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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro June 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

As patologias do niilismo em nossa modernidade

 

The pathologies of nihilism in our modernity

 

 

Roland Gori

Psicanalista; Professor da Universidade de Aix-Marseille I. Autor dos livros A prova pela fala, São Paulo, Escuta, 1998 e Lógica das paixões, Rio de Janeiro, Cia de Freud, 2004

Tradução: Ana Rudge

 

 


RESUMO

Há em nossa cultura um ponto comum entre os envelopes formais dos sintomas e os modelos psicopatológicos que tentam apreendê-los. Esse ponto comum não é nada além do que um desmentido do Outro ao qual o sintoma se endereça e que, de certa maneira, ele inclui. O lugar do Outro na fabricação dos sintomas e em seu endereçamento mantém-se como o ponto cego, tanto nos novos diagnósticos psicopatológicos quanto nos modelos heurísticos voltados para sua inteligibilidade e tratamento. O desmentido procederia tanto da substância de uma civilização quanto das formas de expressão de suas patologias. E é o adicto que vem hoje testemunhar, como mártir, esta solidariedade entre uma forma de civilização e suas patologias, o niilismo de nossa modernidade.

Palavras-chave: adicto; civilização; desmentido; diagnóstico; niilismo; patologia.


ABSTRACT

In our culture there is a common denominator between the formal envelopes of symptoms and the psychopathological models that try to apprehend them. This common point is not any other than the denial of the Other to whom the symptom is addressed, and that it includes in a certain way. The place of the Other in the fabrication of symptoms and in their address is still the blind spot for both the new psychopathological diagnoses and the heuristic models which try to account for their intelligibility and treatment. This denial results from the substance of a civilization, and the way in which it expresses its pathologies. Today it is the addict, who better testifies, as a martyr, on this indulgence between a form of civilization and its pathologies, the nihilism of our modernity.

Keywords: addict; civilization; denegation; diagnostic; nihilism; pathology.


 

 

[...] não se deve dizer que uma hora (de trabalho) de um homem vale uma hora de um outro homem, mas sim que um homem de uma hora vale um outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é no máximo a carcaça do tempo.
(Marx, citado por Lukacs, 1960: 117)

Desejo introduzir a questão desta civilização do niilismo que é a nossa - e da qual testemunham tanto as patologias sociais atuais quanto os modos de conhecimento que tentam levá-las em conta - pela evocação de um romance contemporâneo cuja verdade me parece bem mais profunda que inúmeras bobagens psicológicas ou médicas que são regularmente publicadas hoje em dia (Zeh, [2004] 2007).

Trata-se de A moça sem qualidades, de Juli Zeh (2004), publicado na versão francesa em 2007. Em um liceu alemão, o jogo perverso de dois adolescentes de nossa época termina em um banho de sangue. Ada, filha autoproclamada do niilismo, designa-se a si mesma como o "protótipo" de nossa civilização, "uma moça sem qualidades", sem identidade, e que procura apenas comportar-se com a maior eficiência possível.

Para o professor que lhe censura suas opiniões em suas dissertações filosóficas, aliás geniais, ela faz uma demonstração lógica lúcida, que chega ao ponto de desestabilizar esse professor, temido por todos os outros alunos. Ao professor, que observa que para qualquer coisa se pode encontrar, pelo menos, duas perspectivas possíveis das quais nenhuma poderia pretender ser tomada como verdade absoluta, ela retorque por uma argumentação lógica: "O senhor é casado? Ama sua mulher? Já lhe ocorreu que teria podido, da mesma maneira, odiá-la?". "Não, claro", responde o professor! "Se é o caso", diz ela em voz baixa, "então pare com essas sandices de duas perspectivas possíveis para qualquer coisa".

"Höfi abriu a boca, depois fechou. Ele aquiesceu com a cabeça como se tivesse obtido uma informação relativamente secundária, mas indispensável, e que ele esperava há bastante tempo; depois prosseguiu seu curso" (Zeh, [2004] 2007: 20)... pelo menos até seu suicídio.

Ada lê muito, impõe aos outros respeito e medo, mas nenhuma simpatia, não mais do que ela se concede a si mesma. Ela se quer "bisneta" dos niilistas, e para ela a existência deve ser gerida como um computador: ante uma situação difícil "Ada, o olho perdido, procurava o menu 'ajuda'" (Zeh, [2004] 2007: 69). Ela odeia, "de todo seu coração, seu próprio corpo, e teria sem dúvida acabado anorética se não fosse tão relaxada" (Zeh, [2004] 2007: 71). Ada se mostra rebelde a qualquer terapia porque seu único problema consiste em que ela deve viver acima dos seus meios e ambiente, mãe depressiva e pai ausente. Toda sua existência é racionalizada, instrumentalizada, e quando quer dar um presente para o jovem pelo qual ela sente algum afeto, é a si mesma que oferece como presente.

Mas não é de qualquer maneira, porque o que ela lhe dá por seu aniversário é uma felação preparada com antecedência pela prática de assistir a cassetes pornográficos que ela olha como uma documentação: as imagens não têm para ela qualquer sentido. "Ela teria podido, da mesma forma, olhar um documentário zoológico sobre o acasalamento de anfíbios" (Zeh, [2004] 2007: 98). Ela se prepara para a prova a partir de uma cena precisa, digitalizada em sua consciência:

A passagem que interessava a Ada consistia em uma felação de vários minutos de duração. Ela volta à cena várias vezes para revê-la, estuda a forma como a assistente colocava cabeça e corpo, grava em sua memória o ângulo formado pela cabeça da mulher e o instrumento do cliente, pois os detalhes geométricos desta técnica deveriam ter sua importância para evitar náuseas e mal-estar respiratório (Zeh, [2004] 2007: 99).

