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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro June 2010

 

SEÇÃO LIVRE

 

A problemática da verdade na psicanálise e na genealogia1

 

Truth in psychoanalysis and in genealogy

 

 

Joel Birman

Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa; Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas, Universidade Paris VII

 

 


RESUMO

A intenção deste ensaio é a de esboçar a questão da verdade, tal como essa foi destacada no final do percurso teórico de Foucault e na teoria psicanalítica, representada pelo discurso teórico de Lacan. A questão do sujeito é analisada na sua dimensão ética.

Palavras-chave: verdade; sujeito; ética.


ABSTRACT

This paper aims at outlining the issue of truth as seen in Foucault's late research and in psychoanalytical theory, represented herein by Lacan. The issue of the subject is analyzed in respect with its ethical dimension.

Keywords: truth; subject; ethics.


 

 

VERACIDADE, PODER E SUBJETIVAÇÃO

A intenção deste ensaio é a de esboçar a leitura das relações existentes entre o percurso final do discurso teórico de Foucault e a psicanálise, no que concerne tanto as suas diferenças quanto as suas similaridades. Quando enuncio a palavra esboçar, quero dizer com isso que não pretendo ser absolutamente exaustivo nesta leitura, mas apenas formular algumas proposições gerais que, como hipóteses iniciais de trabalho, devem ser ainda posteriormente desdobradas e aprofundadas. Enfim, não pretendo retirar deste percurso conclusões definitivas, mas apenas provisórias.

De qualquer forma, o que se pretende realizar é a problematização das possíveis relações existentes entre o discurso teórico de Foucault com o discurso de Freud e, principalmente, com o de Lacan. Foucault e Lacan foram contemporâneos, como se sabe, apesar de pertencerem a gerações diferentes, sendo o primeiro mais jovem do que o segundo.

Assim, a ideia de problematização foi colocada em evidência como aquilo que marcaria a direção da pesquisa de Foucault, no final de seu percurso teórico, de maneira que problematizar uma questão se inscreveria decididamente, então, numa perspectiva eminentemente genealógica (Foucault, 1984a, 1984b). Porém, além disso, Foucault nos disse ainda que problematizar foi aquilo que sempre realizara efetivamente, desde o início de seu percurso teórico (Foucault, [1984] 1994), isto é, desde a História da loucura na idade clássica (Foucault, [1960] 1972), mas que ainda não se valia de tal conceito no início de seu percurso. Portanto, foi apenas num tempo segundo de sua pesquisa que Foucault pôde enunciar que, desde o começo do seu trabalho teórico, realizava a prática teórica da problematização.

Contudo, o interesse maior em se voltar para o momento final do discurso teórico de Foucault é que foi apenas nesse contexto que este se propôs a pensar a questão do sujeito. Com efeito, se essa questão não estava até então presente na sua obra de maneira positiva, mas apenas negativa, na medida em que esta foi marcada principalmente pela crítica sistemática da tradição da filosofia do sujeito, foi justamente aquela questão que se impôs no final do seu percurso. Porém Foucault nos disse ainda, de maneira paradoxal, que foi a problemática do sujeito que sempre lhe interessou desde o início de sua investigação, mesmo que tenha empreendido a crítica sistemática da filosofia do sujeito (Foucault, [1984] 1994).

Portanto, uma de nossas questões iniciais neste ensaio é a de situar devidamente a problemática do sujeito no discurso teórico de Foucault, destacando tanto a posição de negatividade no seu percurso inicial quanto a sua positividade posterior. Enfim, o que estará sempre em pauta é a inversão de perspectiva, no que concerne a problemática do sujeito, no discurso teórico de Foucault.

Assim, após enfatizar no tempo da arqueologia do saber a constituição das formas discursivas de veracidade (Foucault, [1960] 1972, 1963, 1966, 1969a) e no da genealogia do poder as articulações dessas formas de discursividade com as modalidades de poder (Foucault, 1974, 1976), enunciando então o filosofema fundamental da articulação existente entre saber e poder, Foucault procurou posteriormente colocar em pauta a inscrição do sujeito no campo polarizado entre os registros do saber e do poder.

