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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.2 Rio de Janeiro June 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Transgressão e limite na situação analítica

 

Transgression and limit in the analytical situation

 

 

Angela Coutinho

Psicanalista e Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID

 

 


RESUMO

O objetivo do artigo é desenvolver a noção de limite e transgressão como operadores da situação analítica. Limite e transgressão são interdependentes. Foucault articula transgressão à morte de Deus e à experiência da linguagem não-fenomenológica. O homem descobre sua finitude e é pensado como finito-ilimitado, isto é, constituído historicamente, sem natureza profunda e podendo identificar o que o levou a ser o que é, possibilitando, assim, inúmeras rupturas e verdades, inúmeros limites a serem transpostos. A psicanálise, neste sentido é uma prática transgressiva. Transgride as fixações da memória, possibilitando um descolamento frente aos assujeitamentos. A transgressão, aqui, é pensada não apenas como denúncia de que o eu não é senhor em sua própria casa, enfatizando a determinação inconsciente dos atos psíquicos, mas também como a ultrapassagem dos limites históricos de determinada experiência. Nesta perspectiva, a transgressão é afirmação da diferença e da vida, potência de diferenciação.

Palavras-chave: limite; transgressão; situação analítica.


ABSTRACT

This article aims to develop the idea of limit and transgression as operators of the analytical situation. Limit and transgression are interdependent. Foucault articulates transgression to God's death, to finiteness and to the experience of non-phenomenological language. The man finds his finitude and he is thought as unlimited finite beings-in other words, historically constituted beings - with no deep nature and with the capacity of identifying what leaded him to be what he is. This allows innumerable ruptures and truths, innumerable limits to be transposed. From this scope, psychoanalysis is a transgressive practice. It transgresses the fixations of memory, allowing a detachment from historical submission. Transgression here is not only thought of as a denunciation that the man is not a master in his own house - which emphasizes the unconscious determination of the psychic acts - but also as an overtaking of the historical limits of a certain experience. From this perspective, transgression is the assertion of difference while life is the potency of differentiation.

Keywords: limit; transgression; analytic situation.


 

 

A prática psicanalítica pode suscitar inúmeras questões: o que faz uma análise funcionar, produzir efeitos no real? Como a relação saber, verdade e história é considerada no processo analítico? Como a psicanálise lida com a questão do limite? A psicanálise é uma prática transgressiva?

Tendo essas questões como pano de fundo, pretendo focar a discussão prioritariamente em torno das noções de limite e transgressão na situação analítica.

A meu ver, a psicanálise trabalha visando o confronto com o limite e sua ultrapassagem, sendo uma prática transgressiva. As noções de limite e de transgressão, portanto, são operadores presentes na situação analítica. Ao pretender remontar à história do sujeito1, decifrando suas marcas pulsionais, a psicanálise restitui e desmonta, num só golpe, o sentido de sua história, re-significando-a.

A noção de transgressão afinada com a situação analítica não se confunde com a transgressão no campo das perversões, embora se possa falar em transgressão e limite em ambas. Na organização perversa a função da transgressão é tamponar a condição desejante do sujeito, mantendo desse modo o paradoxo psíquico que consiste em saber algo da castração, querendo ao mesmo tempo nada saber dela. A renegação face à diferença sexual é um processo constitutivo da organização perversa (Freud, [1927] 1976). Nela, o sujeito se move em torno da Lei da castração sempre tentando burlá-la e, nesse sentido, nunca dela escapando. A transgressão, assim, reitera a lei, por precisar da lei para existir. Ultrapassar o limite, neste caso, visando um gozo ilimitado, é a não-aceitação dos limites do prazer impostos pelo desejo, é não se aceitar finito. A transgressão, aqui, visa sustentar uma mentira, o desmentido da castração, mantendo a alienação frente à divisão subjetiva, à própria finitude, impedindo o acesso à castração simbólica. A castração simbólica tem como função "fazer advir o real da diferença dos sexos como causa do desejo no sujeito" (Dor, 1998: 420).

Na situação analítica, a transgressão viabiliza o confronto com a divisão constitutiva do sujeito, o que desencadeia o estranhamento de si e a mudança de posição subjetiva, subvertendo a lógica que norteia a existência do eu. Trata-se da subversão do sujeito, descentrado entre a verdade e o saber.

