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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Retornar à causalidade psíquica?

 

A return to psychic causality?

 

 

Marie-Claude Thomas

Membre de l'Ecole lacanienne de psychanalyse (ELP); Docteur en psychopathologie fondamentale et psychanalyse

 

 


RESUMO

O objetivo da autora é discutir uma tendência que lhe parece atual no meio psicanalítico: a cessão do campo da psicanálise às neurociências. Alguns autores assim o fazem, como se à primeira faltassem fundamentos para que se tornasse legítima. Tomando o livro de Pommier Comment les neurosciences démontrent la psychanalyse como paradigma desta posição reducionista, a autora a critica.
Considerar que a neurologia explicaria o psíquico representa não só uma redução do saber psicanalítico enquanto tal, mas um empobrecimento do conceito freudiano de inconsciente, que passa a ganhar existência física: "o mental".

Palavras-chave: psicanálise; neurociências; causalidade psíquica.


Abstract

The author's objective is to discuss a tendency that seems to her current among psychoanalysts: the cession of the psychoanalytic field to neurosciences, as if it lacked its own foundations. Taking Gerard Pommier's book Comment les neurosciences démontrent la psychanalyse as a paradigm of this reductionist position, the author criticizes it.
To consider that neurology could explain the psychic represents not only a reduction of psychoanalytic knowledge as such, but an impoverishment of the Freudian concept of unconscious, which is thus provided with a physical existence: "the mental".

Keywords: psychoanalisis; neurociences; psychic causality.


 

 

Aqueles que fazem reluzir diante de vocês a síntese da psicanálise com a biologia demonstram-lhes claramente que isso é um engodo, não apenas por não haver absolutamente nada esboçado nesse sentido até o momento, mas também porque, até nova ordem, prometer isso já é uma vigarice.

(Lacan, 1999, p. 369)

A propósito de todo um campo de atividades ditas científicas em um certo período histórico, essa perspectiva de redução dita "materialista" bem merece ser apreendida como tal, pelo que é, a saber, sintomática. Seria necessário que isso acreditasse em Deus, exclamaria eu... Mas, na verdade, é certo que toda essa construção dita materialista ou organicista, digamos ainda, em medicina, é bastante bem recebida pelas autoridades espirituais.

(Lacan, 15 de novembro de 1967)

Como as neurociências demonstram a psicanálise é um título arriscado. Menos uma letra, e, em francês, a afirmação se inverte e se transforma em Como as neurociências desmontam a psicanálise (Pommier, [2004] 2007).

Para Michel Imbert (1998), poder-se-ia conferir ao título certa reversibilidade, assim como uma reciprocidade, pois ele considera que é a psicanálise que demonstra e faz um aporte às neurociências e não estas que trazem à psicanálise uma cientificidade da qual ela definitivamente não necessita. Este jogo de espelhos caracteriza frequentemente as publicações que tratam das aproximações, mais ou menos diplomáticas, entre neurociências e psicanálise1.

O livro de Gérard Pommier reúne teses defendidas por ocasião de sua habilitação para orientar pesquisas universitárias e surge como um desenvolvimento de uma longa história que teve inicio em 1913. Neste ano, John Watson publicara na Psychological Review um artigo intitulado "A psicologia tal como o behaviorista a vê", trabalho este que remonta ao projeto de "naturalização do espírito", visando contrapor-se ao método freudiano. Pouco mais de quatro anos tinham se passado desde a viagem de Freud aos EUA quando Watson começou a "batalha do behaviorismo", título de um dos seus livros, publicado mais tarde, em 1927. Seria necessário ler, ou reler O behaviorismo (Watson, [1925] 1972) para apontar o mal-entendido inicial sobre o qual repousa sua argumentação: a ideia de oposição e enfrentamento de dois campos que detêm um objeto comum a serem comparados imaginariamente. É também a partir de um mal-entendido que, logo no início do livro, G. Pommier lança uma questão: é possível que haja dois pontos de vista completamente diferentes, até mesmo contraditórios, de um mesmo fenômeno? Este "mesmo fenômeno" é o mental, abordado quer seja pelo seu lado orgânico (cerebral), quer seja pelo seu lado psíquico. Ao formular esta questão, Pommier confere ao mental um estatuto de objeto já dado desde sempre, natural.

