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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Psicanálise e direito: um diálogo possível?

 

Psychoanalysis and law: a possible dialogue?

 

 

Glaucia Peixoto Dunley

Psicanalista; Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Doutora em Comunicação (UFRJ); Pós-doutora em Comunicação (ECO/UFRJ) e em Serviço Social (ESS/UFRJ)

 

 


RESUMO

Procuro destacar a origem comum entre psicanálise e direito no teatro trágico grego e a possibilidade de se iniciar uma desconstrução do direito através do saber trágico da psicanálise. O interesse deste enfoque é fazer emergir uma compreensão trágica de "natureza humana" que fosse valiosa para despetrificar as formas muito objetivadas das leis e da prática jurídica.

Palavras-chave: desconstrução; direito; psicanálise; trágico.


ABSTRACT

I intend to enhance the common origin of psychoanalysis and law in the tragic Greek theater in order to establish some possible bonds between them, as well as to propose laws deconstruction trough psychoanalysis tragic knowledge. The interest of it might be the emergence of a tragic comprehension of "human nature" which could be precious in the despetrification of the law and of the juridical practice.

Keywords: deconstructions; right; psychoanalysis; tragic.


 

 

INTRODUÇÃO

Procuro apresentar neste texto alguns pontos de partida que tornem possível um diálogo entre psicanálise e direito - pois esta é a questão, a questão sobre a possibilidade deste diálogo, ou em que termos ou bases ele poderia acontecer. Em linhas gerais, esta introdução pretende ser um apelo para que se inicie uma desconstrução das formas muito objetivadas, e mesmo petrificadas, do direito através do saber trágico presente na origem de ambos os campos.

Segundo Szondi, estudado por Roberto Machado (2006:42) em O nascimento do trágico, é apenas com Schelling que nasce uma filosofia do trágico, isto é, uma reflexão ontológica sobre o fenômeno do trágico, a ideia de trágico, a essência do trágico, e a tragicidade da existência. Ou seja, nasce um saber ou uma visão de mundo que apenas na modernidade se tornará uma categoria capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição humana, a dimensão fundamental da existência, contrastando com a atitude poética ou poetológica de Aristóteles, que em sua Poética não se interessou em transmitir a visão do poeta sobre o homem e seu lugar no mundo a partir da grande arte trágica grega da Antiguidade.

A interpretação metafísica da tragédia foi realizada em termos de um antagonismo de princípios por filósofos e artistas como Schelling, os irmãos Schelegel, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche, no século XIX, na Alemanha. Neste filão de pensadores do trágico, incluímos Freud a partir da ideia básica de que todo pensador trágico trabalha um antagonismo de princípios (liberdade x necessidade, por exemplo), mas podendo fazê-lo de maneira diferente. Enquanto que para alguns, como Hölderlin e Freud, em suas elaborações ou especulações mais tardias, a tensão entre o par de opostos ou de princípios contraditórios seria a última palavra, mantendo-se indefinidamente a tensão entre eles, sem resolução ou conciliação possível - caso da tensão entre o humano e o divino para Hölderlin e de Eros e Tanatos para Freud -, para outros existiria uma síntese dialética entre opostos, uma mediação, uma conciliação. Este pensamento foi levado ao extremo por Hegel na sua criação da Dialética a partir da interpretação metafísica da tragédia Antígona de Sófocles, enquanto que outros, como Schelling, utilizaram Édipo rei, ou ainda Édipo e Antígona, como Hölderlin (1994). É importante deixar claro que a tensão ou conflito ou ainda o antagonismo de princípios sem solução, trabalhada fundamentalmente por Hölderlin, dá a esta lógica do trágico nascida na modernidade o caráter de uma lógica paradoxal que faz conviver os opostos; portanto, as diferenças na sua total contrariedade.

É nesta estirpe de pensador trágico da diferença que pretendemos reconhecer a singularidade de Freud, criador da psicanálise a partir de um modelo de aparelho psíquico construído sobre o conflito entre sistemas, na primeira tópica, que se exacerba posteriormente através da ideia de estruturas, na segunda, e de uma dinâmica pulsional que faz interagir princípios e forças independentes e poderosas que lutam entre si, sem conciliação. Talvez se possa pensar em outro contexto a ideia de fusão e da desfusão pulsional, à luz destas elaborações, no quadro da segunda tópica, como uma tentativa freudiana de ora tentar essa "conciliação ou síntese metapsicológica" entre as pulsões, ora de afirmar sua total impossibilidade.

Nossa proposta é que esta desconstrução das formas objetivadas do direito tenha como agente a psicanálise, uma vez que esta práxis foi construída por Freud sobre dois pilares: o de uma ciência humana moderna como tal, movida pela vontade de poder, segundo a perspectiva heideggeriana1, e o de um saber trágico sobre a existência, que, ao admitir sua total imprevisibilidade e falta de garantias, tributárias da ideia freudiana de um inconsciente incognoscível e indeterminado que nos faz agir a nossa própria revelia, expondo-nos ao excesso pulsional e ao desamparo radical decorrente, seja capaz de desconstruir as formas instituídas e petrificadas pelo poder, entre elas o saber-poder.

Deste modo, com esta dupla e paradoxal estruturação, sua dupla inscrição nos saberes ocidentais, a psicanálise constituiria um instrumento de pensamento, de crítica e de clínica capaz de confrontar, de interpelar, por meio de seu discurso fundado na castração e na finitude, não apenas o ópio tecnológico de nosso mundo contemporâneo com suas promessas de um gozo sem fim como também de interpelar os saberes ocidentais, desconstruindo os reducionismos e objetivismos aos quais eles se submeteram na longa duração da metafísica e de sua vontade de poder.