Desse modo, o sujeito é confrontado com sua finitude e sua incompletude. Ao mesmo tempo, descobre-se finito-ilimitado, isto é, constituído historicamente, sem natureza profunda e podendo identificar o que o levou a ser o que é, possibilitando, assim, inúmeras rupturas e verdades, inúmeros limites a serem transpostos.

A lei que é transgredida na experiência psicanalítica refere-se à ultrapassagem dos limites que remete ao ser finito-ilimitado e vai numa direção oposta à lógica perversa. Esse ilimitado que a seguir se limita pode ser pensado como assunção da castração simbólica. É a constatação da nossa finitude, condição para a abertura de novas possibilidades de transgressão.

A contribuição de Michel Foucault é uma ferramenta fundamental para trabalhar essa questão. Embora não haja referência direta à psicanálise nesse contexto, minha aposta é de que as noções de limite e transgressão podem trazer subsídios preciosos para a clínica psicanalítica.

Numa homenagem que Foucault presta a Georges Bataille, comenta a posição deste último frente ao erotismo2, que é vinculado à ultrapassagem de limite, à transgressão. Num outro contexto, em sua pesquisa arqueológica e genealógica, Foucault aborda as noções de história, limite e transgressão. Trabalhando num primeiro momento com o campo do saber, Foucault estrutura sua arqueologia. Posteriormente, ao estabelecer a investigação genealógica, analisando as condições históricas de possibilidade para formação daquele estrato, Foucault mostra como esse jogo, esse saber constituído, no limite, pode ser derrubado. Para analisar como opera a investigação arqueológica e genealógica é fundamental a noção de limite e sua ultrapassagem, isto é, a transgressão.

Embora Foucault não tenha se referido à psicanálise ao abordar a questão do limite e transgressão, estas noções abrem um universo de informações e articulações extremamente ricas e originais para a clínica psicanalítica.

 

LIMITE, TRANSGRESSÃO E A MORTE DE DEUS

Em diferentes momentos, Foucault se interessa pela problemática da morte e seus correlatos. No artigo de 1963 (1994), "Prefácio à transgressão", desenvolve a questão do limite e da transgressão ao comentar a posição de Bataille a esse respeito. Machado (2002: 59-61) ressalta a singularidade da interpretação de Foucault acerca do texto de Bataille por articular transgressão à morte de Deus3, conforme descrita em Nietzsche, e à experiência da linguagem não-fenomenológica.

Bataille compara o erotismo - vinculado à transgressão - nas religiões primitivas e após o advento do cristianismo. Se na religiosidade primitiva o mundo sagrado se abre a transgressões limitadas, no cristianismo há uma inversão desses valores com uma oposição radical à transgressão, sendo a interdição absoluta e a transgressão, diabólica, a ser banida. Ao perder seu caráter sagrado, com o cristianismo, o erotismo torna-se a imundice que é preciso condenar e da qual é preciso libertar o mundo. O erotismo passa a ser considerado profano, impuro. Desse modo, no cristianismo, o sagrado é identificado ao Bem e o interdito é afirmado como falta, pecado, transgressão condenada. Nas palavras de Bataille:

Relativamente, a transgressão, na orgia religiosa anterior ao cristianismo, era lícita: a piedade a exigia. À transgressão opunha-se o interdito, mas sua suspensão permanecia possível, à condição de observar os limites. O interdito, no mundo cristão, foi absoluto. A transgressão teria revelado o que o cristianismo velou: que o sagrado e o interdito se confundem, que o acesso ao sagrado é dado na violência de uma infração (Bataille, 1957: 132).

Bataille aborda a ligação feita por Sade entre transgressão e literatura, levando o erotismo ao limite do impossível. Sade foi o primeiro a criar uma linguagem transgressiva, através da qual realiza o desejo do excesso, de uma existência livre dos limites, ou a paixão por uma liberdade impossível. Na literatura, Sade apreendeu o mecanismo geral da transgressão da lei moral ao associá-la à ereção e à ejaculação. "Na solidão da prisão, Sade foi o primeiro a expressar racionalmente esses movimentos incontroláveis, sobre a negação dos quais a consciência fundou o edifício social e a imagem dos homens" (Bataille, 1979: 253).

