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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.2 Rio de Janeiro jun. 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Do encontro com a montagem perversa: desdobramentos éticos para o fazer do analista

 

On the encounter with the perverse montage: the ethical aspects of the work of the analyst

 

 

Ana Carolina Rios SimoniI; Priscilla Machado de SouzaII

IPsicóloga; Especialista em Atendimento Clínico com ênfase em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre e doutoranda em Educação pelo PPG-EDU da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIPsicóloga; Especialista em Atendimento Clínico com ênfase em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Terapeuta da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

O presente artigo discute a temática da perversão na clínica psicanalítica, sublinhando sua dimensão lógica em detrimento do acento psicopatológico. Interessa-nos situar alguns elementos emergentes no encontro com a lógica perversa como aportes ao trabalho clínico e interrogantes ao dispositivo analítico. O encontro com a perversão convoca o analista, de forma mais direta, a tomar em consideração a questão do gozo, na medida em que o perverso, desde sua posição de instrumento de gozo do Outro, reitera que no psiquismo há um para além do desejo. Na posição perversa, não é o desejo que está em causa, mas sim um saber sobre o gozo. A possibilidade do analista de se fazer suporte do desejo do analisando, nesse caso, se vê confrontada, de modo que uma pergunta em relação à ética se impõe. Retomando as construções lacanianas em torno de Kant com Sade, trabalharemos estes pontos.

Palavras-chave: perversão; psicanálise; ética.


ABSTRACT

This article discusses perversion in psychoanalytical clinic, underlining its logical dimension to the detriment of a psychopathological view. We would like to situate some elements that emerge on the encounter with the perverse logic as; how it adds on to clinical work and questions the analytical dispositive. The encounter with perversion convokes the analyst, in a more direct way, to considerate the question of jouissance, because the perverse, as an instrument of the Other's jouissance, denotes the existence of something beyond the desire. In the perverse position, the desire is not a cause; in fact, there is knowledge about the jouissance. The possibility of the analyst being the support of the patient's desire is hindered in, and this fact poses an ethical question. We shall approach these points based on Lacan's article Kant with Sade.

Keywords: perversion; psychoanalysis; ethics.


 

 

Neste artigo, pretendemos trabalhar a temática da perversão ou das perversões, tomando como interrogantes: ética, moral e gozo em psicanálise. No campo freudo-lacaniano, o tema da perversão é acessado pelas fronteiras - fronteiras entre clínica, psicopatologia e justiça. Aqui, buscaremos pensar como o dispositivo que sustenta nossa prática analítica interage com a estrutura perversa; sublinhando a importância de pensar a perversão em termos lógicos, guardando certa distância de um acento psicopatológico. Isto porque, embora os perversos não povoem os consultórios dos analistas, a clínica da perversão - em sua presença lógica - permite-nos manter uma posição interrogativa em relação à ética. Trata-se assim de apostar naquilo que o perverso pode aportar à clínica psicanalítica, ainda que talvez a psicanálise não lhe haja aportado tanto, na medida em que as outras fronteiras - psicopatologia e justiça - se interpõem enquanto complexificadores contundentes.

Na experiência analítica lacaniana, a questão do desejo esteve, tradicionalmente, no centro dos debates teóricos, dando direção à escuta. O encontro clínico com a estrutura perversa, por outro lado, convoca de forma mais direta o analista a considerar a questão do gozo. O perverso reitera que no psiquismo há um para além do desejo, restando ao analista desfazer-se do ideal de que tudo esteja relativizado e remetido ao desejo e relembrando-o do enlace entre significante e corpo. Nesse sentido, talvez a perversão tensione o armado lógico-clínico do dispositivo analítico, qual seja, a posição do analista de se fazer suporte do desejo do analisando. Isto ocorreria na medida em que o perverso não coloca seu desejo em causa, mas sim o seu saber sobre o gozo, o que inclui o gozo do próprio analista. Pois, indubitavelmente, há uma posição perversa na qual o analista muitas vezes se vê capturado. Desse modo, uma ética se impõe já que passa a ser fundamental estar advertido de tal captura.