A psicanálise permanece, juntamente com a arte, a poesia e a literatura, a guardiã deste saber trágico sobre a existência, fundado por Freud na tragédia Édipo rei de Sófocles e em seu próprio aprendizado trágico realizado durante a elaboração de sua obra, lastreada pela clínica, pela cultura universal, por suas próprias experiências. Este saber de Sófocles e Freud vai muito além da problemática do incesto e da interdição, pois se abre para repensar o acaso e o excesso especulativo, ou a relação desmesurada do homem com o desejo de saber, que em absoluto não o garante do acaso e do desamparo. Caso de Édipo propriamente ao encontrar e assassinar Laio na estrada entre Tebas e Corinto, para posteriormente criar um inquérito para descobrir o culpado daquela morte, ultrapassando seus poderes de chefe de estado e passando a exercer uma função sacerdotal, seu erro ou hamartia. Caso também de Freud que, em 1904, viveu na Acrópole a experiência de uma angustiante estranheza sem conseguir dar-lhe nenhum sentido durante longos anos, signo de que seu grande saber, o saber do grande decifrador da ciência dos sonhos vindo à luz poucos anos antes com a publicação de "A interpretação dos sonhos" e que marcaria o limiar de um novo século, segundo o próprio autor, não o garantia dos maus-tratos das pulsões, da angústia do estranhamento como experiência do real, conforme suas elaborações tardias no texto "Uma perturbação da memória na Acrópole". Contrastamos este seu saber trágico tardio, o de um Freud/Édipo em Colono que analisa finalmente, e já bem velho neste texto de 1936, o episódio de estranhamento ocorrido 32 anos antes, com sua ilusão (iluminista) ainda presente em "O estranho", quando ele diz que "quanto mais um homem estiver bem orientado nos saberes deste mundo menos ele estará sujeito ao estranho" (Freud, [1919] 1973: 2484).

A psicanálise faz a escuta da tragicidade inerente ao humano por se constituir numa práxis que afirma o conflito como constitutivo da experiência humana, o que implica admitir a divisão do sujeito, seus impasses, suas impossibilidades, suas respostas paradoxais provenientes deste dilaceramento - "um dilaceramento que se aprofunda com o passar do tempo", diz Freud a propósito da divisão do eu (Freud, [1938] 1973: 3375). Talvez, por isso, por seu saber trágico, a psicanálise tenha sofrido menos o impacto da vontade de poder que ela compartilha com as ciências modernas de modo geral, humanas ou não.

Pelo hibridismo de sua estruturação, em que o saber trágico leva a melhor sobre a vontade de poder - ou deveria -, ela surge como um agente crucial para realizar esta desconstrução, seja ela do direito, seja de qualquer outro campo do conhecimento, minado por esta mesma essência da metafísica (e da técnica), em que a vontade de poder assume uma face sublimada, mas ainda assim extrema, da vontade de saber. Dito de outro modo, o saber trágico funcionaria como antídoto às formas instituídas e estratificadas do saber/poder, que acabam por se objetivar em conhecimentos e práticas destituídos de qualquer complexidade, organizando-se em campos que reduzem e empobrecem a visão sobre o fato humano, impedindo que se lhe faça justiça - ou se tente fazê-la.

Entretanto, para iniciar este diálogo desconstrutor, é importante destacar que o "parentesco consanguíneo" entre direito e psicanálise não reside apenas na vontade de poder/saber, mas também na poética das tragédias e do próprio saber trágico moderno. Poética e saber que estas duas instituições têm em comum em suas origens, que não devem ser esquecidas, pois nelas se encontram as intensidades, as forças fundadoras destas duas práxis, geradas pelo autoquestionamento do homem trágico do século V a.C., realizado a céu aberto no grande teatro democrático de Sófocles.

No palco de apresentação das tragédias, formularam-se questões primordiais em torno da justiça, do direito nascente, da autoridade e da possibilidade de pensar se a existência era ou não desejável, diante de tantos paradoxos, indeterminação e sofrimento. Nele, Sófocles mostrou igualmente, de forma sublime, a ambivalência do desejo humano em relação à conquista de sua autonomia, o que pressupunha a priori desejar emancipar-se das forças onipotentes que dominavam o homem trágico e que eram atribuídas à esfera divina, principalmente ao saber onipotente dos deuses. Com Sófocles, o homem começa a desejar sua autonomia e, para isto, quer saber sobre o seu destino para tentar modificá-lo. Lembro que a etimologia de Édipo - pé que sabe, mas também pé inchado (do grego Oidi-pous) - remete através de seu duplo sentido à ambivalência desse desejo: Édipo quer saber para se libertar da fala oracular de Tirésias que o aprisiona na dúvida sobre o culpado pelo assassinato de Laio, e ao mesmo tempo tem seu destino de parricida reconhecido, confirmado no corpo, vendo-se impotente diante da vontade dos deuses que engendrou a maldição.

Esta primeira interpretação da opressão e de sua incipiente resistência, encenada no teatro trágico grego como proveniente da vontade dos deuses, mas também dos homens sobre as mulheres e sobre os escravos, e dos pais sobre os filhos, inaugurou o debate sobre a opressão do homem pelo outro homem, constituindo-se como uma questão forte para o mundo ocidental. Mesmo que, muitas vezes, ela tenha sido colocada obscuramente, no passar dos séculos, com gradações ou máscaras da pulsão de poder que vão desde a pulsão de domínio sobre o desamparo constitutivo da experiência humana à pulsão de apoderamento/aniquilamento do outro com sua indissociável crueldade. Isto se coloca inclusive na esfera do saber, das ciências modernas, extremamente estimuladas pela técnica, e que, portanto, nunca gozaram de fato da neutralidade tão propalada, pois quase sempre estiveram a serviço da dominação do homem por outro homem, numa demonstração explícita de um saber que é poder.