Ao desejar atingir o máximo de transgressão, Sade chega a considerar o movimento do amor um movimento de morte, sendo o assassinato o ápice da excitação erótica. Bataille interpreta em Sade a expressão literária, ficcional, imaginária da ideia de que o erotismo é a dissolução das formas regulares da vida social. Fazem parte do homem não só a regularidade, mas também a irregularidade moral, o excesso, que se manifesta, por exemplo, no erotismo que não pode ser eliminado da vida, por mais perigoso que seja.

Para Bataille, limite e transgressão formam um conjunto interdependente, sendo os elementos complementares entre si. A transgressão não nega definitivamente, nem suprime ou destrói o limite e vice-versa. Tudo que é interditado pode ser transgredido e é para isso mesmo que existe a interdição; é transgredindo os limites necessários à sua conservação como ser finito que o homem se afirma. No entanto, a transgressão, a violação da lei é limitada, é uma licença relativa, uma desordem organizada, regularizada. Bataille afirma que no excesso erótico veneramos a regra que transgredimos, havendo, deste modo, uma cumplicidade entre limite e transgressão, a lei e a violação da lei.

Bataille afirma que

a transgressão excede, sem destruir, um mundo profano, do qual ela é o complemento. A sociedade humana não é apenas o mundo do trabalho. Simultaneamente - ou sucessivamente - o mundo profano e o mundo sagrado, que são suas duas formas complementares, a compõem. O mundo sagrado se abre a transgressões limitadas. É o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses (Bataille, 1957: 75).

Ao comentar a posição de Bataille, em "Prefácio à transgressão" ([1963] 1994), Foucault liga a sexualidade ou o erotismo, na modernidade, ao tema nietzschiano da morte de Deus e à experiência da linguagem. A sexualidade como erotismo é um fenômeno moderno, situado num espaço vazio, sem Deus, espaço de ausência, onde o homem descobre sua finitude.

Foucault estabelece uma relação entre a experiência da transgressão e a experiência da linguagem e, para tal, se vale da relação entre Bataille e Sade. A emergência de um tipo de linguagem não-dialética, de uma linguagem vazia, é responsável pelo desmoronamento do sujeito, isto é, "o espaço de uma experiência onde o sujeito que fala, em vez de se expressar, se expõe, vai ao encontro de sua própria finitude e sob cada palavra é remetido a sua própria morte" (Foucault, [1963] 1994: 249).

A linguagem não-dialética da filosofia de Bataille é uma linguagem em que, no lugar do sujeito uno, cria-se um vazio onde existe uma dispersão, combinando-se ou excluindo-se, uma multiplicidade de sujeitos falantes ou de sujeitos fraturados. "Linguagem não-dialética do limite que só se desdobra na transgressão daquele que fala" (Foucault, [1963] 1994: 244). É, finalmente, nessa situação trágica de falha da linguagem e falta de palavra, de desvanecimento do sujeito, que Foucault pensa a morte para Bataille como o limite que "não cessa de transgredir fazendo-a surgir como limite absoluto no movimento de êxtase que lhe permite saltar para o outro lado" (Foucault, [1963] 1994: 246).

Com a morte dos deuses na modernidade, não podendo mais se fundar na palavra do infinito e repeti-la, a linguagem só depende de si própria, de seu próprio curso, para manter a morte afastada. Então, para fazer a morte recuar indefinidamente, a linguagem se volta sobre si mesma, se torna espaço de repetição, de reduplicação do que já foi dito. Antes a obra de linguagem existia em função de uma linguagem absoluta, infinita que a fundava e a limitava e que ela devia repetir, no sentido de representar. Ao se calar essa linguagem infinita, a experiência literária repete o que foi dito para recusá-lo, apagá-lo, profaná-lo, transgredi-lo, dele se distanciar (Machado, 2002: 58-67).

A experiência moderna da sexualidade ensina que o homem é sem Deus. Diz Foucault: "Talvez a importância da sexualidade em nossa cultura, o fato de que desde Sade ela tenha estado tão frequentemente ligada às decisões mais profundas da nossa cultura se devam justamente ao que a liga à morte de Deus" (Foucault, [1963] 1994: 235).