No imaginário social o perverso é muitas vezes apresentado como alguém dependente da dor, seja causando-a ou sofrendo-a. Um exemplo cotidiano se reitera quando algum caso de psicopatia aparece na imprensa, provocando certo frenesi coletivo e capturando o olhar fascinado do neurótico na direção da dor que o perverso supostamente teria sido capaz de sofrer ou de imputar. O tema da dor - seja ela física ou moral - ao vincular-se às perversões tem mais relação com a fantasia neurótica do que com o que propriamente está em causa na cena perversa. Esta apreensão já está presente em "Uma criança é espancada", texto fundamental no qual Sigmund Freud ([1919] 1969) alicerça a conceitualização da fantasia. A dor não é o centro da questão que o perverso coloca ao seu partenaire. O que a posição perversa põe em causa é a angústia. A angústia - Jacques Lacan ([1962-1963] 2004) o disse em seu seminário de mesmo nome - é o afeto que não engana, é a marca do sujeito em desvanecimento por sua aproximação ao objeto a. É o sinal que o perverso necessita para saber que "em suas mãos" tem um sujeito.

O psicanalista supõe o sujeito, ainda que nem sempre esteja seguro de que se produza. Ainda assim, não raras vezes, percebe-se certa analogia da própria psicanálise com a temática da dor, como se o analista estivesse na condição de ser aquele que "cutuca as feridas". Uma vez mais, se trataria do caso em que os modelos técnicos apontariam para a necessidade de angustiar o paciente - exercício "legitimado" da posição perversa, em relação ao qual a retificação ética da psicanálise realizada por Lacan vai totalmente contra.

 

O PERVERSO E O MORALISTA

Em seu Seminário 7 - sobre a ética -, Lacan ([1959-1960] 1998) começa a aproximar o filósofo Kant do não menos ilustre Marquês de Sade, propondo que ambos coincidem no ponto em que a dor não é evitada, já seja no caso do cumprimento do dever, em referência ao primeiro, ou do cumprimento do prazer, remetendo-se ao último. Se Kant propõe que a ação moral deve orientar-se por princípios universais - "age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação que seja para todos" (Kant, 1788, citado por Lacan, [1959-1960] 1998: 98) -, Sade, em Filosofia na alcova, também propõe um princípio ordenador da relação ao outro que apaga a dimensão da alteridade. O central na ética proposta por Kant, na leitura de Lacan, está em sustentar a ação moral, de forma radical, num universalismo e numa transcendência do bem. Esta interpretação do texto kantiano permite a Lacan situá-lo muito próximo do Marquês de Sade, cuja máxima universal de toda ação seria o direito de gozar de outrem como um instrumento de prazer. Esse imperativo, embora ataque os fundamentos da lei moral, preconizando o incesto, o adultério, o crime, paradoxalmente, se aproxima de Kant, ali onde não renunciar a nenhum gozo e renunciar a todo e qualquer gozo apontam para a dimensão do absoluto.

Para Lacan ([1959-1960] 1998), Kant sempre pede a anuência da razão e anseia por uma razão pura a despeito do objeto. Assim, irá designar como patológico tudo aquilo de que, segundo Lacan, o sujeito possa padecer devido a seu interesse por um objeto. A moral, tal como Kant a concebe, diz respeito a uma prática incondicional da razão, instaurando um rechaço radical do patológico. Já no sentido sadiano, poderíamos dizer que o patológico seria não querer gozar, ou seja, seria a renúncia pulsional. Assim, ambas as proposições imperativas, cada uma a sua maneira, atacam a lei do desejo - lei que interdita o gozo na medida mesma em que instaura a diferença. A diferença diz respeito ao fato de que sobre o bem do outro, sobre o desejo do outro, sobre o gozo do outro nada se sabe. É assim que é possível aproximar o perverso e o moralista. Ambos apresentam-se como tendo um saber sobre o gozo - gozo fálico, aquele que pode ser contabilizado -, sobre quanto prazer deve ser obtido, quanto bem deve ser realizado, quanto mal pode ser evitado etc. Em relação a este suposto domínio do saber, Lacan sempre foi decisivo ao denunciá-lo e rechaçá-lo na prática analítica, ancorado no que a própria experiência clínica com as neuroses deu a perceber. Aqui se impõe uma referência textual do Seminário 20 (Lacan, [1972-1973] 1975), Mais, ainda1 que nos parece incisiva neste sentido:

[...] chegou o momento em que se viu que as perversões tal como se crê poder detectar na neurose de nenhum modo eram isso, perversões. A neurose é antes o sonho do que a perversão. Os neuróticos não têm nenhum dos caracteres do perverso. Simplesmente sonham com isso, coisa muito natural, pois, senão, como acessar seu parceiro. Então começaram a aparecer perversos, os mesmos que Aristóteles não queria ver por nada no mundo. Há neles uma subversão da conduta que se apoia num savoir-faire, uma habilidade ligada a um saber, o saber da natureza das coisas, um acoplamento direto da conduta sexual com o que é sua verdade, ou seja, sua amoralidade. [...] Só que a força de bem dizer desemboca em Kant, onde a moralidade confessa o que é. É o que pensei ter formulado num artigo, Kant com Sade: a moralidade confessa que é Sade (Lacan, ([1972-1973] 1975: 105).

