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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.2 Rio de Janeiro June 2010

 

RESENHAS

 

Escritos sobre psicanálise e literatura

 

Writing about psychoanalysis and literature

 

 

Denise Maurano

Psicanalista; Membro do Corpo Freudiano do RJ; Doutora em Filosofia Universidade de Paris XII; Profa. Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Editora do periódico Psicanálise Barroco em Revista (www.psicanaliseebarroco.pro.br)

 

 

RESENHA DE:

Pinheiro de Freitas, L. A.; Albuquerque, J. D.; Edler, S. (2009). Escritos sobre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 162 páginas.

Na velocidade dos nossos tempos somos atropelados pelas ínúmeras demandas que nos acossam, sobretudo se fazemos o que gostamos, porque a distinção entre prazer e trabalho fica menos detectável e torna mais difícil nos furtarmos aos atraentes convites. Foi assim que me vi diante da tarefa de resenhar Escritos sobre psicanálise e literatura. Eis que caí numa cilada. Simplesmente porque essa é uma obra para deleite. Ou seja, quem disse que eu conseguia fechar o livro e dar por terminado o trabalho, passar adiante. Quem disse que lhe conferia o tempo dos dias úteis. Nada disso. Ele ficou para a cabeceira, para o feriado, para o raro tempo vago, ao modo de uma sobremesa que a gente degusta devagarinho para não acabar e, com isso, o tempo foi passando. Conferi-lhe essa posição não porque lhe falte consistência teórica, muito pelo contrário, a obra revela pesquisa e reflexão em torno, sobretudo, das contribuições freudianas acerca da sublimação e do processo de criação, da relação entre a fantasia e a obra literária, da aproximação entre a função da arte e do brincar; tudo isso destacando conceitos fundamentais como o desejo inconsciente, a fantasia, a pulsão e, sobretudo, a pulsão de morte. Mas a via pela qual eu fui pega na longa apreciação dessa obra foi a forma pela qual a teoria psicanalítica nela comparece, ao modo de uma experiência.

Muito mais do que teorizar sobre a relação entre a psicanálise e literatura, a obra é tecida por uma composição de ensaios de efetivo valor literário, possibilitando ao leitor diversas portas de entrada no reencontro de textos consagrados de autores como nada mais, nada menos que Shakespeare, Goethe, "Tirso de Molina", Kafka, Edgar Allan Poe e ainda de brasileiros como Rubem Fonseca e Clarice Lispector, dentre outros. Daí vocês hão de concordar comigo que é difícil virar essa página. E foi assim que me enrolei nela um bom tempo no qual o deleite venceu a obrigação.

Malgrado a diversidade dos autores que compõem essa coletânea - onze ao todo -, os organizadores - José Durval de Abuquerque, Luiz Alberto de Freitas e Sandra Edler - foram muito felizes no caráter literário dos textos reunidos, possibilitando ao leitor uma experiência de participação na obra. Ou seja, esta convoca nossas associações, nossas vivências, transmitindo o que Sandra anuncia em sua introdução quando menciona o espírito de aventura que inspira esse grupo que, a partir de encontros semanais para discussão do tema, resolve apresentar-nos esse belo produto.

Quando Luiz Alberto aponta o autor literário como um exemplar da cultura na qual está inserido, me faz lembrar Kant na Analítica do belo definindo a beleza pela capacidade de um exemplar reunir em si características de todos os outros. Por esse viés percebe-se bem a relação da função do autor literário com o belo, no sentido kantiano do termo. A beleza, nesta perspectiva, não é o que singulariza um objeto, mas sim sua capacidade de nos remeter a todos os outros de seu gênero, ou de sua espécie.

Essa particular relação entre o singular e o universal nos serve para pensar a forma própria pela qual a literatura traz sua contribuição a uma outra relação à ciência, na qual, tal como se dá na psicanálise, longe se ocupar em estabelecer leis gerais e de previsibilidade, como acontece com a ciência tradicional, dedica-se a dar expressão aos modos próprios pelos quais diferentes estilos subjetivos se constituem a partir de certas matrizes comuns aos humanos em sua vocação de sujeitos da linguagem.

Nesse contexto, vale lembrar a advertência de Luiz Alberto e de outros autores da coletânea acerca do uso arriscado de um tipo de "psicanálise aplicada" à literatura, que se vale da psicobiografia do artista como se se pudesse fazer uma leitura sintomal dos textos num furor cientificista, sem perceber que o que quer que seja apreendido por esse viés estará sempre muito aquém da significância que a obra tem por ela mesma.