A felação acontece, mas o encontro fracassa. É então que aparece em sua vida seu cúmplice em inteligência, violência e infelicidade: Alev. Para ele "todo interlocutor era um adversário e toda conversação uma batalha. [...] A busca de sentido é puro narcisismo, diz ele" (Zeh, [2004] 2007: 123). É um êmulo da teoria dos jogos. A vida não tem qualquer sentido, além disso não há qualquer razão para tomar à esquerda ou à direita, salvo uma função definida pelos papéis ou probabilidades. Esses adolescentes, nascidos durante a Primeira Guerra do Golfo, crianças durante a Guerra dos Bálcãs e no 11 de setembro, são os herdeiros de nosso terrorismo, aquele de nossa história e da estrutura de nossas civilizações. Eles são atraídos apenas pelos jogos de papéis, as drogas, as músicas apocalípticas e as excitações na manipulação dos outros e de si.

Alev é impotente. Ele é todo poderoso no controle de si mesmo e dos outros, mas não tem ereção. É então em uma outra cena que ele vai gozar com Ada. Depois de lhe ter explicado o "dilema do prisioneiro", Alev inicia Ada no grande jogo da reificação do outro. Ela deve se fazer beijar por um jovem professor - Smutek - enquanto Alev tira fotos, a fim de poderem depois "fazer dele o que quisermos". O projeto agrada a Ada que decide colocá-lo em prática, não sem, preparatoriamente, desvirginar-se, ela mesma, com um vibrador, friamente, tristemente, quase inteiramente vestida. Mas como lhe repete o impotente e todopoderoso Alev, tudo é equivalente, quer dizer, tudo vale a mesma coisa... exceto os jogos matemáticos.

Sem "desvirginar" ainda mais a intriga do romance, sublinhemos que Smutek, o professor seduzido e sedutor, torna-se um objeto nas mãos deles, sob a ameaça de ver as fotos de suas folias com Ada divulgadas pela Internet. Nesse contexto, Alev pode dizer que "o terrorismo aparecia como um problema retórico" (Zeh, [2004] 2007: 260). Ele não acredita mais nem no niilismo. A crença não basta mais, é preciso também a reificação do outro para que a existência possa manter uma ponta de consistência. Tudo deve ser realizado com precisão cirúrgica para que o novo inferno seja feito de luz e de aço. Ada entrevê a violência contida nesse "mundo digitalizado":

O mais aterrorizante, é que provavelmente nada disso me aterroriza (diz Ada). Ada havia pousado sua mão sobre o mouse e se põe a clicar para fazer desfilar o resto de sua coleção. Ela não se sentia mais concernida por esse amontoado de carne do que por suas próprias lembranças; como se conhecia, ela sabia pertinentemente que a ausência de concordância entre presente e passado não procedia de uma necessidade de autoproteção, mas antes de um problema técnico (Zeh, [2004] 2007: 285-285).

É como teólogo que Alev persegue sua obra de destruição, obrigando Smutek, sob ameaça, a reproduzir suas farras. O jogo consiste então em fazer realizar na sujeição o que se deseja, para aniquilar o desejo. A pessoa reproduz transitivamente sua própria abolição subjetiva. É uma forma de iniciação ao trauma e pelo trauma.

Smutek sente-se esmagado por esses jovens perturbados, errantes no próprio interior de sua geração, como muitas "construções voadoras"1, guerrilheiros da existência sem guerra. Mas Smutek não quer mais "perguntas nem respostas. Ele se preparava para obedecer" (Zeh, [2004] 2007: 293). Não se trata mais aqui de "gozar sem sujeição", nem mesmo de "gozar da sujeição", mas sim de "gozar na sujeição", para que exista pelo olho e pela imagem o ponto de inconsistência de um adolescente impotente. Tal é o segredo de nossa civilização: "ela não tinha nada a fazer, senão gozar da capacidade que a natureza lhe tinha dispensado com a maior liberalidade: indiferença com respeito à sua própria existência. Estava lá todo o segredo" (Zeh, [2004] 2007: 313). Com "Internet: provedor de cor local para naturezas nômades" (Zeh, [2004] 2007: 316), estes bisnetos dos niilistas podem dizer: "Nós não temos mais nada em que possamos não acreditar. Resulta disso, matematicamente, que acreditamos em tudo. Tudo é indiferente, equivalente" (Zeh, [2004] 2007: 408).

O que esses adolescentes perderam foi o medo de perder, que faz a substância ética do conflito intersubjetivo e político de uma civilização.

Então, para concluir esse ponto: trata-se menos, para mim, de submeter os enunciados deste belíssimo romance a uma interpretação que fique sem objeto (Stein, 1994), do que convidá-los a deixar-se interpretar pelos efeitos que a leitura deste romance pode produzir sobre nós quando hoje nos interrogamos sobre a violência.

Se cada cultura tem a patologia mental que merece e a psicopatologia que lhe convém, o que é hoje da nossa, que não cessa de insistir sobre as perturbações do comportamento e suas determinações neurogenéticas?

O que é hoje dessas psicopatologias, e dos sofrimentos que elas supostamente diagnosticariam, enquanto reveladoras da substância ética da cultura da qual elas emergem, e que elas contribuem, em retorno, para recodificar?