Kant (1788, citado por Lacan, 1962) partiria da divisão entre duas formas de bem, mudando a roupagem da ética aristotélica que preconizara o Bem Supremo. O estar bem assentado no bem dispara essa divisão kantiana; divisão esta propiciada pelo idioma alemão. Em Crítica da razão prática, Kant separa Wohl e das Guten. Wohl é o bem-estar, ou seja, a homeostase, enquanto das Guten é o Bem. Wohl se equipararia com o princípio do prazer, enquanto das Guten seria o bem que é objeto da lei moral, bem este que se impõe por seu "valor universal". É deste modo que Lacan trabalha Kant em Kant com Sade ([1962] 1998). "Certamente, esses dois imperativos, entre os quais pode ser esticada até o estilhaçamento da vida a experiência moral, são-nos impostos, no paradoxo sadiano, como ao Outro, e não como a nós mesmos" (Lacan, [1962] 1998: 781).

Portanto, Lacan ([1962] 1998) enlaça Kant e Sade em suas tarefas de moralizadores e legisladores do gozo. De fato, pode-se aceder ao porquê de a psicanálise se afastar destas duas posições; posições nas quais o perverso - ou o analista, se está deslocado de seu lugar - pode aproximar-se do pedagogo, do expert.

Ainda que afirme que não está falando do "sujeito desejo" e que se falou de tudo menos de desejo em "Kant com Sade", neste escrito que é contemporâneo ao Seminário 10 se localizam importantes precisões com respeito à ainda incipiente conceitualização da fórmula do fantasma. Por isso, inequivocamente, ele trata da questão do objeto, mote de sua teorização da angústia naquele momento.

No escrito de 1962 [1998], Lacan afirma que no texto kantiano o objeto é problemático, já que o objeto moral desliza, escapole, pois em Kant a moral está sempre referida a uma "razão pura". Dos dois textos cruzados por Lacan - o kantiano e o sadiano - retira-se um mesmo fator imperativo, cada qual com sua vontade - vontade moral e vontade de gozo - e daí decorre que um questionamento ético se imponha. Contudo, talvez o objeto fique ainda menos apreensível desde o ponto de vista sadiano.

Para Lacan, o objeto é um termo ausente na experiência moral de Kant, na qual, "a fim de garanti-lo para a vontade no cumprimento da Lei, ele é obrigado a remeter ao impensável da Coisa-em-si" (Lacan, [1962] 1998: 783). Na experiência sadiana, podemos acrescentar agora, na perversão, o objeto seria o próprio agente do tormento.

Nesse momento seguiremos mais detidamente o escrito de Lacan ([1962] 1998). Nele é dito que o cristianismo ensinou aos homens serem pouco avarentos do lado do gozo de Deus. Além disso, o texto acrescenta que Kant "carrega a mão" na ataraxia2 da experiência estoica. Destaca que Deus é, em Sade, por reversão, o "Ser-supremo-em-maldade" (Lacan, [1962] 1998: 784). Ser de malignidade absoluta que está em posição diametralmente simétrica ao Bem Supremo aristotélico.

Agora bem, ao cruzarmos isto com o que Lacan ([1962] 1998) formula a respeito do fantasma sadiano, decanta-se a problemática lógica que a estruturação perversa propõe para a psicanálise. Segundo Lacan, no fantasma sadiano o gozo, ao petrificar-se, fixar-se, transforma o objeto em "fetiche negro", em uma espécie de forma oferecida para que "se adore nela um deus". Nela, o executor, o sádico, se torna no limite um instrumento, "ser carnal e, até a medula, servo do prazer". Atentemos então para os termos situados no fantasma perverso: teríamos em a o executor-instrumento e em a vítima. Aqui conviria nomear o desejo - ainda que seja fator de fenda do sujeito -, segundo Lacan, de "vontade de gozo". O que não quer dizer que este sujeito não esteja dividido em relação ao seu pathos, porque "ele já começa derrotado, fadado à impotência" ([1962] 1998: 784).