 

DESENVOLVIMENTO

Durante os Estados Gerais da Psicanálise, convocados em Paris, em julho de 2000, os psicanalistas presentes no auditório da Sorbonne, vindos de várias partes do mundo, receberam de Jacques Derrida, o Estrangeiro, tal como ele se anuncia na conferência "Os estados da alma da psicanálise", a intimação de pensar uma psicanálise ainda por vir. Esta psicanálise do futuro deveria estar necessariamente comprometida com a análise de seu presente e de seu passado, a partir do que ela poderia comprometer-se com o presente mais ainda, "sem álibis".

Esta intimação nos foi posta em termos de uma revolução psicanalítica a ser pensada por esta psicanálise do futuro, compreendida como uma sobrevivente de um tempo imemorial de soberania e crueldade. Tempo de crueldade que permanecerá, caso nos submetamos a uma única alternativa: à hipótese de uma pulsão de morte soberana contra a qual é impossível resistir. Entretanto, lembra-nos o próprio Freud, presença forte e constante no livro de Derrida (Derrida, 2001), as devastações impostas por esta Destruktiontrieb poderiam ser mitigadas pelas políticas ou táticas dos "meios indiretos". Esta expressão - "meios indiretos" - foi utilizada por Freud em sua resposta a Einstein, no texto "Por que a guerra?", de 1933, para nomear as astúcias ou táticas de Eros, seus rodeios ou manobras que poderiam retardar a morte imediata ou precoce, ou que teriam como objetivo contornar ou relativizar a destrutividade de Tanatos. Mais adiante, veremos que, segundo Derrida, esses "meios indiretos" poderão constituir as ferramentas para se construírem laços entre os saberes, combatendo indiretamente o desejo de isolamento e a soberania dos saberes modernos em geral - transformados em ciências.

Freud, em seu segundo dualismo, iniciado oficialmente em 1920 com o texto "Para além do princípio de prazer", responsável por acirrar o conflito psíquico, introduz como elemento constitutivo do psiquismo a hipótese da pulsão de morte, força "demoníaca", irredutível à ordem civilizatória, estando sempre prestes a irromper individual ou coletivamente sob a forma de massacres, guerras, assassinatos, crimes e crueldades em geral, físicas ou morais; como também sob as formas de repetição do mesmo, seja dos esquemas de apoderamento e de submissão, seja pela refratariedade desses mesmos esquemas à transformação. Segundo ainda este segundo dualismo, Freud constitui também não só a natureza humana como a do "ser vivo em geral" pelas pulsões de vida, responsáveis pelas agregações, pontes, elos ou laços construtivos em geral, como os já mencionados "meios indiretos" através dos quais seria possível fazer resistência a Tanatos.

Deste modo, Freud, pensador trágico, concebeu o psiquismo humano como um palco de lutas, de conflitos, submetido ao poder de forças poderosas e constantes - as pulsões -, referindo-se a elas como sendo seres mitológicos, nossos daimons. Ou seja, ele tornou íntimas ao psiquismo essas forças que o homem trágico grego atribuía a uma exterioridade que o manipulava "demoniacamente" - como as forças do destino, a vontade e o saber dos deuses - fazendo-o agir de forma desmesurada, pelo ímpeto, pela hybris ou desmesura, sem saber ao certo por que o fazia e que estaria sendo levado à perdição.

Anteriormente, ainda em seu primeiro dualismo entre pulsões sexuais e de autoconservação ou do ego, Freud já nos fornece subsídios valiosos sobre o humano à luz da psicanálise. Em "Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade", de 1905, ele audaciosamente atribui à sexualidade infantil um caráter perverso-polimorfo, isto é, um caráter desviante da norma. Isto é, segundo os costumes e as normas da época, impregnados de uma medicina positivista, o ato sexual visaria apenas à reprodução da espécie e não ao prazer. Contrariamente a isto, Freud propõe que a sexualidade infantil, constitutivamente desviante, possui várias possibilidades ou formas (caráter polimorfo) de atingir a satisfação ou o prazer. Mais ainda: diz que esta sexualidade infantil - perverso-polimorfa - é o protótipo da sexualidade adulta.

Lembro que o conceito de sexualidade da psicanálise é o de uma sexualidade ampliada, movida tanto pelas pulsões de vida - entre as quais estão as sexuais, cuja energia nos leva a procurar atingir nossos objetivos libidinais, sejam eles de que ordem forem, inclusive interesses de ordem intelectual, artística, ou criativa -, quanto pelas pulsões de morte. Esta transformação em relação ao objeto da satisfação (indireta) das pulsões sexuais se realiza a partir de uma capacidade de sublimação dessas pulsões. As pulsões de morte, por sua vez, podem desfazer, dissolver o instituído, como também petrificar nossos propósitos conscientes ou não sob as formas insidiosas e silenciosas da repetição do mesmo, além das já citadas violências e destruições.

Deste modo, Freud problematiza, alterando profundamente, e mesmo subvertendo, o conceito moderno de natureza humana, ligado ainda hoje a concepções bastante heterogêneas desde os gregos, mas que possuem em comum a supremacia da consciência no psiquismo. O desconhecimento explícito da descoberta freudiana do inconsciente não auxilia em nada uma prática como a do direito, ao permanecer sem os esclarecimentos que a psicanálise pode oferecer, contribuindo para redefinir o humano - tornando-o trágico - e talvez tornar mais justa esta prática, pois ela estaria partindo de outras premissas quanto ao humano, quanto à assim chamada natureza humana.