No entanto, o sujeito passou a ser agora concebido e circunscrito numa perspectiva eminentemente histórica e não mais atemporal e metafísica, enunciado que foi então como forma de subjetivação (Foucault, [1988] 1994), isto é, marcado que seria pela posição que assumiria, seja face às formas discursivas de veracidade, seja frente às formas de poder. Seria nessa medida que a leitura das formas de subjetivação se perfilaria numa perspectiva ética, enfim, de sorte que as relações tecidas entre sujeito, ética e verdade seriam cruciais na problematização proposta por Foucault neste novo contexto teórico.

Portanto, se Foucault realizou inicialmente a crítica sistemática da tradição da filosofia do sujeito, foi para retomar, em seguida, a problematização do sujeito numa perspectiva teórica oposta ao dessa tradição filosófica, articulando, assim, o sujeito com os registros da ética e da verdade.

No que tange a isso, aliás, Foucault procurou diferenciar devidamente os discursos da ética e da moral, enunciando que enquanto essa estaria centrada fundamentalmente no registro do código de valores, que seria sempre historicamente delineado, aquela estaria marcada, em contrapartida, pela maneira pela qual o sujeito constituiria ações e produziria ativamente práticas de constituição de si (Foucault, [1984] 1994). O que estaria em pauta seria a forma pela qual o sujeito se inscreveria e se posicionaria no campo do código moral. Nesta perspectiva, as práticas de si se fundariam efetivamente na liberdade, não se configurando, pois, como modalidades de sujeição. Enfim, a singularidade do sujeito se constituiria por esses atos de liberdade e de produção de si, por onde se evidenciaria, então, a questão da verdade.

Vale dizer, o sujeito não estaria na origem e não teria a marca de ser originário, mas seria da ordem do destino, na medida em que seria produzido por práticas de si, nas quais essas conjugariam simultaneamente os imperativos do saber e do poder.

 

ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA E ESTILO DE VIDA

Esta problemática foi devidamente delineada por Foucault no seu percurso genealógico sobre a Antiguidade, quando procurou traçar as continuidades e descontinuidades existentes entre essa, o Cristianismo e a modernidade. Se a proposta de empreender uma história da sexualidade foi o que conduziu inicialmente Foucault à pesquisa da Antiguidade greco-romana, a investigação, contudo, mudou paradoxal e decisivamente de direção na sua realização. Isso porque o que Foucault colocou em pauta foi menos a construção de uma história da sexualidade do que a proposição de uma genealogia do sujeito ético. Portanto, o que estava em questão foi a problematização desse, em diferentes registros das práticas sociais existentes na Antiguidade, nos campos da dietética, da conjugalidade e do erotismo.

Assim, o que Foucault pôde então sublinhar foi não apenas a presença eloquente da austeridade na experiência erótica da Antiguidade - contrariando então decididamente o lugar-comum da existência da tolerância erótica no mundo pagão, face à intolerância presente nas posteriores tradições do Cristianismo e da modernidade - como também procurou marcar o ponto decisivo de ruptura entre essas diversas tradições (Foucault, [1984] 1994). Por onde passaria então a ruptura entre essas tradições? O que estaria em questão, afinal das contas, na ruptura em pauta?

A ruptura entre tais tradições se deu pela constituição de um código de valores supostamente universal, que passou a ser regulado pela Igreja, pelo qual se enunciava a existência de uma lei moral e simbólica. Foi pela mediação dessa que se forjou uma hermenêutica de si, voltada que era para a purificação do desejo e para a eliminação sistemática dos malefícios da carne. Na experiência da Antiguidade, em contrapartida, não existiria a presença da tal lei moral e simbólica; as práticas de si deixavam ao sujeito a possibilidade de escolha no registro das regras, sem que qualquer imperativo absoluto lhe fosse imposto de maneira insofismável (Foucault, [1984] 1994), como ocorreu posteriormente no Ocidente.

Com efeito, nos diferentes campos da dietética, da erótica e da conjugalidade as práticas de si se esboçavam de maneira diversa, não se pautando nunca pelo mesmo padrão, na medida em que não existia uma lei moral e simbólica, tal como foi instituído pelo Cristianismo, que subsumisse como um universal os diferentes campos particulares das práticas de si.