A ideia de oposição entre estes dois pontos de vista é, para Pommier, infundada. Ele assegura que essa argumentação ganha força devido ao desconhecimento dos processos cerebrais e da vida psíquica. Continua ele afirmando que esta oposição foi subvertida pela psicanálise graças a uma de suas maiores descobertas: a pulsão. O conceito de pulsão daria sustentação à argumentação de Pommier, pois, ao animar o psíquico, integrando-o ao somático, invalidaria qualquer oposição entre o mental e o cerebral.

Referir-se à pulsão como uma "grande descoberta" retira do constructo teórico toda sua originalidade, como se fosse um saber que já estava lá, esperando que Freud o fizesse surgir. Distancia-se assim do pensamento do mestre que a considerava um "conceito fundamental convencional" (Freud, [1915] 1974: 164).

A pulsão, tal como a define Pommier, capaz de invalidar a oposição da qual falamos, seria ainda um conceito psicanalítico? A questão se impõe, pois para Freud a pulsão é um conceito limite, uma interface na problemática do dualismo corpo e espírito. Relembremos a definição de Freud:

Se agora abordamos pelo ponto de vista biológico o exame da alma, a pulsão nos aparece como um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos provindos do interior do corpo e chegando até a alma, como uma medida da exigência de trabalho que é imposta ao anímico em consequência de sua relação com o corporal (Freud, [1915] 1974: 122).

Esta abordagem pelo lado biológico será deslocada por Freud, de forma sutil e implícita, quando, na continuação do artigo, trata dos destinos das pulsões pela enunciação de suas formas verbais. Se quisermos falar de subversão em psicanálise, talvez fosse melhor tomála pelo aspecto linguístico dos avatares pulsionais, isto é, naquilo que Lacan destacará como o manejo efetivo de uma gramática.

Eis então uma primeira questão dirigida ao livro: o conceito de pulsão tal como definido por Freud em 1915, situado entre o anímico e o somático e determinado pelo lado biológico da vida e da alma, seria tão subversivo quanto G. Pommier afirma? Ou não é, de fato, este posicionamento biológico da pulsão que convém às neurociências para que demonstrem a psicanálise?

Se o livro de G. Pommier sustenta que a dimensão linguageira da pulsão contribui com algo, ele abandona a articulação que me parece indispensável para tratar da questão - o que Lacan desenvolve sobre a "causalidade psíquica".

 

AS QUESTÕES DE 1946 SE APROXIMAM DAS ATUAIS

Desde 1946, em "Formulações sobre a causalidade psíquica", que Lacan discute a questão do orgânico e do psíquico. Sua crítica de uma teoria organicista da loucura, que debate com o organodinamismo de Henri Ey, ainda hoje me parece pertinente para orientar as discussões atuais sobre uma eventual relação das neurociências com a psicanálise:

Com todo o rigor, o organodinamismo de Henri Ey inclui-se validamente nesta doutrina [o organicismo], pelo simples fato de que ele não pode remeter a gênese da perturbação mental como tal - seja ela funcional ou lesional em sua natureza, global ou parcial em sua manifestação e tão dinâmico quanto o suponhamos em seu móbil - a nada além do funcionamento dos aparelhos constituídos na extensão interna ao tegumento do corpo. O ponto crucial, do meu ponto de vista, é que este funcionamento, por mais energético e integrador que o concebamos, continua a repousar, em última análise, sobre uma interação molecular dentro da modalidade de extensão "partes extra partes" em que se constrói a física clássica, ou seja, na modalidade que permite exprimir essa interação sob a forma de uma relação entre função e variável, a qual constitui seu determinismo (Lacan, [1946] 1998: 152).