Como o trabalho ressalta, o fato de uma obra prestar-se à interatividade, num trabalho de presentificação em diferentes contextos, possibilitando que o leitor se identifique com o herói ou heroína da trama, confere a ela uma função lúdica, possibilitando com ela vias de acesso, instrumentalização da fantasia e do desejo inconsciente. Disso já nos dizia Aristóteles em sua Arte poética, ressaltando a função da obra trágica de possibilitar a purgação das pathemata, paixões como o temor e a piedade, que nos deixam covardes frente ao imperativo do desejo. Desse modo, podemos ver o quanto não apenas a literatura traz aportes à psicanálise, mas o quanto a perspectiva freudiana do desejo fornece um elemento novo para a compreensão do alcance da tragédia.

Tal como ressalta Adelina Freitas, no texto intitulado "Psicanálise e arte", o teatro, o romance e o poema funcionam como dialetos do pensamento inconsciente, e a autora, traçando um belo percurso na obra freudiana cercando o tema da sublimação, sublinha a capacidade do artista de, dando uma forma particular às suas fantasias, aportar-lhes um valor universal que serve para que outros, além dele mesmo, possam se aliviar do peso de suas cargas emocionais.

Essa mesma perspectiva é endossada por Betty Fuks e Maria Anita Ribeiro que, inclusive no campo das artes, reconhecem a literatura como a que melhor franqueia o acesso ao inconsciente. O que justifica inclusive que Freud tenha ido buscar nesse campo aportes para sua investigação da alma humana. Em "Shakespeare com Freud e Lacan", as autoras salientam que ainda que o próprio mestre vienense tenha incorrido no equívoco de por vezes interpretar a obra de arte via patologização ou psicobiografia de seu autor, ele mesmo se autocritica num comentário à obra de Dostoiévski e mais ainda ao construir o texto "Moisés e o monoteísmo". O que nos mostra o quanto que por sua complexidade, para adentrarmos o pensamento freudiano, não podemos prescindir de percorrer o conjunto da obra longitudinalmente, não elegendo apenas um momento ou outro, sob a pena de, se assim o fizermos, incorrermos no vício reducionista.

Podemos localizar o ápice dessa complexidade da obra de Freud em sua teoria da dualidade pulsional. A ideia de que o psiquismo não seja governado por uma tendência una, em prol da vida, e sim que sua dinâmica seja pautada por princípios conjuntivos e disjuntivos, evidenciando a propriedade tanto da ação de forças que apelam à vida, quanto de forças que conclamam a destruição, bem demonstra o vigor do pensamento de paradoxo que acompanha sua construção teórica. Nesse sentido, o texto "Olhando a pulsão de morte: sobre o ato de criar", de Dirce Cunha, muito nos ajuda no reconhecimento da pulsão de morte como potência criadora em sua função de recusa da permanência do mesmo, onde a vontade da criação se aparelha pela vontade de destruir para construir a partir do nada, sublinhando a pulsão de morte como originária na constituição do psiquismo e fundamental no trabalho de criação.

Aliás, por falar em trabalho de criação, Marusa de Oliveira nele se arrisca ao contruir "O cofre de Extima". Podemos dizer que se trata de um conto do qual a autora se serve para, "bricolando" com "A caixa de Pandora", produzir meios de transmitir o quanto a verdade do mito serve à lógica do inconsciente, sendo feliz em atingir seu intento ao nos conduzir pelo pequeno povoado de Extima, que primava pela transmissão oral das histórias.

Com Solange Jouvin, também "Trata-se de ficção", como o próprio título do seu trabalho anuncia. E é enquanto ficcionista que a autora, elegendo o texto Vastas emoções e pensamentos imperfeitos de Rubem Fonseca, constrói uma interlocução entre este último e Freud na qual se imbricam o sonho, a fantasia, a brincadeira e a loucura com a aventura da escrita e a convocação ao leitor para embarcar nessa viagem ao modo de um companheiro. Vale aceitar esse convite.

E aí vamos nós. A próxima estação dessa coletânea é o texto "Don Juan e o engano da lista", o qual nos conduz a revisitar o famoso Don Juan no El burlador de Sevilha, escrito pelo Frei espanhol Gabriel Telez conhecido pelo pseudônimo Tirso de Molina, nos fazendo experimentar uma certa liberação de tensões provocada por compactuarmos com as atuações perversas do personagem em seu incessante movimento de conquistar e descartar as mulheres. Tal forma de operar possibilita, segundo o autor Luiz Alberto de Freitas, uma reação ao submetimento à mulher, no mínimo, à mãe. Razão pela qual essa obra encontra sua ressonância através dos tempos.