No entanto, a universalidade que foi conferida à razão, no discurso da filosofia estoica, esboçava já as coordenadas e as linhas de força que foram constitutivas da matriz moral na qual se forjou posteriormente a tradição do Cristianismo (Foucault, [1984] 1994). Continuidade e descontinuidade, portanto, entre a Antiguidade e o Cristianismo, onde a ênfase colocada na descontinuidade se destacou decisivamente face à continuidade, pela qual a liberdade presente no exercício das práticas de si seria, então, a marca por excelência do sujeito ético na Antiguidade.

Foi em decorrência disso que Foucault colocou em evidência os conceitos de estética da existência e de estilo de vida, como marcas eloquentes que seriam do sujeito ético na Antiguidade, de forma que transformar a sua vida numa obra de arte se configurou então como a característica fundamental do sujeito ético. Vale dizer, as práticas de si na Antiguidade seriam marcadas pela dimensão etho poética, tal como Foucault enunciou a característica maior de tais práticas de si, ao se apropriar positivamente do conceito forjado por Plutarco, no mundo helenístico (Foucault, [1984] 1994).

 

CUIDADO DE SI E CONHECER A SI MESMO

Ao lado disso, o conceito de cuidado de si se colocou também no primeiro plano do discurso teórico de Foucault, como marca eloquente que foi da experiência ética na Antiguidade, na medida em que o cuidado de si seria aquilo que regularia efetivamente o imperativo do conhecer a si mesmo (Foucault, [1981-1982], 2001). Dito de outra maneira, o imperativo socrático de conhecer a si mesmo se inscreveria na problemática maior delineada pelo imperativo do cuidado de si. Com efeito, mesmo que as práticas do cuidado de si tenham se disseminado bastante nas tradições romana e helenística, essas práticas estariam já presentes na tradição grega, como Foucault colocou devidamente em destaque na leitura de alguns Diálogos de Platão (Foucault, [1981-1982], 2001).

O que é importante de se destacar inicialmente, nesta oposição e tensão existente entre os registros do cuidado de si e do conhecer a si mesmo, é que a predominância do registro do conhecer sobre o do cuidado foi o caminho pelo qual a moral do Cristianismo se constituiu historicamente. Nesta perspectiva, a hermenêutica de si centrada na purificação do desejo, no imperativo da resignação do indivíduo e na universalização do código moral foram os seus desdobramentos teóricos cruciais. Foi neste contexto que o ritual da confissão se instituiu no Cristianismo e foi esse o dispositivo específico de poder que se forjou para a produção efetiva da sujeição.

Além disso, foi também esta transformação moral o que se encontraria no solo da constituição e da emergência da filosofia na modernidade, na medida em que o cogito cartesiano condensaria a inversão entre os registros do conhecimento e do cuidado de si, de maneira que o campo do conhecer ficaria assim autônomo do campo estrito da ética. Seria essa inversão, portanto, que marcaria a diferença fundamental entre a modernidade e a Antiguidade. Com efeito, se nessa o sujeito, pela experiência da ascese e pelas práticas de si, estaria já imerso no campo da verdade, naquela, em contrapartida, a verdade se articularia pela objetivação do conhecimento no sujeito e no mundo (Foucault, [1984] 1994).

Seria em decorrência dessa ruptura fundamental que o discurso da ciência teria então se forjado historicamente, se configurando assim pelas revoluções científicas ocorridas nos séculos XVII e XVIII. As diversas ciências humanas, constituídas no século XIX, se inscreveram nesta mesma matriz teórica de objetivação do mundo e do sujeito.

Além disso, é preciso destacar que foi pelo viés desta objetivação do sujeito que o imperativo da normalização se disseminou largamente no espaço social no século XIX, no qual esse foi meticulosamente delineado e cartografado pelas categorias do normal, do anormal e do patológico. Esse processo de normalização foi realizado inicialmente pelos discursos e pelos dispositivos da medicina, no qual essa teria sido o modelo antropológico para a constituição do campo das diferentes ciências humanas (Foucault, 1963).

