como norteador. O detentor de um saber a mais deve ser destituído, pois ameaça o grupo em sua potência fálica; se resistir deve ser desencorajado sob acusações de arrogância e prepotência. A destituição de saber não se encontra ligada a nenhum ideal consistente, mas à manutenção de uma organização que se funda na negociação e trocas de favores, fazendo com que tudo seja manobrável em alegre confraria.

Nessa dinâmica, o jogo de forças que não legitima nenhum discurso em particular legitima todos os discursos. Ou seja, se ninguém tem o falo é porque todo mundo tem o falo, já que este não significa a inscrição da diferença entre os homens.

A declaração dos direitos do homem e a democracia são palavras-chave de que se servem alguns para destruir o argumento alheio, dissimulando a prática grupal perversa que busca poder.

 

UM SINTOMA QUE NÃO PASSA PELO OUTRO

A pluralização das formas do significante Nome-do-pai, ampliação feita por Lacan do conceito original, possibilitou uma abordagem clínica de sujeitos que eram excluídos, considerados anteriormente inclassificáveis por não se enquadrarem nos fundamentos teóricos da psicanálise.

A proposição de formas subjetivas que apresentavam ordenadores distintos, não atrelados à função paterna tradicional, produziu várias faces do pai, sujeitos que interagem e encontram-se inseridos no pacto social. Devemos ressaltar que esse avanço teórico foi consequência de uma mudança substancial no contexto cultural.

Entretanto, se acreditarmos que o progresso da ciência determinou nos homens a negação da transcendência, a morte de Deus, não podemos dizer que não somos afetados pelo incognoscível, irreproduzível, inalcançável. Não podemos prescindir deste real enquanto função, o Um, pura exterioridade que nos atravessa e causa como ser falante.

A perversão ordinária descrita por Lebrun (2008) parece muito mais grave que a perversão cunhada por Freud, pois caminha para a dissolução do grupo, que passa a manter laços frágeis e circunstanciais, sendo um convite ao isolamento. Talvez por isso a apatia e a depressão sejam os sintomas predominantes na atualidade: sintomas que não passam pelo Outro. São pessoas para quem não há questões íntimas, sentimentos de culpa, posturas interrogativas frente ao desejo do Outro, pois que não existe Outro do desejo.

A negação da transcendência, ou seja, do Um, origem inatingível da linguagem e da fala, nos fará retornar à horda enlouquecida e à barbárie?

Em RSI, Lacan (1974-1975) já nos alertara para que o complexo de Édipo nada tinha de complexo frente àquilo com que viríamos a nos deparar hoje.

 

REFERÊNCIAS

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1955-1956/1985). O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1956-1957/1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1957-1958). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1958-1959). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1960-1961/1992). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1966/1998). A significação do falo. In: Escritos (pp. 692-703). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1968-1969/2008). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1973-1974). O seminário, livro 21: les non-dupes errent. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1974-1975). O seminário, livro 22: RSI. Inédito.         [ Links ]

Laurent, É. &Miller, J.-A.(1997). L'autre quin'existepas et ses comités d'éthique - introduction. Revue de Psychanalyse La Cause Freudienne, 35, 7-14.         [ Links ]

Lebrun, J.-P. (2008). A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Campo Matêmico.         [ Links ]

Miller, J.-A. (1997). Le conciliabule d'Angers. Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma - Le Seuil.         [ Links ]

Miller, J.-A. et al. (1998). Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica - a conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira.         [ Links ]

Miller, J.-A. (2009). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Paoli, C. De. (2005). Superego contemporâneo - exceção e regra. Tempo Psicanalítico, 37, 39-56.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Esse tema foi amplamente desenvolvido e fundamentado no artigo "Superego contemporâneo - exceção e regra" (Paoli, 2005).

2 O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida comparativa de riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade e outros fatores para os diversos países do mundo. É uma maneira padronizada de avaliação e medida do bem-estar de uma população, especialmente bem-estar infantil. É usado para distinguir se o país é desenvolvido, em desenvolvimento ou subdesenvolvido, e para medir igualmente o impacto de políticas econômicas na qualidade de vida. O índice foi desenvolvido em 1990 pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq e pelo economista indiano Amartya Sen.

 

 

Recebido em 08 de janeiro de 2010
Aceito para publicação em 13 de abril de 2010

Creative Commons License