Pois bem, há divisão. Entretanto, Lacan ([1962] 1998) sublinha que não se trata do desejo-sujeito, por não ser "indicável em parte alguma num significante da demanda" (Lacan, [1962] 1998: 785). O fantasma sadiano aproveita, segundo Lacan, "um dado vital" em relação à dor e ao término do prazer - remetendo-nos à questão do fading - para empreender um "cálculo do sujeito". Cálculo do qual a angústia faz parte. É assim que o fantasma fixa "no sensível da experiência sadiana o desejo que aparece em seu agente" (Lacan, [1962] 1998: 785). Desejo que, como já foi dito, não é senão vontade de gozo.

O sujeito da vontade de gozo será o "sujeito reconstituído da alienação"; contudo, à diferença do sujeito da neurose, ao preço de ser instrumento do gozo, tornando-se a si próprio objeto. No sistema sadiano, conforme Lacan, há uma "estática do fantasma" que opera de modo a adiar, infinitamente, na imaginação, o ponto de afânise suposto em (Lacan, [1962] 1998: 786). Isto quer dizer que não há lugar para o aniquilamento, para o fim, para este fading, trabalhado exaustivamente por Lacan, no Seminário 11, como "afânise" ([1964] 1998: 193-204).

 

DA ÉTICA

O fantasma perverso promoveria um dinamismo paradoxal na medida em que o posicionamento de seus termos, ao se chocarem com o psicanalista em posição de semblante de a-causa, faria advir um descompasso inquietante. Então, nos animamos a formular: que encontro seria possível entre um analista e um perverso? Pensá-lo se torna importante, ainda que pouco localizável na prática clínica cotidiana. Porém arriscamos que esta realidade "estatística" notificaria que há uma dificuldade estrutural no exercício destes dois atores no dispositivo analítico. Trata-se antes disto do que da ideia de que existem poucos perversos, como se houvesse menor incidência deles. De fato, neste intento de encontro, uma lógica discursiva se detém - a do psicanalista - porque o perverso também promove um certo semblant, uma aparência. Contudo, não se trata da aparência do objeto a, pois nisto ele é realmente vívido em sua posição de instrumento. Em realidade, trata-se de uma aparência de detentor do gozo, na qual exerce uma maestria - não a do mestre que se deixaria derrubar pela mascarada, pela histérica, mas a maestria de cálculo sobre o gozo. Ainda que fantasmaticamente sua cena seja montada para que ele extraia gozo ao Outro, dando a este consistência, sua apresentação é daquele que sabe sobre o gozo, aquele que goza. Ora, é disto que se trata com os personagens de Sade; eles sabem gozar. Em contrapartida, pretender-se na condição de moralista como Kant propõe é em igual medida apresentar-se como detentor de um saber sobre o gozo.

No Seminário 20, Lacan ([1972-1973] 1975) relaciona o gozo e o direito, dizendo que em "essência" o direito se ocupa de "repartir os gozos". Acrescenta que "o gozo é o que não serve para nada... Nada obriga ninguém a gozar, salvo o supereu. O supereu é o imperativo do gozo: Goza!" ([1972-1973] 1975: 11). Retira-se daí um modelo de apresentação peculiar de um Outro gozador total - voz que ordena, muito mais voraz que o Outro fonte dos significantes. Em alguma medida, o perverso está aí para promover este imperativo de gozo.

A teorização lacaniana partiu da construção do sujeito como efeito do significante em direção à ideia do parlêtre, que mais bem aponta para o corpo como estando marcado por esse efeito significante. No capítulo "Uma carta de almor", capítulo em que apresenta os matemas da sexuação, Lacan ([1972-1973] 1975), conforme mencionado, diz que a perversão é o sonho da neurose; decorreria daí o fascínio que a montagem exerce sobre o neurótico e da qual ele não está a priori excluído. Deste modo, um tensionamento em relação à ética se promove entre o perverso e o analista, na medida em que o último muitas vezes reage enquanto sujeito, angustiando-se, ou - o que seria muito mais danoso - oscilando entre cúmplice ou juiz, par simétrico ou moralizador...