 

GENEALOGIA E HISTÓRIA

Tudo isso que foi dito acima indica efetivamente o retorno crítico empreendido por Foucault à Antiguidade, após ter permanecido, durante a maior parte de sua investigação, circunscrito historicamente ao tempo da Idade Clássica e da modernidade. Esse retorno, no entanto, foi ditado pelas questões e imperativos colocados pela contemporaneidade, na medida em que Foucault tinha a pretensão de realizar uma pesquisa de caráter fundamentalmente genealógico e não histórico.

Por isso mesmo, o que estaria em pauta não seria uma retomada hoje da tradição da Antiguidade, mas o propósito de uma incursão nessa que seria guiada pelos impasses colocados na atualidade, com a perspectiva efetiva de constituir uma ética. Além disso, é preciso não se esquecer de que esse mesmo retorno à Antiguidade já se realizou em outros momentos da história do Ocidente, como no Renascimento, no tempo da Revolução francesa e no século XIX, quando certos impasses foram então igualmente perfilados na nossa tradição (Foucault, [1984] 1994).

Foi em decorrência do desentendimento teórico sobre as diferenças existentes entre as leituras genealógica e histórica que o percurso final de Foucault, nas tradições grega e romana, engendrou diversas polêmicas com os helenistas. Esses, com efeito, criticaram diretamente Foucault, por não reconhecerem nas suas descrições e problematizações a Antiguidade que conheciam numa perspectiva eminentemente histórica (Pradeau, 2002). Não cabe aqui analisar detidamente as particularidades e os termos desta polêmica, mas apenas evocar e enfatizar a diferença de leituras em questão que está na base de tal polêmica.

Porém é preciso evocar aqui ao menos a crítica de Hadot (1995), na medida em que essa colocou em evidência a perspectiva teórica assumida por Foucault, que já destaquei acima e que interessa ao desenvolvimento deste ensaio, pela qual a construção da ética teria sido forjada na Antiguidade pela não consideração do conhecimento ontológico do mundo. Para Hadot, com efeito, esses dois registros estiveram sempre articulados na Antiguidade, não sendo possível então separá-los artificialmente, como realizara Foucault. Portanto, a verdade inscrita no discurso ético seria inseparável de sua constituição no discurso ontológico, indicando assim a continuidade existente entre as práticas espirituais na Antiguidade e no Cristianismo, na perspectiva teórica que foi delineada por Hadot.

 

FOUCAULT E A PSICANÁLISE

Seria por este viés, no entanto, que a problematização da psicanálise se impõe necessariamente agora neste percurso. Assim, como se inscreveria o discurso psicanalítico no campo deste debate, polarizado que estaria esse entre os registros da ética e do saber teórico? Qual seria então a especificidade teórica da psicanálise?

Foucault empreendeu diversas e diferentes leituras sobre a psicanálise ao longo de sua obra. Não pretendo evocá-las minuciosamente aqui, para não perder o foco de minha leitura e me deslocar do que está em pauta (Birman, 2007). Contudo, não obstante os múltiplos comentários concisos que realizou, nos quais a psicanálise foi efetivamente criticada, Foucault enunciou duas formulações que devem ser aqui colocadas em evidência.

No ensaio intitulado O que é um autor?, Foucault (1969b) afirmou que a psicanálise não era uma ciência, mas uma forma de discursividade. Se naquela os conceitos enunciados dispensam a referência a seus autores, nessa, em contrapartida, os conceitos seriam sempre autorais. Daí porque ser fundamental, no registro da discursividade, o movimento de retorno aos textos originários das diferentes formações discursivas, tal como realizou Lacan no seu retorno a Freud e como outros intérpretes empreenderam em relação a Marx, o que não ocorreria jamais no campo dos discursos científicos. Nesses, com efeito, o que interessaria seria a constituição do campo conceitual e dos seus objetos teóricos respectivos e não os autores que forjaram um determinado discurso científico.

Em As palavras e as coisas, publicado em 1966, Foucault fez um elogio à psicanálise e à antropologia estrutural, por terem ambas promovido o descentramento do sujeito dos registros da consciência e do eu. Vale dizer, nesta operação teórica a crítica da tradição da filosofia do sujeito foi empreendida de maneira eloquente, de modo que Foucault implicaria efetivamente o seu projeto teórico nessa crítica, incorporando assim a problemática do descentramento do sujeito na arqueologia do saber e na genealogia do poder.