Para Foucault, de Sade a Freud, pela violência dos seus discursos, a sexualidade foi desnaturalizada, não se encontrando nem na linguagem da razão, nem da natureza, tendo sido jogada num espaço vazio. Assim, a sexualidade aparece na modernidade como levada ao limite em três dimensões: 1) limite da nossa consciência, porque ela dita a única leitura possível para nossa consciência, a do inconsciente; 2) limite da lei porque ela aparece como o único conteúdo universal da interdição; 3) limite da nossa linguagem porque assinala até onde a linguagem pode ir.

O erotismo é uma experiência fundamental da modernidade como experiência da finitude e do ser, do limite e da transgressão. Foucault define o erotismo como "uma experiência da sexualidade que liga a ultrapassagem do limite à morte de Deus" (Foucault, [1963] 1994: 236).

A morte de Deus na modernidade é interpretada por Foucault como o desaparecimento do limite do Ilimitado, ou do Infinito, e o correlato aparecimento do reino ilimitado ou infinito do Limite (Foucault, [1963] 1994: 235). Essa transformação histórica inaugura a modernidade e possibilita uma experiência do limite que implica uma transgressão afirmativa, uma vez que não há mais fundamento divino, nem mesmo condição de possibilidade humana para serem transgredidos. Nesse sentido, pode ser entendida a transgressão para Foucault como profanação em um mundo que não reconhece mais sentido ao sagrado, ou como profanação sem objeto, profanação vazia em que não há nada de exterior a ser negado, profanado. Transgressão como afirmação da diferença.

Sendo o limite considerado como ilimitado, infinito, a transgressão nunca é absoluta ou total, nunca se dá de uma vez por todas: logo que se ultrapassa o limite, este reaparece à frente e, assim, sucessivamente. O limite e a transgressão devem um ao outro a densidade de seu ser. Por um lado, atestam a inexistência de um limite que não possa absolutamente ser ultrapassado; por outro lado, a inutilidade de uma transgressão que só ultrapassaria um limite de ilusão ou de sombra. A transgressão não opõe nada a nada, não busca abalar a solidez dos fundamentos. É uma experiência que leva o limite ao extremo, ao máximo que se pode, afirmando o ser limitado sem estabelecer oposições de valor, sem separar em termos de negativo e positivo (Foucault, [1963] 1994: 237-238).

 

JOGOS DE VERDADE, HISTÓRIA, LIBERDADE, LIMITE E TRANSGRESSÃO

Ao empreender sua pesquisa arqueológica e genealógica, Foucault constata que em cada tempo social, isto é, em cada estrato, verdades são produzidas formando uma espécie de jogo, "jogo de verdade", no qual as peças se articulam num encaixe como se fosse algo natural. Contudo, ao se analisar as condições históricas de possibilidade para formação de cada estrato, esse jogo, no limite, pode ser derrubado. As verdades se configuram como contingentes. As verdades são históricas. O jogo não se sustenta por si só. Aquilo que parece tão estável depende de uma multiplicidade de cintilações. É o lado de fora do estrato que o torna permeável à criatividade na cultura, possibilitando mudanças.

O limite é aquilo que é extremo na fronteira do próprio jogo de formação dos estratos. Por um lado, é um elemento constituinte do jogo; por outro lado, possibilita a saída. A noção de limite, neste caso, não se confunde com o intransponível de algo. Ao contrário, o limite é algo em que se pode investir e ultrapassar. Não há, neste sentido, um limite absoluto para além do qual não se possa ir. Ao se colocar no limite de uma experiência, remete-se para fora dela, remete-se ao lado de fora (Foucault, [1966a] 1994). Reconhecemos os limites de uma experiência quando o estranhamento começa a ocorrer, isto é, quando aquilo que parece familiar começa a se descolar. A partir de então, essa linha tênue passa a ser um território de novas possibilidades.

Ao se questionar os limites de uma experiência, apoiando-se em certo acontecimento do presente, esses próprios limites se evidenciam e podem daí ser ultrapassados. Fazer história, nesse sentido, é o que permite a saída de algo, é o que torna possível a transgressão não especificamente de um código moral, mas de uma determinada experiência.