Então como fazer leis, como fazer um direito justo, aplicado, em relação a uma "natureza humana" que é desviante, indomável, agida pelo inconsciente? Qual o preço justo a fazer pagar um sujeito que agiu fora da lei por uma recondução à civilização, atravessada agora por este humano, cuja condição é trágica, dilacerada, desviante e indomável por conta de sua "natureza pulsional"? São questões em que o direito e a psicanálise podem avançar juntos.

Para nos ajudar nessa empreitada, Derrida - que nos deixou há poucos anos e que tanto estudou e contribuiu para uma desconstrução da psicanálise com o objetivo de libertar sentidos que pudessem ter sido sepultados pelo jogo de forças do movimento psicanalítico e de seus embates - considerou que é preciso ir além. Ir além desta pulsão de morte, além de Guantánamo e de sua crueldade. E que o segundo dualismo freudiano e seus princípios ainda fariam parte de uma economia do possível. Propõe-nos, ou melhor, convoca-nos a ir mais adiante, ao impossível, na direção de uma ética para além da pulsão de morte e para além de uma de suas principais máscaras, a pulsão de poder - que aniquila, explora, espolia, submete, humilha física e moralmente.

Para isso, ele nos fala da transformação que a psicanálise deve sofrer para e ao fazer um salto na direção de outros saberes, provocando ao mesmo tempo a transformação destes outros campos. Delineia no horizonte sem fronteiras de nosso tempo os instrumentos de pensamento que poderiam nos guiar: os Incondicionais Impossíveis - o dom sem retribuição; a hospitalidade ao radicalmente outro; o perdão quando é impossível perdoar; o talvez como potência positiva daquilo que pode ser ou não ser, ou, mais ainda, como aquilo que pode ser e não ser; o indecidível entre duas posições sustentáveis, a vinda incondicional do outro como aquilo que vai nos libertar de nossos esquemas individualistas, a amizade do (sempre) amigo-inimigo.

Este impossível não é um negativo, mas aponta para uma divisão do eu a partir da qual poderia nascer um eu ético, o eu do communitas2 que é sempre muitos. Através destes Incondicionais Impossíveis, podemos pensar em assumir nossa própria ambivalência em relação ao outro e ao mundo, e a desejar ultrapassá-la, fazendo escolhas afirmativas, e a partir delas construir uma utopia realizável.

Utopia diante da irredutibilidade da pulsão de morte? Por que não? São novos modos de pensamento que Derrida nos propõe, aproveitando e, talvez, ultrapassando o saber freudiano.

Retomando os "meios oblíquos" ou "indiretos", dos quais Freud nos fala em "Por que a guerra?", Derrida acrescenta, em Estados-daalma da psicanálise, que eles fazem parte ativa das táticas de descontinuidade do saber psicanalítico na direção dos outros saberes, podendo ser identificados com elas, pois combatem indiretamente a pulsão de poder no âmbito dos saberes. Isto é, combatem o saber-poder que torna os saberes enclausurados, departamentalizados, repetitivos e competitivos entre si, resultando na sua petrificação em torno de um óbvio e de um mesmo que não se questiona mais e que tem efeitos nefastos e mesmo cruéis sobre suas práticas.

É instigante pensar, a partir dessas colocações, o quanto a descontinuidade do saber psicanalítico proposta por Derrida poderia provocar uma transformação por vir da ética, do direito, da política. Poderíamos talvez chamar esta descontinuidade de abertura ativa em relação aos outros campos, desejo de diálogo. O que se tornaria efetivamente possível pela tomada em consideração, pelos outros campos, de uma psicanálise que se abriu realmente para a alteridade, que se tornou communitas, por um salto no indecidível de sua relação com os outros saberes e práxis. Ou seja, sem poder decidir, e nem querer decidir a priori, sobre os caminhos imponderáveis que essa "mistura" poderá trazer. Indecidível que admite vida-morte, especificidade-inespecificidade. Daí a importância de se ultrapassar a interdisciplinaridade - na qual as fronteiras entre as disciplinas ainda permanecem soberanas, protegendo pequenos feudos e suas ilusões de poderem constituir, por si, um fim em si - e passar a caminhar de fato na direção de uma transdisciplinaridade. Nela, tão confundida com a interdisciplinaridade, o que interessa não é uma determinada ciência ou outra, mas um problema comum que se torna o móbil de pensamento para uma comunidade de ciências ou disciplinas que devem (imperativo ético transdisciplinar!) estar ao seu serviço para encaminhá-lo e resolvê-lo. Ou, pelo menos, equacioná-lo, realizando o reconhecimento da dívida com o saber e com a vida em comum.

Na realidade, meu objetivo ao trazer Derrida insistentemente neste texto que pretende questionar ou examinar a possibilidade de um diálogo entre psicanálise e direito é procurar fazer com que este leitor fiel e transgressivo de Freud nos ajude a tornar communitas a psicanálise contemporânea, isto é, capaz de realizar uma ética do outrem, em que o desejo pela alteridade radical não seja apenas restrito ao inconsciente dos sujeitos, incluindo também a que é proposta incessantemente pelo outro saber, pelas outras práticas, estimulando a vinda incondicional do outro, do estranho, do estrangeiro.