O que se coloca agora como problema é a indagação de como a psicanálise se articularia com o discurso da ciência e qual o destino a ser conferido à ideia de descentramento do sujeito. Por esse duplo questionamento, o que estaria em pauta, antes de mais nada, é se a psicanálise se inscreveria no campo da ética e não no campo da ciência. Em seguida, é preciso se perguntar se a experiência psicanalítica delinearia para o sujeito um campo que seria similar às práticas de si da Antiguidade. Finalmente, se o imperativo de dizer a verdade (parrêsia) (Foucault, [1982-1983] 2008, [1984] 2009) do discurso filosófico da Antiguidade seria o equivalente ao imperativo de enunciação da verdade formulada na psicanálise.

 

CIÊNCIA E ÉTICA

Assim, não existe qualquer dúvida de que Freud pretendeu insistentemente inscrever a psicanálise no campo da racionalidade científica, se bem que acabou por desistir deste projeto desde os anos 20, principalmente após a formação do novo dualismo pulsional entre pulsão de vida e pulsão de morte, enunciado em "Além do princípio do prazer" (Freud, [1920] 1981). Diante da oposição reiterada das comunidades científica e filosófica às suas pretensões repetidas com vistas a sustentar a cientificidade da psicanálise, Freud acabou por desistir disso e enunciar que sua teoria das pulsões seria a sua "mitologia" (Freud, [1933] 1936).

Parece-me que Lacan repetiu o gesto e a intenção teóricas de Freud, em outras bases conceituais, é claro, ao pretender inicialmente constituir a psicanálise como uma ciência, de fato e de direito. Com efeito, enunciou então, em "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (Lacan, [1953] 1966), que a psicanálise não era ainda uma ciência mas poderia se tornar, desde que se inscrevesse e se constituísse no campo das ciências conjecturais. Valeu-se para isso da linguística, da lógica, da cibernética e da matemática, para viabilizar esta proposta teórica.

Porém Lacan desistiu desta pretensão nos anos 60, de maneira direta ou indireta, ao enunciar que o inconsciente não seria de ordem ôntica, mas de ordem ética, em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, [1964] 1978). A sua insistência, no final de seu percurso teórico, de que a psicanálise seria uma prática, mas uma prática que funcionaria efetivamente, se inscreve nesta perspectiva decididamente ética.

Além disso, a insistência de Lacan de que seria preciso definir previamente o que seria o fundamento do discurso científico para poder então inscrever a psicanálise no campo desse discurso enuncia bem a diferença existente entre o que seria de fato o discurso científico e a especificidade teórica da psicanálise, face aos cânones epistemológicos presentes no campo desse discurso. O que implica em dizer, afinal das contas, que a psicanálise se constituiu efetivamente como uma racionalidade e que forjou uma teoria, mas que essa não se inscreveria no campo estrito da racionalidade científica, tal como essa seria epistemologicamente definida.

Porém Lacan procurou também delinear o lugar e a posição estratégica da psicanálise no campo do discurso da ciência. Assim, se o sujeito da psicanálise seria efetivamente o sujeito do discurso da ciência, como Lacan procurou sustentar no ensaio "A ciência e a verdade" (Lacan, 1966), é preciso que se coloque em destaque devidamente o que Lacan pretendia dizer com essa afirmação peremptória. Com efeito, se o discurso psicanalítico seria tributário da ruptura e da descontinuidade epistemológicas constituídas pela emergência histórica do discurso da ciência - proposição que Lacan retirou da leitura de Koyré (1966, 1970) sobre a cesura existente entre a modernidade e a Antiguidade, com a constituição do discurso da ciência no século XVII com Descartes e a formação da física com Galileu, leitura essa modulada pela interpretação de Kojève (Milner, 1995) -, isso não implica em dizer que a psicanálise se inscreva de direito no campo da racionalidade científica.