O limite só pode ser apreendido no instante em que se o transgride. Por outro lado, a transgressão afirma o ser limitado, isto é, o que somos no momento, e ao mesmo tempo aponta o ilimitado no qual ela salta, ao abri-lo à existência. Essa afirmação da divisão entre o limite e o ilimitado designa o ser da diferença. Ao pensar a finitude, o limite a partir do que o transgride, a própria vida fica definida como potência de diferenciação.

Nós mesmos somos, assim, pensados como finitos-ilimitados, isto é, constituídos historicamente, sem natureza profunda e podendo identificar o que nos levou a ser o que somos, possibilitando, assim, inúmeras rupturas e verdades, inúmeros limites, sempre transponíveis (Coutinho, 2001).

Dentro da perspectiva foucaultiana, o limite é, assim, diretamente ligado à transgressão. A questão é encontrar um limite que seja interior ao próprio jogo da lei de formação dos estratos. Trabalhar o limite, neste sentido, é derrubar a lei ou o jogo no qual a lei se constitui. A lei está sempre se fazendo, ela não é absoluta, não é dada, não é imóvel. No trabalho com o limite proposto por Foucault é menos importante a referência à lei do que a conquista de um ilimitado a partir do próprio limite. O jogo com o limite - encontrar o ponto de solda e, portanto, o ponto de fratura - é ilimitado. Sempre é possível avançar mais, ir além. No entanto, o ilimitado a seguir se limita, formando outro contorno a ser ultrapassado (Coutinho, 1994).

O sujeito, em Foucault, não existe a priori, se constitui através de certo numero de práticas de poder, que funcionam como jogos de verdade (Foucault, [1984] 2006: 281). O sujeito não existe como substância e sim sob diferentes formas. Foucault se interessa pela constituição histórica das diferentes formas de sujeito em relação aos jogos de verdade. Como duas faces da mesma moeda, ao sujeito "passivo" - moral, assujeitado - se contrapõe o sujeito "ativo" - ético, que resiste ao assujeitamento. Há, desse modo, uma brecha de liberdade, que se constitui como resistência, a partir da qual é possível dizer não, fazendo emergir o "sujeito ético", às margens da história (Foucault, [1983a] 1995: 264; Macherey, 1988). Trata-se de uma prática de liberdade - liberdade como meio e não como fim - que implica num conflito permanente, num trabalho constante frente ao assujeitamento. O que não se confunde com uma prática libertária. A prática da liberdade é, antes, uma prática crítica. E é neste sentido que inserimos a prática psicanalítica como prática transgressiva.

 

A EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA COMO PRÁTICA TRANSGRESSIVA

A psicanálise se constitui como um saber subversivo, tendo como eixo central o sujeito do inconsciente, um saber que não se sabe. A transgressão, aqui, é pensada não apenas como denúncia de que o eu não é senhor em sua própria casa, enfatizando a determinação inconsciente dos atos psíquicos, mas também como a ultrapassagem dos limites históricos de determinada experiência. O sujeito do inconsciente é inscrito num cenário, numa espécie de mito, no qual ele fixa seu ponto mais íntimo, seu enlace com o real, o próprio cerne de seu ser, a causa de todo o seu discurso, a fantasia fundamental. É através desse cenário que o sujeito pode dizer ou interrogar sua origem. A experiência psicanalítica se constrói nos moldes de uma fantasia (André, 1998: 14). O sujeito se confronta com o incognoscível como também com o irrepresentável e com as limitações do conhecimento. Desse modo, a experiência psicanalítica subverte a ordem da razão em busca da causalidade.

Apostando na lógica do simbólico, a psicanálise descobre o valor expressivo de uma determinação inconsciente e o ato criativo da poiésis (linguagem mito-poética). Transgride as "fixações da memória" e subverte a relação percepção/cognição, descobrindo um espaço de realização do sujeito a partir de novas significações (Vital Brazil, s/d).

A psicanálise é um processo de descoberta das sujeições com as quais cercamos e cerceamos nossa vida. Neste sentido, com a análise há a queda de certo saber. Essa queda tem efeito de verdade e o sujeito se dá conta da lei que organiza o seu viver e, portanto, o seu discurso. Como se o aparecimento da regra possibilitasse a desconstrução da mesma. O sujeito é capaz de dizer não a certas sujeições, a certos constrangimentos históricos (Foucault, [1983a] 1995), o que lhe permite desprender-se de si mesmo e não afirmar uma identidade. O conhecer para desconhecer-se e transformar-se (Coutinho, 1994).