Há em nossa cultura um ponto comum entre os envelopes formais dos sintomas e os modelos psicopatológicos que tentam dar conta deles. Este ponto comum não é outro do que o de um desmentido do Outro2 para qual o sintoma se endereça e que, de certo modo, ele inclui. O lugar do Outro na fabricação dos sintomas e no seu endereçamento mantém-se como o ponto cego, tanto dos novos diagnósticos psicopatológicos como dos modelos heurísticos que visam sua inteligibilidade e tratamento. Este desmentido me parece proceder tanto da substância de uma civilização como das formas de expressão de suas patologias.

Tive a oportunidade de dizer em outro lugar que a adicção, a depressão, o autismo, o transtorno de déficit da atenção com hiperatividade (TDAH), o transtorno desafiador opositivo (TDO), a delinquência, as várias disfunções, todas estas patologias são atualmente sistematicamente abordadas sem que o lugar do Outro para o qual elas se endereçam seja situado, ainda que pouco.

Nada de espantoso, desde então, que a psicanálise e uma certa filosofia possam se tornar objetos de ódio desta civilização sem Outro (Roudinesco, 2005). Ódio da transferência, ódio do pensamento, ódio da linguagem. Tal civilização inscreve na cultura técnicas dessubjetivantes de sujeitar.

Este impasse sobre o lugar do Outro no sintoma me parece predispor os indivíduos à reificação dos outros e deles mesmos, a esta coisificação pela qual eles expressam preferencialmente seu sofrimento e da qual, em retorno, eles contratransferencialmente se tornam as vítimas no jogo dos diagnósticos e dos cuidados que os tomam a cargo.

Para dizer de outra forma, se os sintomas atualmente são diagnosticados preferencialmente dentro do modelo das patologias do agir, isso talvez se deva menos à natureza dos indivíduos que os expressam do que aos vetores da civilização que participam em sua construção. Porque há uma verdadeira isomorfia entre os envelopes formais dos sintomas pelos quais os sofrimentos psíquicos e sociais se exprimem e os modelos heurísticos que os teorizam: negação do Outro para o qual se endereça a queixa, negação da realidade interior do sujeito, assim como de seus parceiros, negação da representação mental, do sentido e da história, negação dos afetos em proveito das experiências emocionais e dos desempenhos comportamentais.

No sentido winnicottiano do termo, estaríamos aqui em uma "defesa maníaca" (Winnicott, [1935] 1969) compartilhada intersubjetiva e tacitamente entre os diferentes parceiros da transação terapêutica, pacientes e cuidadores imersos na mesma civilização. Winnicott deu uma definição desta "patologia" que nos parece pertinente:

A expressão "defesa maníaca" se propõe cobrir a capacidade da qual dispõe uma pessoa para negar a angústia depressiva inerente ao desenvolvimento afetivo, angústia que pertence à capacidade de sentir a culpabilidade, de reconhecer sua responsabilidade pelas experiências instintivas e pela agressividade na fantasia que acompanha as experiências instintivas (Winnicott, [1935] 1969: 32).

Não quero dizer com isso que todo sujeito, paciente ou cuidador, esteja inevitavelmente condenado a esta série de desmentidos, mas simplesmente que ele tem que se debater sempre mais com os novos dispositivos de civilização que incitam a esta reificação. Sem dúvida, é o coração do debate que mantenho com meu amigo Jean-Pierre Lebrun: no meu ponto de vista, estamos menos em presença de "novos sujeitos" do que em presença de novos dispositivos de subjetivação que não nos deixam abordar os sujeitos senão através dos modelos que os reificam, e constituem verdadeiramente profecias autorrealizadoras.

Um exemplo entre cem: fala-se que a violência dos menores não cessa de aumentar, mas o que se esquece é que se trata menos do incremento da violência individual do que do alargamento cada vez maior do perímetro que a define!

É menos a violência que aumenta do que nosso limiar de tolerância social que se reduz, e isto tanto mais que, na solidão extrema de nossa cultura hiperindividualista e empresarial, a "almofada" social que a amortizava se torna cada vez menos eficiente. Há um apagamento antropológico dos sofrimentos psíquicos e sociais em proveito de uma concepção da psiquiatria muito associada à segurança pública. Fazendo isso, essa medicalização dos desvios que não acredita mais no cuidado, nem no caráter redentor da punição e no que a sanção implica como perdão e como promessa, essa medicalização do desvio social fabrica também populações de excluídos nas quais ela localiza os determinantes neurogenéticos das violências. A exemplaridade das dores individualizadas, projetada segundo o modelo das empresas em liquidação de bens, mascara o retorno do conceito de "classes perigosas", no seio das quais o indivíduo é um exemplar da espécie.

Esse abaixamento do limiar de tolerância social se manifesta hoje de maneira obscena também na recomposição dos saberes e das práticas profissionais da psicopatologia.

Assistimos a uma mudança de paradigma: as novas práticas psicológicas e médicas quase não lidam mais com os conceitos de realidade psíquica, angústia, culpa ou desejo. Só se impõem as técnicas de rentabilidade comportamental, as estratégias de administração das condutas, que vão educar o indivíduo para melhor se governar, para gerir seu "capital humano" de acordo com seus interesses. E este governo das condutas se inscreve no campo "natural" do mercado de acordo com uma lógica do lucro que faz de todo indivíduo um "empresário de si mesmo" (Foucault, 1974-1975).

Os dispositivos de saúde mental não têm mais que apreender o indivíduo em sua estrutura psíquica ou em sua ecologia social, mas devem garantir o levantamento dos comportamentos individuais, o esquadrinhamento e a localização das populações e a modelagem de suas racionalidades pelo governo digital e pela escultura dos psicotrópicos. É assim que se veio a oferecer a toda criança uma mamãe molécula e um papai TCC.