Já Sandra Edler, mergulhada nas águas de Clarice Lispector, constrói um escrito no qual re-tece a teia da história de Ana, personagem do conto "Amor" de Laços de família. Subvertendo o silêncio do leitor, capturada pela familiaridade da estranheza da experiência da personagem, ela tenta dar expressão à questão: levantando o véu ofuscante da visibilidade, o que a cegueira possibilita ver? Nesse encaminhamento o amor aparece como o exercício de domesticação da dimensão sobrenatural do viver.

De um cenário um tanto quanto idílico, passamos, com José Durval de Albuquerque, a "A carta ao pai de Franz Kafka", texto no qual o autor comenta este documento que o escritor tcheco endereça ao pai aos 36 anos de idade, questionando a autoridade paterna num misto de frustração e nostalgia. Documento que, embora sem pretenções literárias, atinge um alto valor estético, sobretudo pela capacidade de provocar identificações entre as fantasias do escritor e aquelas do leitor, possibilitando-lhe o advento do desmantelo de tensões de difícil escoamento.

E, já que o assunto são as tensões de difícil escoamento, vamos direto a "O diabo deslocado: sobre a cena 'Galeria obscura', do Fausto II". Nele, Marília Flores entrelaça o pensamento freudiano com a tragédia de Goethe para mostrar de que modo o imperativo da morte age sobre a aspiração à máxima existência ou o desejo do absoluto. Ela evidencia que ao modo do brincar infantil o autor trágico vale-se de mitos e lendas reificando os sonhos seculares da humanidade.

Esses mitos e lendas revisitados nas diversas produções literárias têm sobre nós efeitos de familiaridade e estranheza e é exatamente isso que é explorado por Adelina Freitas no artigo que fecha essa coletânea, no qual, abordando a temática do duplo, faz entrecruzar a obra William Wilson, de Edgar Allam Poe, com o texto freudiano "O estranho", construído a partir da leitura de Freud do conto "O homem de areia", de Hoffmann. A tão frequente hesitação que nos embaralha no reconhecimento do semelhante e do diferente ganham nessas pérolas retomadas pela autora um enfoque que vale conferir.

Mas esse livro não termina aí. Para finalizá-lo, Marina Rodrigo Otavio Hermeto entrevista na Academia Brasileira de Letras o escritor, ensaísta e diplomata Sérgio Paulo Rouanet com uma abordagem que não apenas dá subsídios ao entrecruzamento teórico psicanálise e literatura, mas traz um testemunho desse imbricamento no pensamento, na vida e na obra do entrevistado. Participar dessa conversa entre Marina e nosso querido Rouanet fecha com chave de ouro esse belo trabalho, que dá mostras do sucesso dos encontros bem-sucedidos. Ei-lo entregue a sua degustação. Bom apetite!

 

 

Denise Maurano
Psicanalista; Membro do Corpo Freudiano do RJ; Doutora em Filosofia Universidade de Paris XII; Profa. Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Editora do periódico Psicanálise Barroco em Revista (www.psicanaliseebarroco.pro.br).

 


 

As múltiplas faces de Jacques Lacan

 

The many faces of Jacques Lacan

 

 

Nadiá Paulo Ferreira

Psicanalista do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro e Professora Titular de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 

RESENHA DE:

Didier-Weill, A. & Safouan, M. (Orgs.). (2009). Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 159 páginas.

O livro reúne testemunhos dos psicanalistas que conviveram com Lacan (1901-1980) em suas diversas práticas: análise, supervisão, seminários e instituições.

Nos prefácios ("Preâmbulo" e "Introdução"), Moustapha Safouan - que não foi analisando de Lacan, mas fez supervisão com ele - chama a atenção do leitor para a extrema diversidade dos depoimentos:

Alguns autores limitam-se a fazer o relato de análise com Lacan [...]. Outros tentam determinar seu modo de proceder. Outros ainda se propõem a mostrar a legitimidade de sua técnica. [...] certos autores enfatizam o personagem de Lacan [...]; outros, por sua vez, enfatizam, antes, o que o sujeito paga de seu narcisismo durante uma análise com Lacan (p. 17).