Estavam colocadas as questões do espaço construído pela ciência moderna e a de sua distinção entre objetivo e subjetivo: onde ficaria então a loucura? Lacan propõe, então, definir a causalidade psíquica a partir do conceito de imago; a aposta da época era deslocar uma causalidade orgânica para uma causalidade material não orgânica (a psicologia concreta). A imago deveria ser distinguida do Eu freudiano identificado pelos organodinamistas à síntese das funções de relações do organismo. Lacan havia julgado esta concepção bastarda, pois define uma síntese subjetiva em termos objetivos. Ele fez esta observação que expressa tanto seu ponto de vista sobre Freud quanto sobre seu próprio caminho futuro (com o estruturalismo e a linguística):

Será possível censurá-lo (a Henri Ey pela concepção bastarda) quando o preconceito paralelista é tão forte que o próprio Freud, contrariando todo o movimento de sua investigação, permaneceu prisioneiro dele, e quando, aliás, atentar contra ele em sua época teria talvez significado se excluir da comunicabilidade científica? Sabemos, com efeito, que Freud identifica o Eu com o "sistema percepção-consciência", que constitui a soma dos aparelhos pelos quais o organismo se adapta ao "princípio de realidade" (Lacan, [1946] 1966: 178).

Lacan apontava, então, a função da imago, sua qualidade areflexiva:

a mais ínfima ilusão visual patenteia que ela se impõe à experiência antes que a observação da figura, parte por parte, a corrija; com o que se objetiva a forma chamada de real. Mesmo que a reflexão nos faça reconhecer nessa forma a categoria a priori da extensão, cuja propriedade é justamente de se apresentar "partes extra partes", ainda assim é a própria ilusão que nos dá a ação de Gestalt que é o objeto próprio da psicologia (Lacan, [1946] 1966: 178).

Para Lacan, a questão para a psicanálise não seria tanto a de repudiar o "corpo", repudiar o "físico", mas a de não ancorar sua causalidade no orgânico e no espaço da racionalidade cientificista. Será necessário dizer como Lacan situou o "mental": ele impôs como premissa teórica uma torção no conceito de aparelho psíquico freudiano, ressaltando seu efeito paradoxal sobre as relações entre psicanálise e behaviorismo/neurociências.

Antes de qualquer coisa, é necessário relembrar o liame entre a teoria de Pavlov, o behaviorismo, e as neurociências. O esquecimento, quer seja proposital ou por ignorância, do fundamento da concepção do postulado pavloviano é paralelo ao seu projeto de naturalização. Não é sem algumas reticências que o behaviorismo é algumas vezes evocado pelos teóricos da mente das neurociências e de suas derivações cognitivas; pois, de fato, é no parêntese entre o estímulo e a resposta da teoria S-R, esvaziada pelo behaviorismo do "mental" ou do "espírito" (a famosa caixa preta), que elas se situam.

Daniel Andler observou, na conclusão de um trabalho coletivo: "Como seu antecessor imediato, o behaviorismo, a psicologia cognitiva tem por obrigação e pedra de toque a capacidade de se aplicar tanto ao animal 'não-humano' quanto ao homem" (Andler, 2004: 638).

Man Sperber, em sua própria contribuição, resumia: "A 'revolução cognitiva' possibilitada pelo desenvolvimento da lógica matemática foi efetivada essencialmente por 'decepcionados com o behaviorismo'. Ela terá consistido em reintroduzir na psicologia o estudo dos fenômenos mentais e se impor, ao mesmo tempo, as limitações de um materialismo levado a sério" (em Andler, 2004: 638).

A ligação entre neurociências e cognitivismo se comprova: em trabalhos sobre a memória, Eric Kandel reconhece que o modelo de inscrição da experiência no sistema nervoso proposto por ele é, em parte, pavloviano (Laurent, 2008a: 30).