Assim, o que isso produziu historicamente foi a Spaltung, isto é, a divisão do sujeito, como Lacan afirmou logo no início de seu ensaio sobre "A ciência e a verdade" (Lacan, 1966). Vale dizer, o que o discurso da ciência aboliu foi justamente o sujeito e colocou este numa condição de suspensão, que a psicanálise teria procurado restaurar e retomar, com Freud, com a invenção do conceito do inconsciente. De forma que, quando Lacan inscreveu a dimensão do sujeito no inconsciente, sob a forma e o enunciado do sujeito do inconsciente, nos indicava efetivamente a pertinência desta interpretação. Enfim, estaria aqui situada, no discurso teórico de Lacan, a proposição teórica de Foucault acima evocada, qual seja, a de que a psicanálise teria promovido o descentramento do sujeito dos campos do eu e da consciência.

Foi nesta medida que, desde o início de seu percurso teórico, Lacan, ([1948] 1966, [1949] 1966) fez a contraposição dos registros do je (sujeito) e do moi (eu), colocando em evidência tal descentramento, do sujeito. Além disso, ao opor posteriormente os registros da verdade e do saber, Lacan estava nesse mesmo comprimento de onda teórico, inscrevendo o campo da verdade no registro do inconsciente e, consequentemente, do sujeito. Enunciar, da mesma forma, que o campo da psicanálise seria o que se fundaria nos registros da fala e na linguagem e que, além disso, o inconsciente seria organizado como uma linguagem (Lacan, [1953] 1966) colocaria em evidência a articulação existente entre os registros do sujeito e da verdade.

Foi ainda em decorrência desta perspectiva teórica que Lacan pôde sempre enunciar no seu percurso que a psicanálise não era uma modalidade de psicologia e, por isso mesmo, pôde fazer o elogio do ensaio de Canguilhem (1968) intitulado O que é a psicologia? (Lacan, 1966). Este enunciado se sustentaria justamente porque a questão do sujeito estava excluída do campo teórico da psicologia. Além disso, Lacan ([1948] 1966) criticou sistematicamente a objetivação que essa pretendia empreender do psiquismo, na medida em que o sujeito não poderia ser objetivado por este saber supostamente científico. Enfim, enunciar ainda que o inconsciente seria transindividual seria diferenciar decididamente a psicanálise da psicologia, costurando as relações entre os registros do sujeito, do inconsciente e da verdade.

Desta maneira, a psicanálise empreenderia a crítica dos processos de normalização realizados pela medicina, pela psiquiatria e pela psicologia, ao realizar a crítica sistemática dos processos de objetivação do psiquismo formulados pelos saberes do psíquico, por um lado, e por não incidir e não se circunscrever ao campo do indivíduo centrado no registro do eu, pelo outro. Isso porque o que estaria em pauta na sua experiência clínica seria a relação do sujeito e da verdade.

Contudo, delinear a construção do campo psicanalítico na articulação entre os registros do sujeito e da verdade seria aproximar decididamente a psicanálise dos discursos filosófico e ontológico. Daí porque Lacan se valeu insistentemente da filosofia no seu percurso teórico, pela mediação de diferentes teorias filosóficas. Na sua alusão e manejo teórico de Heidegger, no começo dos anos 50, a proximidade do campo do inconsciente com o registro do ser se tornou bastante eloquente e patente, de forma que a dialética entre o ser e o ente se fez também presente na sua leitura do discurso freudiano (Balmès, [1953-1960] 1989). Além disso, a leitura do inconsciente, em Os quatro conceitos fundamentais na psicanálise (Lacan, [1964] 1978), pelos movimentos de abertura e de fechamento, cadenciados pelo impacto regular da pulsão, se aproxima efetivamente do filosofema heideggeriano sobre o ocultamento e a revelação do ser.

Nesta referência crucial a Heidegger, a evocação da filosofia grega se faz assim também presente no discurso teórico de Lacan, de maneira eloquente e patente. Da mesma forma, quando Lacan, ([1953] 1966) aproximou a experiência psicanalítica da maiêutica socrática, numa alusão outra à articulação existente entre sujeito e verdade, a referência à tradição grega é também bastante eloquente.