Simultaneamente, os sintomas em nome dos quais os pacientes vêm se consultar parecem mudar de envelopes formais e se exprimem sempre mais em perturbações do comportamento, patologias do agir e instrumentalizações de si mesmo e dos outros. Estes sintomas são hoje agrupados na grande família dos "dis", o império do "dis", disléxicos, disortográficos, discalcúlicos, disfóricos, distímicos, disfuncionantes eréteis, em suma, os "disfuncionais" de todos os tipos. A psiquiatria se ocupava do diagnóstico e do cuidado dos indivíduos em sofrimento mental, a saúde mental se preocupa com os "disfuncionantes" cujo campo pode ser estendido até o infinito.

Este "dis" é um produto dos dispositivos de fabricação do "handicap", que apagam as diferenças, homogeneizam os sofrimentos e, ao mesmo tempo, localizam e amplificam as imperfeições e os "estigmas".

Não há mais "vadios", "idiotas" ou "bobos", escreveu uma jornalista de Provença (Manelli, 2007), mas crianças "dis"... Quarenta e cinco mil apenas na região de Provence-Alpes-Côte d'Azur. "Os progressos da neurologia permitem cada vez mais diagnosticar precisamente esses impedimentos, cuja origem às vezes é genética, às vezes ligada a acidentes de nascimento" e, se "não se cura destes transtornos, aprende-se a contorná-los [...]. Uma criança ´dis´, corretamente tratada, pode perfeitamente prosseguir uma escolaridade normal e obter diplomas universitários", concluiu a jornalista que entrevistava o chefe de serviço de psiquiatria (Manelli, 2007: s/p).

É, portanto, toda uma nova maneira de dizer o mundo que se estabelece. O "dis" como vetor desta novilíngua constitui uma hábil invenção linguística que permite responder às necessidades sociais e às necessidades antropológicas do neoliberalismo.

O que é um "dis"? "Dis" vem do prefixo grego "dus" para exprimir um sentimento de dificuldade, de falta ou de dor no funcionamento dos dispositivos da existência. Alain Rey (1992) nota que este prefixo é um elemento de composição muito antigo e produtivo, já que durante toda a história do grego antigo esse prefixo serviu para formar mais de mil palavras em todos os gêneros literários. Nota-se que, em comparação, o DSM-IV, com seus 395 transtornos do comportamento, ainda faz figura de pai pobre... mas não desesperemos, o mercado está promissor.

Acrescentemos, à grande família dos "dis", estas minidelinquências que seriam os transtornos desafiadores opositivos, os transtornos de conduta, os transtornos invasivos do desenvolvimento, os transtornos da adaptação, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), as adicções, as dependências cibernéticas, as depressões da realidade virtual, etc. Constata-se então que o grupo dos anômalos não cessa de aumentar, tanto quanto o menu das ilegalidades.

Hoje, como ontem, a recodificação médica da psiquiatria opera pela junção do jurídico e do orgânico. É a questão do transtorno, do perigo, do risco que permite de novo à psiquiatria esse retorno para o "pensamento médico". Não se poderia compreender os debates atuais em torno da prevenção da delinquência sem uma perspectiva histórica que permitisse apreender a ligação constante, desde o século XIX, do jurídico e do orgânico. É esta ligação que permite a ampliação quase infinita do domínio de ingerência do psiquiatra, e sua participação a partir de um modelo orgânico na defesa da ordem social (Foucault, 1974-1975). Hoje, como ontem, o poder demanda à psiquiatria, rebatizada de saúde mental, que diga como identificar o desvio do sujeito antes mesmo que ele tenha se estabelecido.

O futuro pertence aos epígonos de Lombroso3, nesta nova obsessão social que constitui a preocupação de apreender o mais cedo possível os índices e os sinais das "anomalias" a partir das tecnologias biométricas, e a exigência de identificar seus potenciais de "periculosidade". Lombroso é, além disso, mencionado desde a página 2 do relatório Inserm de 2005 sobre "o transtorno de conduta na criança e no adolescente"4, relatório de avaliação que mobilizou uma grande emoção no país e iniciou o movimento Pas de 0 de conduite5.

Para melhor compreender a forma pela qual as técnicas atuais de obter a sujeição dessubjetivante podem permitir a precipitação, no sentido químico, das patologias, poderíamos também fazer um desvio pela adicção.

Quem melhor que o adicto poderia hoje vir testemunhar sobre essa recusa do Outro e da realidade interna?

Quem melhor que o adicto pode hoje, como mártir, testemunhar essa solidariedade6 entre uma forma de civilização e suas patologias?

Quem melhor que o adicto, no desespero das violências feitas a si mesmo e aos outros, poderia hoje em dia vir testemunhar sobre nosso niilismo e suas patologias?

Freud escreve a Fliess em 22 de dezembro de 1887: "Passei a acreditar que a masturbação é o único grande hábito, o 'vício primário' e que é apenas como substitutos e sucedâneos dela que os outros vícios - álcool, morfina, tabaco e coisas parecidas - passam a existir" (Freud, [1887-1904] 1969: 211-212). Em Mal-estar na civilização Freud ([1929] 1971) aborda de forma precisa esta função do tóxico na economia libidinal dos indivíduos e dos povos:

Não lhes devemos apenas um prazer imediato, mas também um grau de independência ardentemente desejada com relação ao mundo exterior. Sabemos que, com a ajuda do "afogador de preocupações", pode-se a cada instante subtrair-se ao fardo da realidade e refugiar-se em um mundo próprio que reserva melhores condições à sensibilidade. Mas sabe-se também que essa propriedade dos estupefacientes constitui precisamente seu perigo e sua nocividade (Freud, [1929] 1971: 23).