Mas voltemos ao capítulo destacado do Seminário 20. Nele, Lacan ([1972-1973] 1975) aborda o gozo feminino, o gozo que escapa à medição fálica, ou seja, à inserção no significante. Com este gozo, o perverso não pode haver-se. Assim sendo, como seria possível capturar, ainda que por um só instante, a natureza do gozo feminino, o qual estaria fora da medida, da contabilidade? Essa é a questão que, ao ocupar a posição perversa, um sujeito não pode colocar-se. O analista, por outro lado, precisa em alguma medida trabalhar para que algo desse gozo inapreensível pelo saber possa sim ter lugar. Digamos que com a equidade dos registros simbólico, real e imaginário uma análise se vetoriza muitas vezes na direção daquilo que a lógica perversa renega.

Ainda em relação aos interrogantes emergentes entre a lógica perversa e o dispositivo analítico caberia colocar algo que Lacan ([1959-1960] 1988) postula ao criticar a leitura anglo-americana da psicanálise. Ele interroga o lugar do bem na clínica. Afirma que "a cada instante temos de saber qual nossa relação efetiva com o desejo de fazer o bem, o desejo de curar" (Lacan, [1959-1960] 1988: 267). Haveria uma armadilha nessa moral que preconiza o fazer o bem ao outro. No que se refere ao próximo estaríamos sempre diante de uma margem irredutível e intransponível, na medida em que se trata de uma alteridade que não pode ser apreendida, objetivada.

A armadilha está em que a busca pelo bem do outro fatalmente nos remete ao nosso próprio bem. Lacan ([1959-1960] 1988) nos diz que queremos o bem do outro à imagem do nosso próprio, imaginamos suas dores e suas dificuldades no espelho das nossas, queremos lhe proporcionar um conforto que só vale na medida em que pensamos que ele serviria para nós mesmos. Uma ação dirigida pelo dever de promover o bem-estar do próximo nos conduziria facilmente ao quadrante das montagens perversas, em que a alteridade não se coloca e o sujeito torna-se objeto.

É retornar ao princípio reacionário que recobre a dualidade aquele que sofre e aquele que cura pela oposição entre aquele que sabe e aquele que ignora. Como não deslizar daí para se tornar um administrador de almas, num contexto social que requer este ofício? (Lacan, [1955] 1998: 404).

Essa é a encruzilhada na qual um analista se vê, não raro, situado, e em relação à qual a lógica perversa, como operador conceitual, pode vir nos advertir. Gozar da posição de saber sobre o bem do outro é uma armadilha inerente ao trabalho clínico. É assim que, por hora, arriscamos propor que uma clínica das perversões estaria além de uma clínica diferencial, ou ainda, de uma clínica que poderia tornar viável uma certa especificidade de padecer - o padecer perverso. Trata-se antes de ter em consideração que uma clínica das perversões estaria aí para manter aberta a pergunta sobre o fazer analítico. É fato que perversão e psicose tensionam a trama criada por Freud para as neuroses. Contudo, se na psicose a pergunta apontaria para a direção da cura em psicanálise - o que alguns chamariam de terapêutica -, na perversão a pergunta se situaria na seara da ética. Haveria que escutar esse interrogante em meio ao "canto da sereia" sem deixar-se capturar nele.

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1919/1969). Uma criança é espancada. In: Obras completas, ESB, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lacan, J. (1955/1998). A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1959-1960/1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1962/1998). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1962-1963/2004). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1964/1998). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1972-1973/1975). El seminario - libro 20: aún. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

 

 

NOTAS

1 Tradução livre das autoras da versão castelhana do Seminário 20 de Lacan - Aún.

2 Trata-se de uma imperturbabilidade do espírito alcançada pelo afastamento radical das paixões.

 

 

Recebido em 13 de abril de 2010
Aceito para publicação em 23 de junho de 2010

 

 

Ana Carolina Rios Simoni
Psicóloga; Especialista em Atendimento Clínico com ênfase em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre e doutoranda em Educação pelo PPG-EDU da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Priscilla Machado de Souza
Psicóloga; Especialista em Atendimento Clínico com ênfase em Psicanálise pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Terapeuta da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Doutor Voltaire Pires, 485 ap. 5 - Santo Antônio - 90640-160 - Porto Alegre - RS. Tel.: (51) 9207.1427. E-mail: priscilla_ms@hotmail.com

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