No "Posfácio", Alain Didier-Weill - que fez análise e supervisão com Lacan - ressalta que os psicanalistas que relatam suas experiências com Lacan pertencem a várias gerações: anos 50 (primeira cisão: Sociedade Psicanalítica de Paris/SPP), anos 60 (segunda cisão: Sociedade Francesa de Psicanálise/SFP e criação da Escola Freudiana de Paris/EFP em 1964) e anos 70 (dissolução da EFP em 1980). Ao ler esses depoimentos, é preciso levar em conta não só a sincronia, mas também a diacronia:

Pela primeira [sincronia], o analista, em sua própria relação com a fala, é instruído de que o sujeito do inconsciente, não sendo ortodoxo - nem freudiano nem lacaniano -, só pode advir numa solidão extrema.

Pela segunda via [diacronia], o analista, ao recuperar a história, descobre um novo aspecto do endividamento simbólico: já não se trata, então, de um endividamento para com a estrutura significante, mas para com as gerações anteriores que lhe transmitem a mediação da própria elaboração pela qual Freud e Lacan chegaram até elas.

No tocante a isso, o encontro com Lacan tem necessariamente duas faces: o encontro com o homem, no contexto de uma análise pessoal ou de uma supervisão, e, de outra maneira, o encontro mediado por esse terceiro que são as gerações anteriores (pp. 144-145).

Didier-Weill considera que os testemunhos dessas gerações não estão centrados no mesmo real. Os psicanalistas da primeira geração não eram "reconhecidos como lacanianos" (p. 145). Eles faziam parte de um grupo, que, ao seguir o ensino de Lacan, teve que "assumir consequências perigosas do ponto vista institucional" (p. 145). Já com os analistas dos anos 60, não se trata mais "dos efeitos subjetivantes da descoberta de um ensino novo" (p. 145), mas da "tomada de posição histórica e ética que cumpre sustentar face ao posicionamento superegoico da IPA em relação à prática de Lacan" (pp. 145-146). Didier-Weill se refere, aqui, ao episódio em que a IPA fez a seguinte proposta a Lacan: aceitação do seu ensino com a condição de que ele concordasse em não ser reconhecido como psicanalista-didata.

Em relação à heterogeneidade das gerações, Didier-Weill faz questão de frisar:

Essa discrepância de experiência das diferentes gerações não quer dizer que a diversidade dos testemunhos signifique "a cada qual seu Lacan". Se há um fio que circula entre as décadas, incluindo a terceira, a dos anos 1968-1975, é aquele induzido pelos efeitos transferenciais causados pela relação específica de Lacan com a fala (p. 146).

É justamente esse fio que faz com que Didier-Weill lance a questão: "O que prevalecerá no teu destino de analista, tua inserção institucional ou tua inserção na fala?" (p. 154).

As principais questões abordadas nos depoimentos são: a distinção entre saber e paixão pela verdade; o privilégio do significante na transmissão da verdade; o dispositivo do passe; a repetição; a diferença entre a prática de Freud, que se baseava na interpretação, visando o desejo recalcado, e a prática de Lacan, que insistia na escansão e na pontuação; as invenções de Lacan em sua prática institucional: o dispositivo do cartel e a revista Scilicet; o tempo de duração das sessões; o manejo da transferência; a introdução do semblante e, enfim, algumas excentricidades.

Foram selecionados alguns fragmentos dos depoimentos para ilustrar a tessitura do livro ao leitor, aguçando, assim, o seu desejo de saber.

Jean Clavreul - que fez análise e supervisão com Lacan - dá o seguinte depoimento:

Quando comecei com Lacan, sofri uma longa internação que deveria ter interrompido a análise. Não foi o caso, pois Lacan foi regularmente, umas 20 vezes, ao hospital para nossas sessões. Na época, aquilo não me surpreendeu, mas hoje me pergunto quem agiria desta forma (p. 27).

Em seguida, ele fala da imagem que reteve de Lacan: "Houve uma última sessão em que constatei que ele estava cansado demais. Saí do consultório dele e, quando estava atravessando o pequeno pátio, ele abriu a janela e gritou: 'Até logo, Clavreul'" (p. 27).

Alain Didier-Weill, a partir de sua própria análise, conta uma história que se refere a uma das particularidades da prática de Lacan como analista, a qual era muito criticada por alguns:

Trata-se do modo como ele, em várias ocasiões, criava passarelas entre o íntimo do consultório e o que se passava fora - em particular, no seu seminário ou na Escola Freudiana. [...]