Considerando todo o alcance da análise freudiana, pode-se medir a que ponto a função do tóxico se revela como uma recusa ao mundo exterior e à ameaça que ele contém, o que o psicanalista experimenta cotidianamente no manejo da transferência particular que o paciente toxicômano põe em ação.

A masturbação, como a droga, recusa o desejo, foge dele e libera da dependência ao outro, transformando a dependência possível a um Outro em uma dependência a um produto. O produto recusa a alteração contida em toda alteridade e faz objeção tanto ao amor como ao desejo, que supõem o reconhecimento de uma falta deportada ao campo do Outro. O produto consagra o "fetichismo da mercadoria" em uma economia subjetiva que encontra nas formas de civilização os envelopes formais de seus sintomas.

O toxicômano é um maníaco que se libera do real, fazendo do produto um obstáculo ao objeto. Sabemos que o objeto é o que é jogado antes - objectum -, ante esse "real"7 que a psicanálise nos ensinou a cernir sob as diferentes categorias de falta.

Ante esse objeto que vela a falta, assim como lhe dá uma forma, o toxicômano joga um fetiche, o fetiche do produto. Aqui é o produto que faz obstáculo ao objeto. Mas de qual objeto se trata?

Essa questão é essencial tanto para dar conta da psicanálise do toxicômano quanto para dever reconhecer o estatuto dos objetos em nossa civilização. Desde já poderíamos esquematicamente enunciar que os objetos de nossa civilização são mercadorias que fazem objeção àquilo que a psicanálise chama justamente de objeto. O toxicômano, melhor que ninguém, nos convida a interrogar o estatuto do objeto em psicanálise e a entender o objeto menos como o conceito do que foi perdido do que como o nome daquilo que jamais foi possuído ou que escapa à apropriação.

Nesse sentido, o produto, a substância, os efeitos de êxtase dos quais o toxicômano se mostra tão dependente não são ainda um objeto no sentido psicanalítico do termo. Nesse sentido ainda, a paixão das drogas obedece estritamente a uma lógica do desmentido, lógica específica das paixões (Gori, 2004). Como o erotômano ou qualquer outro delirante passional, o toxicômano procura na miragem passional a consistência ontológica que lhe falta. E essa consistência ontológica que lhe falta provém justamente de seu desmentido do objeto, ou seja, da falta, do real pelo qual se constitui a subjetividade.

Nossa civilização participa a seu modo desta fixação do toxicômano à lógica do desmentido da falta, que é apenas outro nome do desmentido do Outro de que falamos. E a participação de nossa civilização nesta lógica do desmentido do objeto, no sentido psicanalítico, em proveito da mercadoria, evidencia-se no próprio diagnóstico de "adicção" com o qual ela veste o apaixonado pela droga.

Com efeito, qual o "nicho ecológico" (Hacking, 1998) deste conceito de adicção que a sociedade contemporânea prefere àquele de toxicomania ou ao de paixão das drogas? O que é que essa escolha terminológica de adicção vem revelar da "substância ética" de nossa cultura e de sua participação no sintoma?

Se nos deixamos guiar pelo sentimento linguístico, constatamos que com o termo adicção esse apaixonado das drogas surge como um irmão do consumidor pós-moderno, do cidadão pós-político, do homo clausus de nossa civilização que convida o sujeito a se tornar um indivíduo, "empresário de si mesmo", microempresa ultraliberal autogerada e competitiva, autônoma e solitária, voltada ao isolamento pelo consumo de suas próprias experiências de vida, mercantilizadas, virtualizadas, descartáveis e efêmeras. Essa civilização de Tamagoshi8 oferece um gozo masturbatório evitando ter que passar pelo Outro para amar, odiar ou desejar. O objeto e o sujeito não são mais que posições ou experiências virtuais sem cessar mercantilizadas pela "sociedade do espetáculo" (Debord, 1967).

Com esse lembrete, queria simplesmente sublinhar que o nicho ecológico do diagnóstico de adicção provém tanto do sofrimento psíquico de um sujeito quanto da substância ética da cultura ao seio da qual os especialistas elaboram seu saber. "Adicto, tu és um outro tu mesmo", poderia retorquir o apaixonado pelas drogas ao psiquiatra veterinário que tende a medicalizar seu sofrimento, sua angústia e sua loucura, reduzindo-as a um "transtorno do comportamento" adictivo. O que é a adicção?

O termo adicção designava um estado de dependência e escravidão, de constrangimento do corpo sancionando um sujeito que não pagou suas dívidas. A marginalidade do adicto de hoje participa de uma contracultura que se revela inseparável da civilização no seio da qual ela se desenvolve e das práticas sociais que estabelecem esse diagnóstico. Com o termo adicção, a psiquiatria revela que tudo pode ser desviado de seu uso - Internet, jogo, vídeo, álcool, medicamento, solvente, jogo de azar, sexo, terapia, amor, trabalho, pátria, etc. - para se tornar o objeto de uma paixão louca, de uma escravidão livremente consentida pelo sujeito que a ele empenha corpo e alma.