Numa de suas últimas publicações, "Construções em análise", Freud ([1937] 1975) compara o trabalho do psicanalista ao do arqueólogo, apontando que tanto um quanto outro trabalham com camadas superpostas, sedimentações já dadas. Contudo, e esta é a peculiaridade do psicanalista, trabalhamos com material vivo - através do campo transferencial - e passível, portanto, de modificação.

Reconstruir a história do sujeito é, assim, colocar a questão de onde viemos para apontar a contingência que fez de nós o que somos. E este saber marca as rupturas, faz surgir o limite e a transgressão, num só golpe, sendo as configurações históricas passageiras: o que hoje é, será diferente (Vaz, 1992). É o espaço que se abre para criação.

Freud - utilizando a comparação entre pintura e escultura feita por Leonardo da Vinci - associa a psicanálise à escultura. O escultor - tal como o analista - não acrescenta nada ao esculpir uma pedra. A escultura que surge já estava lá. Trata-se, aqui, do sujeito sujeitado, constrangido pela história. A escultura a que se chega, longe de ser a "essência" do analisando, sua "verdadeira face", é o espectro de sua verdade histórica, sentida pelo sujeito como absoluta. Estátua sedimentada como produto das diferentes sujeições, função dos jogos de verdade, jogos de poder. E cujo destino no final da análise é ser pulverizada enquanto tal (absoluta). O verdadeiro dejeto de uma análise é essa estátua petrificada que enclausura, estátua da verdade absoluta do sujeito frente a si mesmo - para dar lugar à emergência do desejo enquanto mistério que sempre escapa (Coutinho, 2008).

No processo analítico, traçamos os limites atuais de certa experiência, apontando a verdade como histórica. A partir daí, esses limites podem ser ultrapassados e novas verdades produzidas. Assim, a atitude do analista consiste numa permanente atenção ao presente, desmontando as familiaridades aceitas ao traçar suas condições históricas de possibilidade. Trata-se de uma ética em relação ao acontecimento (Foucault, [1977] 1993), pressupondo uma aceitação e um questionamento incessante frente ao mesmo. Implica uma "acolhida" e uma "crítica" ao mesmo tempo. O acolhimento, em função do reconhecimento das condições de possibilidade que resultaram no acontecimento; por outro lado, a crítica é inerente por ser o instante presente aquilo que fratura, rompe o curso do tempo ao se constituir como um acontecimento questionador do modo como até então se deu a história (Coutinho, 1994).

A ética do psicanalista consiste, assim, numa atitude acolhedora frente a um passado que insiste em se dizer presente; instigadora e questionadora acerca do próprio presente, visando um deslocamento, um desvio dos pontos de estagnação, em direção à pura abertura (Coutinho, 1994; 2008).

 

A EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA SUBVERTE A ORDEM DA RAZÃO EM BUSCA DA CAUSALIDADE

A experiência psicanalítica é uma prática que subverte a ordem da razão, demonstrando a cisão constitutiva do sujeito através de uma experiência singular e contingente.

O pensamento psicanalítico se situa entre o fato e a ficção, entre o sentido e a ausência de sentido; ausência ligada ao "sem sentido" e ao "fora do sentido". O absurdo do não-sentido pode se referir ao silêncio da morte não significada, mas também pode se referir ao inconsciente e à criatividade (Vital Brazil, s/d).

Pelo viés do discurso analítico, o sujeito é remetido à chave de sua divisão, à relação problemática consigo mesmo. O sujeito que o significante representa não é unívoco. Está representado, mas também não está representado. Algo fica oculto em relação a esse mesmo significante.

Ao longo do processo analítico, a consistência do eu vai se perdendo, ficando pura evanescência. Há, na análise, um confronto com falsas certezas que pressupõem certa consistência ao eu. Com a queda deste saber, o eu se torna murmúrio de si, perde a estabilidade, perde a univocidade. A clivagem do eu aponta o eu máscara.

Por outro lado, o universo fantasmático vai se delineando cada vez mais, tornando-se denso. Enquanto o eu toma a ficção da fantasia pelo real, ela fica mais e mais consistente.