Eis um exemplo, a partir do qual essa questão pode ser pensada: quando, numa sessão, evoquei meu desespero diante do fato de o Conselho de Estado ter acabado de recusar - pela terceira vez, em 15 anos - meu pedido de recuperação do sobrenome "Weill". Eu o tinha perdido depois que meu pai, assim como certo número de judeus traumatizados pela guerra, tinha acreditado dever abandonar seu sobrenome para deixar seus descendentes ao abrigo de um possível retorno de medidas antissemitas.

Naquele dia, [...] disse no divã que já não me restava outro recurso senão decidir, sozinho, que me chamassem "Didier-Weill". "Trata-se de dizê-lo!", disse Lacan para concluir a sessão. [...]

Três dias depois, houve um colóquio na Escola Freudiana de Paris, onde eu deveria fazer uma intervenção. Naquele dia, Lacan, presidente da sessão, me convida para subir à tribuna quando chega minha vez de falar: "Didier-Weill, a palavra é sua!". Como ele dissera três dias antes, tratava-se de dizê-lo, e ele acabava de fazer isso (pp. 34-35).

Eis outro exemplo dessa prática que, segundo Moustapha Safouan, se tornou tão famoso quanto as histórias cômicas relatadas por Freud em "Os chistes e sua relação com o inconsciente": "o do analisando que, depois do fim de sua sessão, retornou para declarar que estava se sentido 'fodido'. Ao que Lacan respondeu: 'Você não está se sentindo fodido, você está fodido'" (p. 16).

Safouan, comentando essa intervenção, diz: "Ninguém duvida da verdade dessa resposta: um energúmeno que se presta a um ato tão provocativo, para não dizer teatral, é alguém que efetivamente está 'fodido'. O importante, porém, é que a resposta incidia sobre o ato e não sobre a pessoa" (p. 16).

Outro fato que gerou muito estardalhaço, sendo considerado por seus detratores um escândalo, uma imoralidade, foi o fato de Lacan pedir aos seus analisandos para mentir, quando fossem chamados para depor na Comissão de Investigação da IPA, sobre a duração do tempo de suas sessões. Safouan dá sua opinião sobre esse incidente:

Só que mentir é uma coisa e compartilhar das mentiras do narcisismo ali onde elas significam ao abrigo do desconhecimento do sujeito é algo totalmente diferente. Se não se percebe a diferença, eu me pergunto como se pode evitar a confusão entre deontologia, moral e ética da psicanálise.

Em segundo lugar, foi Lacan quem, pela primeira vez, estabeleceu a diferença entre a verdade etiquetada pelos filósofos como sendo ora "em si", ora "para si", e a verdade que fala. Portanto, ali onde essa verdade falava, ele sabia ouvi-la. Isso não implica que estivesse imunizado contra toda interferência de seu desejo ou de contratransferência em suas análises, mas que nesse caminho da atenção dada à signitividade do desejo inconsciente não se corre o risco de suturar a divisão do sujeito, porque a verdade não fala psicologia (pp. 15-16).

Claude Dumézil destaca o que ele considera as duas invenções da prática institucional de Lacan: o cartel e a ausência de assinaturas nos textos da revista Scilicet, com exceção daquela de Lacan. Em relação à Scilicet, ele fala:

Evidentemente, não é para que ele mesmo tenha o privilégio narcísico de ser o único a assinar, é para que os autores, aqueles que, afinal, se apresentam como sujeitos, tenham de lidar com algo que está no âmbito da perda e da falta, da perda do nome próprio ou, mais exatamente, do deslocamento dessa identidade para uma identidade de escola (p. 39).

Philippe Julien, professor de filosofia e psicanalista a partir de 1968, conta que, depois de ter feito análise com Serge Leclaire e supervisão com vários analistas, foi procurar Lacan para fazer supervisão: "Essa supervisão se transformou numa análise, isto é, passei do face a face para o divã" (p. 51). Do lugar de analisando, ele fala da pontuação e do tempo das seções:

Ora era uma escolha rápida - e, portanto, uma sessão curta - ora uma escolha que vinha lentamente - e, portanto uma sessão longa. Isso dependia da fala do analisando. Por esse motivo é que não havia para Lacan a priori sessões curtas, como houve quem dissesse: "Ele só faz sessões curtas, tem pressa. Trabalha a toda velocidade". Não, de jeito nenhum, tudo dependia da fala do analisando (p. 52).