Inicialmente, a desconstrução proposta por Derrida é uma forma de pensamento crítico, de inspiração filosófico-literária que tem como objetivo dissolver ou estremecer algumas oposições binárias dos textos metafísicos, seus dogmas, a partir de uma lógica da "différance", e parece passar ao largo de questões como o direito e a justiça. Entretanto, destaco abaixo alguns fragmentos do livro Força de lei onde Derrida atualiza a desconstrução, comprometendo-a mais ativamente com os movimentos do mundo contemporâneo através de um pensamento ético em torno da necessidade de caminhar na direção da justiça, descolando-a do direito:

O que se chama correntemente de desconstrução corresponde a um duplo movimento: uma responsabilidade sem limites, excessiva, incalculável, diante da memória, da memória do que nos foi legado sob o nome de justiça. E, por isso, temos a tarefa de lembrar a história, a origem, o sentido, isto é, os limites dos conceitos de justiça, de lei e de direito, dos valores, normas, prescrições que se impuseram desde um começo, se sedimentaram, permanecendo desde então mais ou menos legíveis. Donde a desconstrução é a responsabilidade diante de uma herança e se empenha com essa exigência de justiça infinita, embora ela só se faça ou realize sob a forma de um apelo. É preciso ser justo com a justiça, e a primeira justiça a lhe ser feita é ouvi-la, tentar compreender de onde ela vem, o que ela quer de nós, sabendo que ela o faz através de idiomas diferentes Díke, Jus, Justitia, justice, justice... (Derrida, 2007: 37).

E de tempos diferentes.

Seria interessante aproximar, neste momento, os termos justiça e direito da problemática da Lei (como Leis não escritas: seja sob a forma da lei da castração, isto é, do interdito do incesto e parricídio, da dívida com a linguagem que nos fez humanos, seja sob a forma das leis divinas das quais fala Antígona), da sua tensão com as leis particulares do direito, sempre insuficientes e por isso mesmo transformáveis. Mais adiante, esta tensão entre a Lei e as leis surgirá em toda sua nudez na tragédia de Antígona, de Sófocles. Esta tragédia - tão trabalhada por Lacan no Seminário da Ética - é a tragédia da justiça como experiência impossível, uma vez que na experiência da aporia encarnada por Antígona e Creonte, através da contradição entre as Leis não escritas defendidas por Antígona e as leis da cidade sustentadas por Creonte, pratica-se o indecidível, onde mora apenas o apelo infinito por justiça. E não a justiça. Diz ainda Derrida:

Não obedecemos as leis porque elas são justas mas porque elas têm autoridade. Elas têm autoridade porque lhes damos crédito. Este crédito repousaria, segundo Pascal, Montaigne e Derrida, no fundamento místico da autoridade.... em ficções legítimas sobre as quais nosso direito funda a verdade de sua justiça. Este momento fundador, de inaugurar o direito, aplicar a lei, consiste num golpe de força, numa violência performativa e interpretativa que nela mesma não é justa nem injusta (Derrida, 2007: 21).

Ressonâncias explícitas com as origens míticas de nossa civilização pensadas por Freud em sua ficção legítima que é "Totem e tabu", tecida em torno do crime de parricídio de um pai tirânico, efetuado miticamente pela coalizão de irmãos - violência fundadora a partir da qual são criadas as condições para a civilização. Neste ensaio extraordinário, Freud cria o fundamento místico da autoridade do superego, tanto na sua vertente feroz (baseada no pai da horda) quanto na sua vertente normativa, comunitária (baseada na "obediência retrospectiva dos irmãos ao pai morto", quando estes criam os interditos e as normas para uma sociedade humana após o assassinato do tirano).

Ressonâncias também com um direito nascente que, tragicamente, na sua origem no século V a.C. expõe o indecidível de um julgamento, que se termina pela proclamação do sacrifício de Antígona, proclamação esta que funda o direito da polis grega em detrimento das leis divinas, marcando os limites, as fronteiras entre o divino e o humano, e, mais do que isso, levando o homem trágico do século V a.C. a escolher viver neste mundo com suas leis humanas. Nesta escolha, como já foi dito anteriormente, mora o indecidível, que deve manter acesa a tensão entre dois termos, tornando muito complexa uma decisão, quando se deseja caminhar na direção da justiça e não apenas na do direito.

O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, enquanto a justiça é incalculável, ela exige de nós que se calcule o incalculável: o que seria justo - a decisão justa a partir de uma experiência aporética que é indecidível por princípio -, momento este de extrema angústia pois que a decisão justa nunca será garantida por uma regra, por uma lei (Derrida, 2007: 30).

E ainda: "Como conciliar o ato de justiça, singular, com a regra a norma, a lei que tem necessariamente uma forma geral. Eu poderia agir conforme o direito objetivo, mas não seria justo" (Derrida, 2007: 31).

 

QUEM PRETENDERÁ SER JUSTO POUPANDO-SE DA ANGÚSTIA?

Freud não se poupou da angústia ao transgredir o instituído. Foi ele justo? O que seria fazer justiça a Freud? Acredito que esta resposta terá que ser dada aos poucos, por muitos.

Foucault, mais ou menos a contragosto, afirma em A história da loucura que era preciso ser justo com Freud, pois ele havia retomado a loucura no nível de sua linguagem, reconstituindo assim um dos elementos essenciais de uma experiência reduzida ao silêncio (da doença mental) pelo positivismo. Freud restituiu ao pensamento médico, segundo ainda Foucault, a possibilidade de um diálogo com a desrazão, o que a psicologia moderna desejou mascarar. Foi ele, Freud, a partir de seu dualismo entre Eros e Tanatos, quem pressentiu a loucura como experiência trágica.