A medicalização da existência coloca sob controle sanitário tanto as margens toleráveis quanto os excessos dessas condutas do consumo "normais" mas desregradas, indicando ao indivíduo como ele deve se comportar para bem se portar (Gori & Del Volgo, 2005). O adicto de hoje não é mais o apaixonado romântico dos paraísos artificiais do século XIX, nem o toxicômano de ontem, adepto sem o saber de uma crença maurrasiana segundo a qual apenas a realidade material não mente, mas sim esse positivista radicalmente aberto e oferecido a todas as mercadorias proteiformes e virtuais que ele compra, e sob as quais não mais reconhece sua própria vida. A este título, o adicto de hoje testemunha, como mártir, as ilusões de uma sociedade neoliberal e fetichista, que dá novas faces à paixão do nada por não saber assumir a experiência trágica da existência. O adicto de hoje decompõe o espectro de uma sociedade do espetáculo e do consumo, no seio da qual a falta a ser se encontra convertida em falta a ter, onde os valores utilitários de nossas condutas tendem sem cessar a substituir nossas questões fundamentais sobre a experiência trágica da condição humana.

Assim, nascem novos tabus e novas crenças, e também novas doenças que vêm se abrigar na lógica e ecologia de uma época. Na extrema medicalização de normas secretando o Prozac para o enlutado, a Ritalina para o agitado, as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) para o agorafóbico, o Cialis para o diserétil, os antioxidantes para o envelhecimento, a grande família dos hormônios para a menopausa, os produtos dopantes para os esportivos etc., o toxicômano testemunha como mártir o sofrimento psíquico de uma sociedade que oferece à falta a ser todos os recursos do ter e dos produtos de consumo. O adicto se torna um consumidor muito bem fidelizado pelos negociantes clandestinos que trabalham em um mercado paralelo ao de nossas economias oficiais.

Essa cultura do "fetichismo da mercadoria" atingiu tal ponto que os produtos de consumo se desmaterializam sempre mais sob a forma de jogos e atividades virtuais que se oferecem como ersatz de nossas experiências de vida. Na sequência de Marx, filósofos como Zizek (1998) e Rifkin (2000) mostram que compramos cada vez menos produtos, menos objetos materiais, mas que nos tornamos cada vez mais consumidores de estados de consciência e de experiências vividas, tanto culturais como corporais ou relacionais. É a própria vida que se torna uma mercadoria que o indivíduo consome, depois que a desmaterializou, virtualizou, imaginarizou. É uma transformação maior na natureza de nossas sensibilidades sociais e psicológicas.

Sem ter que retomar aqui as análises que consagramos em outros lugares a esse universo digital, compreendemos porque, em nossa cultura atual, abre-se verdadeiramente um novo mercado de adicções à realidade virtual. Os cyberadictos são apenas os mártires de uma civilização que virtualizou o real em uma "vida líquida", na qual a contingência toma lugar e função de necessidade. Dominar essa desubjetivação e essa desmaterialização do mundo e de si mesmo constitui a ambição dos cyberadictos. Conhecemos cada vez mais casos de cyberadicção, conduzindo os internautas mais dependentes a descolar-se da vida real para viver no mundo digital dos jogos de vídeo de todo o tipo, abandonando seus empregos e famílias para se consagrar inteiramente à sua paixão. Esses apaixonados se nomeiam entre eles de "Nolife"9 e tendem a consultar, cada vez mais, os serviços especializados no tratamento das adicções. Essa fuga da realidade exterior corresponde ponto por ponto à análise que Freud ([1929] 1971) consagra às drogas em "Mal-estar na civilização". Mas aqui nenhuma necessidade de método químico e de intoxicação substancial, o digital basta. Não estaremos aqui na presença de uma forma de síndrome de Estocolmo?

Com a desmaterialização profunda dos objetos de consumo, a velha tese marxista do Manifesto retoma toda sua atualidade: tudo o que era sólido, bem estabelecido, se volatiliza. Esse traumatismo do ordinário é tão vivo em nossa cultura que os psicanalistas constataram a emergência de sintomas particulares em sua clientela. Trata-se de pacientes que vêm à sessão de análise menos para conduzir sua análise que para encontrar um lugar e um tempo onde depositar a existência de sua "realidade psíquica", mal colocada em suas vidas cotidianas. O espaço analítico participa então da reconstrução de uma realidade psíquica dando um sentido e um lugar a uma existência às vezes tão dispersa que evoca o estado de sultitia do qual falavam os filósofos gregos. O stultus é aberto aos quatro ventos, sem memória, sem vontade, dispersado no tempo e no espaço, e deixa a vida escorrer sem a ter vivido.

Não é apenas uma vontade de nada que está hoje em dia no coração de nossa civilização, mas, bem mais, o nada de uma vontade que abandonou a última coragem de um Bartleby (Melville, [1853] 1995) enunciando melancolicamente "eu preferia não"; a própria melancolia foi perdida. Não é mais a figura do nômade que se impõe a tal cultura, mas antes aquela do errante, um SDF feliz, aberto à felicidade atemporal assegurada por um implante que, permanentemente e de maneira autorregulada por um computador interativo colocado desde o nascimento, lhe proporciona as doses ótimas de Zoloft e de Ritalina para fazê-lo esquecer a condição trágica de sua existência. Nessa interpassividade frenética e moralmente apática, o indivíduo cyberliberal, resignado ao útil e à performance, não reivindica suas emoções senão com a condição expressa de que elas sejam efêmeras, descartáveis, televisuais e "virtuais". Nossa cultura oferece ao indivíduo mitos e cultos de uma beatitude que o transformam em sujeito passivo, moroso, deprimido, psicotropiado, tomando suaTCC simultaneamente a seu RMI e sua CMU, e gozando avidamente do espetáculo da revolta desses outros que ele não será. Aqui se projeta o espectro de uma nova forma pós-moderna de síndrome de Cotard sobre a qual voltaremos.