Jean-Jacques Moscovitz, analisando de Lacan, dá o seu depoimento:

Com efeito, no final de 1979, fui para Sainte-Anne, como de costume, para a apresentação de doentes. Já fazia algum tempo que não tinha mais hora com ele. Lacan estava sofrendo demais com sua doença física e eu tinha decidido parar de ir à rue de Lille [...]. Ora, naquele dia, depois da sessão de apresentação de doentes, fomos os dois para a escadaria do pavilhão Magnan. [...] Ao lhe perguntar como ele estava, ele me disse: "Venha dia 5 de janeiro", olhando-me com uma intensidade que eu não conhecia nele e que eu voltaria a ver nas duas ou três vezes em que o reencontrei, especialmente em uma reunião pública em que [...] fui cumprimentá-lo. Mesmo olhar. "Venha dia 5 de janeiro", disse ele. Ora, 5 de janeiro de 1980 era uma terça. Naquele dia, ele anunciou a dissolução de sua Escola (p. 77).

Colette Soler, que fez análise com Lacan e, junto com Jacques-Alain Miller, criou a Escola da Causa Freudiana, da qual foi a primeira diretora, fala que para ela existem três Lacan: o invocador do inconsciente - "talento que ele tinha de modo raro, muitas vezes surpreendente"; o implacável parteiro do ser - "bem menos divertido, que operava pela certeza"; o da presença humana - "quase fraterna, do mesmo lado do muro que o analisando" (p. 112).

Patrick Valas, psiquiatra, psicanalista desde 1976, relata seu primeiro encontro com Lacan, do qual resultou o início de uma análise com ele:

Eu frequentava às vezes o seminário dele e, um dia, pela primeira vez, fui à sua apresentação de doentes, em Sainte-Anne. Transtornado de horror com o que via, apostrofei-o à saída:

- O senhor pode ficar orgulhoso, a gente tem a impressão de estar no circo Medrano. [...]

Ele replicou:

- De jeito nenhum, de jeito nenhum, de jeito nenhum, o senhor não "sacou". Não é circo. Mas o senhor está me dizendo coisas muito, muito, muito interessantes, certamente teremos oportunidade de voltar a falar disso.

Girou sobre os calcanhares e se afastou. [...] dois dias depois liguei para ele (pp. 123-124).

Jean-Pierre Winter, psicanalista, conta o clima que rodeava naquele tempo os analisandos de Lacan:

Acontece que, na época, (não sei se isso mudou), eu era alguém extremamente atento à prática de Lacan com os outros e não somente comigo. Aliás, formávamos certo número de pessoas que se reuniam no café e contavam umas às outras o que ele tinha dito, o que tinha feito, as armadilhas que tinha montado... Essa coletivização de sua prática já ocorria nos tempos dos pacientes de Freud, como mostram as saborosas memórias de Abram Kardiner, Mon analyse avec Freud (p. 137).

Terminemos com os depoimentos que narram algumas excentricidades. Adnan Houbballah, neuropsiquatra de origem libanesa, que fez análise e supervisão com Lacan, afirma que, na "prática de Lacan, o equívoco é central em toda intervenção para deixar a porta aberta para o surgimento do inconsciente, assim como a ambiguidade, para deixar bem clara a divisão do sujeito perplexo" (pp. 44-45). Christian Simatos, psiquiatra e aluno de Lacan, afirma que "Lacan não deixava ninguém indiferente" (p. 90) e que "era do tipo que cuidava de seu personagem. Um modo de vestir que roçava o excêntrico, dando-lhe uma aparência que beirava o ridículo; em suma, ele não passava despercebido" (p. 90). Dominique Simoney, que não foi analisando de Lacan, mas fez supervisão com ele, destaca, entre outras coisas, a encenação bizarra do seu semblante, o qual ele sabia manejar com "sabida genialidade" (p. 105).

Todos os testemunhos do livro atestam a contribuição original de Lacan ao legado de Freud. O semblante da personagem, do "grande homem" como diria Simoney, arrebatou paixões, amores e ódios. O homem, para além do semblante, permaneceu enigma, envelheceu, ficou muito doente e passou os últimos dias de sua existência na mais profunda solidão...

 

 

Nadiá Paulo Ferreira
Psicanalista; Membro do Corpo Freudiano do RS; Rua Barão da Torre, 205 / 101 - Ipanema - 22411-000 - Rio de Janeiro - RJ. Tel.: (21) 2267-2931 / (21) 9394-6026 E-mail: nadia@corpofreudiano.com.br

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