Assim, podemos afirmar que a psicanálise com Lacan se funda não apenas na relação existente entre os registros do sujeito e da verdade, na qual se articularia o inconsciente, como também que o sujeito em questão seria de ordem ética e não mais ôntica, como formulou Lacan no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, [1964] 1978).

No entanto, é preciso se indagar agora se esse imperativo de verdade delineado por Lacan com pertinência, articulado nos registros da fala e da linguagem, é similar ao que Foucault enunciou sobre o dizer verdadeiro (parrêsia) presente na tradição grega e na Antiguidade tardia. É o que veremos no que se segue.

 

DIZER VERDADEIRO E FRANCO FALAR

Assim, Foucault se voltou nos seus últimos cursos realizados no Collège de France, centrados principalmente na investigação da Grécia antiga, para a leitura da parrêsia como imperativo e prática discursiva do dizer verdadeiro e do franco falar (Foucault, [1982-1983] 2008, [1984] 2009). Procurou colocar então em evidência como dizer a verdade foi não apenas constitutivo da democracia grega, como também que essa entrou decididamente em crise quando o falar franco se perverteu, na medida em que foi transformado no falar por falar e no falar não importa o quê. Com isso, a dimensão de verdade que estava presente neste franco falar se esvaziou e se perdeu, já que a convicção, que implicaria o falante na sua elocução e que estava presente na sua versão originária, foi transformada numa prática de mera persuasão e de engodo.

Em decorrência disso, a filosofia continuou ainda a se direcionar para o campo da política, mas, neste outro contexto, não estaria se voltando mais agora o imperativo do dizer verdadeiro para o espaço público da polis, mas para o trabalho de aconselhamento dos governantes, no espaço privado do poder. Além disso, o franco falar se deslocou também para o espaço público das ruas, onde se constituiu a personagem filosófica de Sócrates e a sua prática maiêutica. Finalmente, teria se forjado aqui, por esta prática do franco falar, a filosofia propriamente dita, centrada que foi essa numa ética e que foi constitutiva da vida filosófica propriamente dita.

Nesta perspectiva, a filosofia não se identificaria com a retórica, pois o dizer verdadeiro sustentado pela primeira não se identificaria com o bem dizer forjado pela segunda, nem tampouco com a sofística. Além disso, o franco falar se diferenciaria decididamente de outras práticas discursivas, como o oráculo, a sabedoria e a técnica.

O que seria então a parrêsia? Seria uma prática discursiva que implicaria necessariamente a convicção efetiva do falante, de maneira que esse se comprometeria inteiramente como sujeito com o que enunciaria. Com efeito, no franco falar o sujeito colocaria a sua vida em risco, pois a assunção e o enunciado da verdade poderiam ter desdobramentos imprevisíveis, pelos efeitos perigosos que poderiam produzir efetivamente naqueles que o escutariam. Vale dizer, não seria fácil sustentar a verdade e o enunciado dessa seria decididamente arriscado para quem a formula. Enfim, é efetivamente a dimensão ética da verdade que estaria em pauta na prática do franco falar, implicando necessariamente quem fala, de forma direta e frontal.

Portanto, no franco falar como prática discursiva não estaria em pauta apenas a formulação de um enunciado verdadeiro, mas a assunção efetiva de quem fala tal enunciado, que correria assim o risco de vida, pela verdade que pronunciaria e sustentaria. Não se trataria então de uma simples performance discursiva, pois implicaria a convicção do falante, com seus eventuais riscos. A possibilidade de morrer efetivamente seria, assim, um dos riscos maiores colocados para o sujeito no exercício do franco falar. Sócrates pagou com a vida pelo exercício do dizer verdadeiro e constituiu, com o seu gesto eloquente do dizer verdadeiro, a filosofia moral. Na tradição helenística, os cínicos foram os representantes maiores desta prática do franco falar, quando esta prática discursiva atingiu então o limiar efetivo do escárnio e do escândalo.

 

A PSICANÁLISE EM QUESTÃO

O que se impõe agora para nós é indagar se o imperativo de dizer a verdade, delineado pelo dispositivo psicanalítico, assume a função radical dessa coragem de verdade, na qual a vida do sujeito estaria efetivamente em risco, tal como Foucault sustentou na leitura da tradição filosófica na Grécia antiga e na tradição helenística.