A construção da fantasia é um trabalho a partir do qual o sujeito a desdobra e a esclarece. Isto se dá no decorrer de um processo de elaboração das vicissitudes transferenciais e de re-historicização de seu passado. Ela é atravessada quando o sujeito não acredita mais em sua ficção. A fantasia é desmascarada como ficção. Ela continua lá, mas sem merecer de nós tanto crédito. A travessia da fantasia, assim, implica num questionamento da convicção que ela comporta.

Pela encenação do universo fantasmático, a experiência psicanalítica busca uma causalidade que nos leva a interrogar a estrutura subjacente ao sintoma e a tentar construir e questionar sua lógica. Por um lado, a prática psicanalítica sustenta a transferência e, com ela, a crença no sentido e no gozo aí envolvida; por outro lado, ao ir à busca da causalidade, desfaz essa sustentação no eixo do sentido (André, 1998: 14). Seria viável uma aproximação entre esse processo e a experiência da linguagem não-dialética, na qual há um esfacelamento do sujeito?

O discurso do analisando produz efeitos de sentido, podendo chegar à decifração do sentido do sintoma. Mas essa elucidação do sintoma leva a se interrogar para que serve tal sentido e por que ele se apresenta como necessário. O fundamental na operação analítica não está simplesmente em elucidar e desmontar o sintoma e sim em captar a razão pela qual cremos no sintoma e, de um modo geral, por que cremos no sentido (André, 1998: 14). Se o analista enquanto sujeito suposto saber se empresta, na transferência, para sustentar essa crença é para fazê-la chegar a seu ponto original de não-senso. O analista é, ao longo do processo analítico, através das vicissitudes transferenciais, deslocado de sua função de intérprete para sua função de causa, de objeto causa da experiência, que ele mais suscita do que explica. Neste sentido, é mais o desejo do analista do que seu saber que constitui o motor e a garantia de sua prática.

A psicanálise, assim, é subversiva não somente por transgredir a ordem da razão, na valorização da determinação inconsciente, mas, sobretudo, por buscar uma causalidade que leva a um não-senso, a uma desmontagem dessa construção de sentido, levando a um con-fronto com o fora, o real do trauma. Trata-se de uma transgressão às normas de sentido vigentes, abrindo um universo ilimitado de possibilidades... pura abertura para a criação de novas formas!

 

REFERÊNCIAS

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NOTAS

1 Os conceitos de sujeito na psicanálise e em Foucault não coincidem, embora haja pontos de contato, merecendo um estudo específico que foge ao âmbito deste trabalho. Utilizo, aqui, a questão do sujeito de modos diferentes em função de cada contexto.

2 Embora seja um campo fértil e até mais diretamente ligado à psicanálise, meu recorte não passou pela questão do erotismo para pensar o processo psicanalítico. Ao abordar o erotismo em Bataille, pretendo situar o comentário de Foucault e a maneira como ele tece suas considerações acerca do limite e da transgressão; sua abordagem original me serviu como subsidio para pensar o limite e a transgressão em relação à história em Foucault e ao processo analítico como prática transgressiva.

3 A morte de Deus significa o desaparecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento divino e o aparecimento de valores humanos. O homem, como sujeito finito, toma o lugar de Deus e, desse lugar, tende a desaparecer também. Em 1966, a questão que se coloca para Foucault não é mais a ausência ou a morte de Deus, como no inicio da modernidade, mas o fim do homem, isto é, a transformação da finitude do homem em seu fim. Diz Foucault: "Mais do que a morte de Deus, ou antes, no rastro dessa morte e em uma correlação profunda com ela, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo curso do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e de cuja pressão ele suspeitava no próprio ser das coisas; é a identidade do Retorno do Mesmo e da absoluta dispersão do homem" (Foucault, [1966a] 1994: 396-397). Esse projeto de libertação do humanismo leva Foucault, neste momento de sua trajetória, a valorizar a contribuição de Lacan como pensador marcante da nossa época.

 

 

Recebido em 3 de junho de 2010
Aceito para publicação em 9 de agosto de 2010

 

 

Angela Coutinho
Psicanalista e Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID. Rua Engenheiro Neves da Rocha, 15 - Itanhangá. Tel.: 2493-4759 / Cel.: 9971-7232

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