Temos muitos subsídios para reconhecer e apostar no poder de fogo da psicanálise, na sua qualidade de pensamento crítico, ético e inovador no quadro das ciências humanas, responsável por efetuar um corte na episteme moderna, subvertendo dogmas milenares. Como, por exemplo, o de que a consciência dava a medida da soberania do eu. Entre outros cortes, desde antes de "A interpretação dos sonhos" Freud chocou uma modernidade centrada nesta soberania, a começar pela novidade fundadora da psicanálise de que existiam pensamentos inconscientes, responsáveis em grande parte pelo agir do sujeito. Freud radicalizou-a em "O ego e o id" (Freud, [1923] 1973: 2701), ao afirmar que a consciência era apenas uma qualidade do psíquico - um estado qualitativo do psíquico - que, na verdade, estaríamos sob o jugo de um não-saber quase absoluto e que, portanto, nos movemos num mundo de total indeterminação. O que nos leva imediatamente ao saber trágico. Freud inova também substancialmente na teoria da representação ao acrescentar carga, força, Affekt à representação, ao pensamento, dando-lhe valor psíquico, diferença.

Fazer justiça a Freud é afirmar que a psicanálise não é apenas uma terapia, uma clínica particular do sofrimento psíquico, mas, antes de tudo, uma práxis emancipatória do sujeito e da cultura, baseada em sua potência crítica e em sua audácia questionadora, sempre em dívida com o saber trágico de Sófocles - um dos dois pilares da invenção freudiana -, o que não pode ser jamais esquecido. Como nos lembra Horus Vital-Brazil, esta emancipação começa com o reconhecimento de que no mundo vivido nada existe que não seja social e histórico e de que tudo é, em última análise, político. Esta psicanálise emancipatória, inclusive do social, não se recusa a considerar valores e se embrenha na dimensão social como uma forma de análise crítica, tornando-se uma teoria crítica da cultura (Horus Vital-Brazil, 1994). Ao que eu acrescentaria uma clínica da cultura, reunindo ética, política e estética - uma vez que trabalha com a estesia das pulsões.

 

TERIA A EXISTÊNCIA UM SENTIDO? ELA É OU NÃO DESEJÁVEL? A QUESTÃO DA JUSTIÇA...

Segundo Nietzsche, esta seria a questão suprema da filosofia. Nas entrelinhas, pode-se escutar outra questão: o que é a justiça? Servindose do sofrimento para questionar a falta de sentido da existência, sua imprevisibilidade absoluta, a tragédia tentou inicialmente encontrar uma justificativa superior e divina.

A existência como desmesura, levando à transgressão e ao crime, é a maneira pela qual os gregos a interpretavam e a avaliavam na época dos grandes trágicos. A tragédia ática deve ser considerada como figura maior dos impasses e das impossibilidades humanas, evidenciadas nos confrontos entre esferas ou mundos diversos aos quais o homem pertence, dividindo-se, dilacerando-se, e leva-o à questão terrível de se a existência é ou não desejável.

Esta questão coloca o desejo humano - matéria-prima da psicanálise - de fato e de direito no contexto de seu nascimento, isto é, no contexto trágico de dilaceramento, em que ele pode ser compreendido como desejo de impossível. Isto é, ele é precisamente esta relação com a impossibilidade. O desejo seria a impossibilidade que se faz relação, interrogando sempre os limites de suas possibilidades.

Deste modo, o domínio próprio da tragédia situa-se nesta zona de fronteira, na qual os atos humanos vêm articular-se com potências desconhecidas revelando seu verdadeiro sentido, ignorado por aqueles que os praticaram e que por eles são responsáveis, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa. Nem por isso os trágicos se desresponsabilizaram.

Antígona e Édipo rei, de Sófocles, são verdadeiras tochas a iluminar o questionamento inaugural e conflitante em torno da justiça divina, do direito e do desejo humano que apenas se esboçavam. Num universo de total indeterminação, manipulado por potências que ele acreditava serem externas a ele, o homem trágico ficava impedido de saber o quanto era responsável por este ou por aquele ato que havia cometido, muitas vezes sem saber, e que era geralmente atribuído a uma falta transgeracional (de ordem religiosa) que se abatia como uma maldição sobre a descendência do "culpado"/pharmakós (o bode expiatório). Culpado entre aspas, porque esta culpa trágica nos obriga a problematizar a natureza do homem trágico - dividida entre ethos (caráter) e daimon (potências demoníacas que agem através dele, à sua revelia) -, o que tornava indecidível a atribuição da culpa e, consequentemente, o grau de responsabilização, resultando o valor da dívida a ser pago por aquela transgressão quase sempre na morte do herói trágico.

A consciência trágica, segundo Vernant (Vernant & Vidal-Naquet, 2002: 64), nasce com a tragédia e só se torna possível quando o plano humano e o divino são bastante distintos para se oporem sem que, entretanto, deixem de parecer inseparáveis. Isto se dá em Sófocles, não antes, pois o sentimento trágico da responsabilidade surge quando a ação humana passa a constituir um objeto de reflexão, de questionamento, mas ainda não adquiriu um estatuto suficientemente autônomo em relação ao divino - o que ocorre em Eurípedes, mais sintonizado que estava com uma racionalidade socrática, ocasionando, segundo Nietzsche, a morte da tragédia. É uma questão que se coloca na e pela tragédia: se esta autonomia, fruto realizado ou consumado de uma separação entre humano e divino, seria possível. Ou se a partir desta natureza humana grega, trágica, dividida entre ethos e daimon, era possível depreender o caráter inarredavelmente alienado (a um outrem) do pensar e agir humanos. Como Freud percebeu, apenas uma certa autonomia seria possível, uma certa redenção, através de nossas possibilidades de sublimar nossos daimons.