Podemos responder a isso de diferentes maneiras:

1. O imperativo de dizer a verdade na experiência analítica seria efetivamente uma experiência de risco para o sujeito, pelo qual a possibilidade da morte poderia se impor concretamente para esse. O que estaria em jogo aqui seria imediatamente a morte simbólica, mas essa poderia conduzir posteriormente à morte real;

2. Contudo, mesmo que o funcionamento efetivo do dispositivo analítico possa conduzir a isso, tanto o analisando quanto o analista recuariam face a essa possibilidade limite, em decorrência do imperativo narcísico desses personagens engajados na cena psicanalítica, que impediriam assim a concretização desse risco. A normalização histórica da experiência analítica se constituiu então historicamente como um antídoto contra isso;

3. Finalmente, como a forma pela qual o inconsciente se enuncia ritmadamente pelos atos de abertura e de fechamento, a verdade seria então sempre dita de forma parcial e incompleta, no diapasão do semidizer, como nos disse Lacan; isso impossibilitaria então a radicalidade assumida pela coragem da verdade presente no franco falar. Nestes termos, o imperativo de dizer a verdade em psicanálise não seria da mesma ordem daquilo que Foucault descreveu na Grécia antiga e na tradição helenística.

Não pretendo responder diretamente aqui às indagações colocadas por estas três possibilidades, que não são meramente teóricas mas efetivamente reais. Deixo para vocês, em aberto, a escolha e a polêmica que podem ser sustentadas com estas diferentes perspectivas de interpretação dos riscos presentes na experiência analítica. Porém diferentes versões teóricas da psicanálise estão efetivamente implicadas em cada uma destas possibilidades que foram acima enunciadas, de forma que as diversas possibilidades poderiam se realizar.

 

FOUCAULT E LACAN

De qualquer forma, existem algumas proximidades, não obstante as evidentes e múltiplas diferenças entre a problemática do sujeito ético delineado por Foucault e a do sujeito ético colocado em evidência por Lacan. Foucault reconheceu isso, aliás, de maneira indireta, numa entrevista realizada em 1981, no jornal italiano Corriere della Sera, intitulada Lacan, o libertador da psicanálise (Foucault, [1981] 1994).

O que nos disse Foucault sobre isso? Podemos destacar diferentes tópicos:

1. Lacan procurou diferenciar a psicanálise dos discursos da psiquiatria e da psicologia;

2. Além disso, procurou afastar a psicanálise dos campos da medicina, da psiquiatria e das instituições médicas e psiquiátricas;

3. Não buscava realizar, com a psicanálise, uma prática de normalização dos indivíduos, mas pretendeu constituir efetivamente uma teoria do sujeito;

4. Por isso mesmo, o trabalho teórico de Lacan contribuiu decisivamente para colocar em questão as práticas da medicina mental;

5. Finalmente, pela teoria do sujeito que propunha, Lacan procurava sair do impasse teórico presente no início dos anos 50, qual seja, de que o sujeito seria inteiramente livre (fenomenologia e existencialismo) ou, então, que seria determinado pelas suas condições sociais de existência (marxismo). Vale dizer, o que Lacan e outros teóricos de então começaram a propor foi procurar se libertar do que existiria de oculto no emprego aparentemente simples do pronome eu.

Portanto, Lacan e Foucault trabalharam a problemática do sujeito de maneira teoricamente próxima, não obstante as suas diferenças evidentes, destacando ambos a dimensão ética do sujeito e se contrapondo assim à redução desse à dimensão de produção do conhecimento. Enfim, ambos criticaram as estratégias positivistas presentes nos discursos da psiquiatria e da psicologia, que visavam à objetivação do sujeito.

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Conferência proferida no Congresso Internacional "Les origines grecques de la psychanalyse", realizado em Atenas de 23 a 25 de outubro de 2009, organizado pela Université Panteion de Sciences Sociales et Politiques, de Atenas e Université Paris 7, de Paris. Este texto foi escrito a partir das notas que me orientaram na conferência.

 

 

Recebido em 07 de dezembro de 2009
Aceito para publicação em 06 de abril de 2010

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