Nossa cultura convida a esse desmentido da realidade interior que se pode descrever, com Winnicott ([1935] 1969), como uma "defesa maníaca". Pode-se notar que esse desmentido da realidade psíquica se encontra menos no centro das patologias individuais do que no coração dos dispositivos da psiquiatria que delas visam dar conta.

Nessa lógica antropológica, a droga se revela como o "afogador de preocupações" do qual falava Freud, tanto da preocupação consigo como com o outro. A droga participa desta ilusão de poder recusar tanto o objeto quanto o sujeito em uma autonomia artificial. Todo praticante conhece essa dificuldade particular nas psicoterapias dos toxicômanos: o paciente tem necessidade da droga com o mesmo apego que o psicótico tem a seu delírio. Um amor narcísico que protege da alteridade. Por que o apaixonado de drogas correria o risco de amar ao risco de perder ou de sofrer? Ele prefere, ao modo de um melancólico acometido pela síndrome de Cotard, negar a existência do objeto e a de sua subjetividade para melhor recusar a alteração que comporta toda alteridade como condição do desejo.

Antes de prosseguir sobre esse ponto, queria lembrar, com Olivier Thomas (2007), que a paixão do tóxico se revela para a análise da transferência como uma autêntica paixão odiosa, quer dizer, um "amor morto" que encanta o sujeito e o cativa em uma inconsolável nostalgia. O tóxico não é, falando propriamente, um objeto, mas sim um fetiche, uma tela que vem envolver a imagem enterrada de um objeto traumaticamente perdido. A paixão do tóxico recobre uma paixão mais primordial, mais ontológica, que às vezes se manifesta no encontro terapêutico quando o psicanalista lhe dá o tempo e os meios para se instalar. Mas esta paixão do tóxico nos ensina que, em nossa civilização e em sua patologias, não é o objeto que quer. O que nomeamos correntemente de objetos, materiais ou virtuais, não são objetos para a psicanálise. Frequentemente esses produtos ou mercadorias materiais ou virtuais não são senão meios para recusar e de evitar o que a psicanálise conceitua como objeto, causa de desejo. A lógica passional ensina melhor do que qualquer outra que o objeto do qual se trata de fazer o luto não foi jamais possuído e escapa a toda apropriação. É exatamente este ponto que situa toda paixão na proximidade da melancolia, que ela conjura pela exuberância maníaca, pela febre voluptuosa do desespero e pela elação narcísica que esculpe as formas do nada. A paixão das drogas não escapa a esta lógica que faz de toda paixão uma paixão niilista, desmentindo tanto o objeto como a perda. Mas, como toda paixão, a paixão das drogas é uma adicção à perda, ao desmame, à separação, mais do que ao objeto.

Sabe-se que foi o psiquiatra Krafft-Ebing quem primeiro falou de "delírio niilista" para dar conta de certas formas delirantes nas quais os pacientes consideravam uma parte de seu corpo, ou sua totalidade, como "morto". Mas é a Jules Cotard que se deve a descrição fina e precisa de uma síndrome autônoma encontrada no curso de observações de melancólicos ansiosos. O que se tornou desde então a "síndrome de Cotard" designa um discurso ao longo do qual um paciente nega a existência de seu corpo, de seus órgãos, de seu ser ou, ainda, do mundo exterior. Sem entrar em detalhes, recordemos rapidamente a gênese do conceito de "delírio de negações" de Cotard, que, a meu ver, esclarece indiretamente a lógica passional.

De acordo com Cacho (1993), Jules Cotard, na grande tradição da Escola Francesa de Psiquiatria, descreve uma clínica da melancolia ansiosa no seio da qual se manifestam ideias hipocondríacas de nãoexistência e de destruição de órgãos. O primeiro texto de Cotard consagrado à descrição clínica desses sintomas (1880) chama de "delírio hipocondríaco" à sistematização e organização coerente do delírio. É sob a forma de queixas hipocondríacas que o discurso de negação se exprime inicialmente, mas, ao contrário dos delírios de perseguição, o paciente se imputa toda a carga e a culpabilidade que o condenam, por sua indignidade, à danação eterna. Desde o início, Cotard distingue no seio deste "delírio de negações" forças "centrípetas", que empurram o paciente a localizar a destruição sobre sua pessoa e seu corpo, e forças "centrífugas", que tendem a irradiá-la para os objetos exteriores, até os confins do mundo material e metafísico.

Vejamos a evolução das descrições de Cotard na sequência de seus textos: o "delírio hipocondríaco" se torna "delírio de negações". A irradiação totalitária deste delírio se manifesta pelas múltiplas versões temáticas que vão da negação dos órgãos à não-existência do mundo, até à infinitude do tempo (imortalidade, danação eterna) e do espaço (delírio de enormidade e de desaparecimento dos limites físicos).

A questão que se coloca hoje no prolongamento desta tese de Cotard é a seguinte: não estamos na presença, em nossa cultura, de uma forma pós-moderna de delírio de negações de si mesmo e do Outro, desmentindo o sentido, a substância e a história de nossas experiências para produzir, em troca, violências maiores ou menores com relação aos outros e a si mesmo?