Com Sófocles questiona-se o caráter problemático do poder exercido sobre outrem. O que é o poder do homem sobre a mulher, sobre os filhos, o do chefe de estado sobre os cidadãos, o da cidade sobre os estrangeiros, o dos deuses sobre os mortais? No seu teatro, a matéria-prima do mythos (enredo) da tragédia é o socius, na vigência de um modo de existir que pressupõe certa separação do divino. O pensamento jurídico encontra-se em pleno trabalho de elaboração, tentando realizar a sua própria separação de uma tradição religiosa e de uma reflexão moral, da qual o direito já se havia distinguido, mas não tinha ainda seus limites claramente delimitados, tendo, como uma de suas resultantes, um direito que não está fixado, que se desloca, podendo reverter-se em seu contrário. Ou seja, o homem tenta, entre impotência e vontade de potência, orientar sua ação num universo de valores paradoxais, moventes.

Deste modo, é um tempo já "mutado" - esse tempo novo da finitude, e não mais divino - que recolhe as palavras de Édipo. Este, agindo de forma sacerdotal e não como chefe de Estado - isto é, como aquele que seria chamado futuramente de rei do direito divino -, transgride os limites humanos ao transformar o universal da palavra profética de Tirésias em particular e ao mostrar a necessidade de se encontrar um pharmakós - uma vítima expiatória - que fosse responsabilizada pelo flagelo (a peste) que assolava Tebas. A falta trágica de Édipo, segundo Hölderlin, aludindo à harmatia ou erro de origem religiosa, conforme Aristóteles na Poética, seria a hybris do desejo de saber, levando-o a invocar antigas leis religiosas na vigência de outro tempo - tempo da polis, do homem -, tomando a si próprio como representante divino e instruindo o seu próprio processo de heresia (o inquérito para apurar a morte de Laio, que estaria implicada com a peste em Tebas).

Vemos que Foucault se apropria desta concepção de Hölderlin - poeta-filósofo que inspirou muitos pensadores do século XX, entre eles Nietzsche e Heidegger - em sua segunda conferência de A verdade e as formas jurídicas, dando destaque ao Édipo por encarnar filosoficamente e de forma emblemática este saber-poder. Freud aproxima estreitamente a tragédia de Sófocles da problemática do saber quando diz, em "A interpretação dos sonhos" (Freud, [1900] 1973: 507), que a tragédia começa quando os tebanos querem saber sobre as causas da peste que assolava Tebas. A partir daí, tem-se na tragédia de Édipo a abertura de um inquérito para apurar a verdade dos fatos sobre a morte de Laio, tendo Édipo ocupado várias posições simultaneamente: a de rei, a de sacerdote, a de juiz - o que caracterizou a sua hybris ou desmesura. Este testemunho dado pela Tragédia de Édipo sobre o início das práticas judiciárias gregas também mostrou a passagem do uso de provas (oraculares/divinas) para testemunhos (humanos, dos pastores). Sendo mais uma evidência da separação em curso.

O espetáculo trágico desapropria o homem trágico de um suposto saber/poder do homem sobre a existência quando a tragédia do herói supõe a perda inexorável de qualquer posição e de qualquer determinação previamente garantidas pela enunciação, fazendo com que o personagem trágico seja pego na e pela sua própria palavra. Foi bem este o caso de Édipo ao exigir que a verdade fosse buscada a qualquer preço, fazendo com que se realizasse a peripécia, a inversão (metábole) da situação. Parece-me clara a ressonância do espetáculo trágico ou de luto sob uma experiência de análise.

 

CONCLUSÃO

Na perspectiva trágica, o homem e a ação são problemas para o pensamento e não o reflexo de uma realidade. Ambos se apresentam como enigmas cujo duplo sentido não pode ser nunca fixado, nem esgotado. Esta ambiguidade é criada deliberadamente pelo poeta para aceder aos principais temas de questionamento da tragédia: o poder sobre outrem (kratos) e a justiça (dycké), em que, em primeira instância, é discutido o poder dos deuses sobre o homem.

Dividido a partir de sua própria constituição, o homem trágico "não é senhor em sua própria morada", nisto residindo a força desapropriadora da tragédia, que Freud captura para a psicanálise, tanto na prática quanto na teoria, contrabalançando com isso o outro pilar constitutivo da psicanálise - ser uma ciência moderna e, portanto, tributária dos métodos de investigação, dos protocolos, da técnica. A psicanálise é assim um saber castrado, castrado pela sua fundação no trágico. Pois se todo saber instituído é apropriação - é pulsão de poder -, o saber trágico, com sua potência desapropriante das formas de poder, desestabiliza as formas instituídas, petrificadas, ou apropriadoras da existência, movendo-se melhor na esfera do paradoxo e da indeterminação. Pode-se entender agora, talvez, toda a tragicidade da elaboração da pulsão de morte.

Esta é explicitamente a razão pela qual é importante esclarecer este parentesco entre direito e psicanálise, pois, se a psicanálise mal ou bem usufrui de sua dupla fundação, ao direito cabe talvez se apropriar, via psicanálise, desta dimensão trágica que aparece sempre nos impasses entre fazer justiça e praticar o direito, seja nas decisões do juiz, no indecidível de uma decisão (se ele não for um burocrata da lei), seja na escolha trágica de uma determinada política de saúde que contemplará uma fração da população e não outra. Esta explicitação da tragicidade inerente à justiça e à pretensão de aceder à prática de um direito justo, castrado, pode acontecer num conviver entre psicanálise e direito.

Esta psicanálise (trágica) está sempre em crise, nos lembra Horus Vital-Brazil (1994), o que, em grego antigo, significa que ela está sempre em condições de emitir juízos, julgamentos e decisões e não de se omitir - e afastar de si, deste modo, o ceticismo da neutralidade. Isto supõe que ela possa construir, na fronteira com outros saberes e práticas, um presente e um porvir norteados pela direção de justiça, abrindo-se às experiências emancipadoras da ordem hegemônica neoliberal que acontecem em todo o mundo, mais precisamente a partir dos anos 1980, quando se acirraram as desigualdades e a violência impingidas a praticamente todo o mundo capitalista pelo desejo de poder/vontade/dominação irrefreado de uma única nação.