Como não perceber aqui a origem desta violência cruel, fria e instrumental feita a um Outro, sem ódio e sem emoções, como aquela colocada em obra nos Happy slapping, essa prática que consiste em filmar a agressão física de uma pessoa com a ajuda de um telefone celular? Como não ouvir, nestes atos de delinquência, a fria instrumentação de um gozo niilista, no qual o verdadeiro sujeito é a imagem da qual os protagonistas não são senão os atores? A imagem vem aqui no lugar disso que se furta à representação e aos afetos. É neste lugar, precisamente, que as patologias niilistas contemporâneas, da delinquência maior ao cinismo menor, me parecem consubstanciais à nossa civilização e que, como tais, elas se revelam também como patologias sociais.

O que é hoje dos modelos neuropsiquiátricos e neuroeconômicos em vigor em nossa cultura? Como, uma vez ainda, não reconhecer o laço secreto que une as patologias niilistas de que falamos a esses modelos que reduzem o sujeito e o outro a puros sistemas neuroeconômicos? A saúde mental sofre hoje em dia de uma forma pós-moderna de síndrome de Cotard, conduzindo-a ao desmentido daquilo que a funda e que não é nada além do que a psicanálise nomeia de objeto.

Para concluir, a paixão do tóxico e os efeitos que ela produz sobre o sujeito podem constituir um objeto tela, uma vestimenta, para uma profunda melancolia, em um delírio de negações que chega, às vezes, até à negação completa da existência do outro, assim como de sua própria realidade subjetiva. É do desmame que o toxicômano é dependente, não do produto.

As práticas de saúde mental fingem ignorar essa distinção, no que elas se revelam consubstanciais à patologia de que se supõe que se encarreguem. O que não significa, de forma alguma, que, ao tomar a cargo os apaixonados da droga, nós não tenhamos que utilizar os produtos de substituição ou outras técnicas paliativas. Seu uso não contradiz esse ponto: o que falta ao drogado é o objeto, não o produto. É dessa impossível separação em relação à falta que temos que tratar (Thomas, 2007).

O trabalho psicoterapêutico consiste, idealmente, em permitir um deslocamento progressivo deste objeto fetiche que é o tóxico para o objeto de transferência que é o psicanalista, ao risco de que essa transferência para o psicanalista se decline sob um modo passional (Thomas, 2007). O objeto recusado pela tomada do tóxico se revela como um objeto que jamais foi possuído e que escapa a toda apropriação. É um objeto ontológico ao qual, depois do luto da paixão, o amor dá às vezes seu lugar.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 "As construções voadoras são elementos de construção destinadas a serem montadas e desmontadas de maneira repetida em diversos lugares" (Zeh, [2004] 2007: 353).

2 O Outro adquire em Lacan um destaque conceitual essencial. Ele se distingue do pequeno outro, o semelhante, o mesmo. O Outro é o lugar da palavra, o lugar vazio que a propicia e a relança. Quando um sujeito fala para alguém, ele se endereça, inconscientemente, para além de seu interlocutor, a um Outro, um sobredestinatário. Nossa civilização busca preencher de todas as maneiras esse lugar vazio, fingindo reduzir o sujeito ao indivíduo, e o Outro ao outro. E quando um sujeito fala sozinho na rua, a quem ele se endereça? Quando, no encontro amoroso, se constata que os atores atuaram na mesma cena, mas não na mesma história, o que se torna a "transparência" de nossa comunicação ao outro? O Outro é a condição do inconsciente e sua demonstração procede da transferência.

3 Cesare Lombroso, professor de medicina legal italiano, é conhecido por suas teses sobre o morfotipo dos criminosos. Publicou em 1876 O homem delinquente, obra na qual ele defende a tese de que a delinquência seria claramente mais frequente em certas pessoas portadoras de certas características físicas, o que favoreceria o caráter inato de certos comportamentos.

4 Em 2005 o Inserm publicou uma pesquisa sobre o "transtorno de condutas na criança e no adolescente". O relatório preconizava a demarcação das perturbações do comportamento desde a creche e a escola maternal para evitar o surgimento de comportamentos delinquentes na adolescência. Disponível em: <http://ist.inserm.fr/basisrapports/trouble_conduites/trouble_conduites_synthese.pdf>. Acesso em: 16/04/2010.

5 Ver: Pas de 0 de conduite pour les enfants de 3 ans/obra coletiva, Toulouse: Érès.

6 Entgegenkommen [Complaisanc] - no sentido freudiano de "co-incidência".

7 O conceito de real foi introduzido por Lacan para dar conta de uma necessidade estrutural: a existência de um ponto de impasse de toda formalização das duas realidades, material e psíquica. Este conceito é correlativo de duas outras categorias, as do imaginário e simbólico. O "real" se deduz de uma divisão da realidade pelo aparelho da linguagem e dos modos de doação do mundo pela imagem. Ele é o resto não recuperado. Na clínica é marcado como

o "mau encontro" vivido pelo sujeito e faz levar em conta a existência de um traumatismo distinto do traumatismo sexual. Na clínica de certas situações extremas, esse "real" no limite do psíquico, no limite de nossa experiência, esse "impossível", esse resto inassimilável, essa coisa que "volta sempre ao mesmo lugar" não se encontra mais enlaçada pela rede de significantes, mas simplesmente assinalada pela repetição do traumatismo e do medo.

8 Tamagoshi: pequeno brinquedo digital japonês que se comporta como um animal doméstico virtual, cachorro, pássaro, ou qualquer outro animal que tenha necessidade de que cuidem dele. Ele determina a relação por sinais aos quais a criança deve responder para satisfazer suas necessidades, ou então deixá-lo morrer. A criança se torna um parceiro cibernético da situação de jogo.

9 NT: nolife é em inglês "não-vida".

 

 

Recebido em 24 de outubro de 2009
Aceito para publicação em 21 de abril de 2010

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