Para se assumir como participante crítica dos processos contrahegemônicos, ou como campo de resistência à supremacia do capital e ao seu séquito de mazelas - que se apropriam do social tanto da forma mais explícita quanto da mais capilar ou infiltrante -, a psicanálise precisa resgatar sua potência trágica, potência de dilaceramento, de um saber sobre a indeterminação, que nos faria menos angustiados e, portanto, menos disponíveis para a cultura do consumo e do ópio tecnológico. E, talvez, mais engajados nos desafios contemporâneos, principalmente nos referentes aos acontecimentos cruéis de nosso tempo. A paixão da eficácia, o gozo e o egoísmo sem limites procuram encobrir a imprevisibilidade e o desamparo de nossa verdadeira condição, que se baseia em nossa "natureza trágica".

Para finalizar, lembro ainda que Derrida (2001), no seu anseio de justiça, nos falou do salto que a psicanálise precisa efetuar em direção aos outros saberes para participar ativamente de suas transformações, de suas atualizações necessárias e inarredáveis em um mundo globalizado e excludente, o que pressupõe engajarmo-nos no processo de dissolução/liquidação da "miséria erótica ou psicológica dos povos"3. Este salto a ser dado pela psicanálise é movido por uma questão estrutural: a de precisar (e é então da ordem da necessidade) reconhecer, mais ainda, sua dívida com a lei da linguagem que nos fez humanos, com os outros saberes, com o comum. "Sem álibis", como nos convocou a agir Jacques Derrida, em sua inesquecível conferência pronunciada no auditório da Sorbonne, em 2000, por ocasião da realização dos Estados Gerais da Psicanálise em Paris4.

 

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Notas

1 Em "Dépassement de la métaphysique" (Heidegger, 1936-1946/1958), a vontade de poder é considerada por Heidegger como a penúltima etapa da vontade de vontade, sendo esta uma vontade que se quer a si própria - procurando no mesmo as garantias de sua autoperpetuação - e que constitui o motor ou a essência da metafísica moderna e da técnica Segundo ele, esta vontade é a responsável por idealizar e formalizar (endurecendo) o projeto tecnocientífico moderno de disponibilização do real (incluindo nele o próprio homem), através de instituições de toda ordem, nos séculos XIX e XX, que organizaram freneticamente os saberes e as produções em geral, centralizando-os nas instituições, departamentalizando-os, e, de certa maneira, imobilizando-os. Este objetivismo da vontade de poder do qual fala Heidegger em "L'époque des conceptions de monde" é trabalhado no livro da autora A festa tecnológica - o trágico e a cultura informacional (p. 125), assim como os temas a ele relacionados - a própria vontade de poder heideggeriana e nietzshiana, articuladas à pulsão de morte, através de sua face de pulsão de apoderamento/aniquilamento da natureza e do outro homem a partir da pulsão de domínio. Para desenvolvimento deste tema importantíssimo ver as elaborações de Derrida em "Spéculer sur Freud" in La carte postale - de Socrates à Freud (1980); e do mesmo autor Estados-da-alma da psicanálise, p. 47; assim como em Major, R. "Para além do princípio de poder". Rev. Nó Górdio (2001). Rio de Janeiro, n.1.

2 Roberto Esposito, filósofo italiano contemporâneo, trabalha em Communitas - orígen y destino de la communidad o homem moderno como sendo o immunitas - aquele que se coloca como estando imune ao pagamento da dívida que se tem com o Outro, com a linguagem e com a lei, isentando-se de pagá-la. Em contrapartida, o communitas é o que está aberto ao seu reconhecimento. Este pagamento-reconhecimento descentra o sujeito em relação aos desejos soberanos do eu, levando-o a sair de si. Transpondo do plano individual para o plano coletivo e da cultura, considero que o pagamento da dívida foi inibido, obstaculizado na Modernidade pelo autocentramento do homem (moderno), que erigiu um culto crescente ao eu, resultando no individualismo sem precedentes do qual ainda somos reféns - tempo este que se poderia chamar talvez de "período de neurose obsessiva da humanidade"; por outro lado, podemos estar assistindo ao nascimento do communitas no Contemporâneo através da abertura local e global que se realiza através dos movimentos sociais, impulsionados pela tecnologia (ver Tempo Psicanalítico, nº38/2006, pp. 188-198, "O pensamento a serviço do comum", assim como o artigo "As comunidades que vêm - utopias em realização na Favela da Maré/ONG CEASM - Revista Lugar comum - Pub. Rede Universidade Nômade/LabTec-UFRJ, nº28/2009, onde trabalho a importância crucial de se fazer a passagem do immunitas moderno ao communitas contemporâneo para a vinda do comum, o que pressupõe a vinda incondicional do outro).

3 Em "Análise do eu e psicologia das massas", assim como em "Mal-estar na cultura", Freud utiliza esta expressão para qualificar o momento em que não há mais líderes com os quais as massas possam se identificar, constituindo com isso elos ou laços entre os indivíduos de um grupo. De sua ausência - ou declínio - resulta o pânico da falta de identificação, pela dessubjetivação, o que podemos constatar hoje em dia com o crescente esgarçamento dos laços e o correlativo aparecimento de "novas patologias".

4 Esta conferência foi publicada sob a forma de livro em 2001, pela Editora Escuta, com o título Estados-da-alma da psicanálise - Para além de uma soberana crueldade.

 

 

Recebido em maio de 2011
Aceito para publicação em junho de 2011

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