Por que misturar a psicanálise a estes campos científicos? Qual seria a vantagem? Esta é a segunda questão que dirigimos ao livro de G. Pommier: existe um interesse epistemológico para a psicanálise, ela se beneficiaria dessa associação? Ou haveria interesses locais em tomar o partido das neurociências e dissociá-las do cognitivismo, como tenta Pommier? Para ele, o cognitivismo busca demonstrar, com apoio da neurociência, que o cérebro é um computador. Entretanto, afirma em seguida que as neurociências refutam tal ideia.

Será que o orgânico do sistema nervoso central das neurociências e sua concepção da cognição seriam invocados por G. Pommier porque permitiriam fundar cientificamente uma psicanálise que, sem isso, seria "espiritualista", já que os sintomas, os ditos espirituosos ou a neurose não são passíveis de demonstração experimental?

Existe um alinhamento de G. Pommier com o projeto atual de Lionel Naccache (2006), por exemplo, que é uma espécie de retomada do projeto concebido por Watson, que se confrontava em tudo com Freud: "Todos os absurdos escritos pelos freudianos sobre o humor e o riso nada são além de maços de palha que serão varridos pelos fatos trazidos pela observação e a experimentação" (Watson, [1925] 1972: 100). Presa desta dicotomia corpo/espírito, a psicanálise era efetivamente desacreditada frente aos programas comportamentalistas apresentados:

[...] se o "espírito" age sobre o corpo, então todas as leis da física são inúteis. A inocência nos domínios da física e da metafísica dos psicopatologistas e psicanalistas se traduz nas seguintes expressões: "Este processo consciente inibe esta ou aquela forma de comportamento", "o desejo inconsciente nos impede de fazer isso ou aquilo". A confusão atual nos foi legada por Freud [...]. Entretanto, uma análise fundada nos princípios behavioristas existe, e é uma profissão necessária na sociedade. Por análise, eu quero dizer um estudo transversal da personalidade. Isto seria o equivalente a um diagnóstico. Associado a um descondicionamento e em seguida a um condicionamento, constituiria o aspecto curativo (Watson, [1925] 1972: 200-201).

Watson achava inadmissível a hipótese de que o espírito agiria sobre o corpo, porque ela determinaria, assim, a inutilidade de todas as leis físicas. Essa premissa é a mesma que sustenta a psicanálise, salvaguardando-se o que se entende como "espírito". Eficácia simbólica, desde que se reconheça que este "espírito" é, para a psicanálise, um efeito simbólico da materialidade do significante.

No que tange às leis físicas, Lacan comentaria a respeito de Watson: "cremos poder designar na imago o objeto próprio da psicologia, exatamente da mesma forma que a noção galileana do ponto material inerte fundou a física" (Lacan, 1946/1998: 189). Contudo, atenção! A imago lhe parece "correlata a um espaço não extenso, isto é, indivisível" (Lacan, [1946] 1966: 188).

A ênfase dada à Física se encerra na experiência analítica, na qual as leis físicas são inúteis: Lacan ressalta que a diz-mensão não é da ordem da dimensão e sim do dito. O que, visto de relance, pode parecer um jogo de palavras revela o fundamento de seu ensino: enquanto o discurso científico construiu o espaço clássico, o espaço da ciência moderna, Lacan pretende construir o espaço da discursividade propriamente dita, que não é da ordem da extensão (partes extra partes), mas que constituirá um "trans-espaço", efeito da pura articulação significante, aquela da topologia moebiana.

Sem estas primeiras e básicas distinções, o confronto entre a dupla neurociências/psicanálise vai para o campo das analogias, das "sinonímias". É necessário notar que o problema não é tão simples. Esta dupla prolifera em diferentes modos nos trabalhos, publicações e colóquios contemporâneos. O duo plasticidade cerebral/inconsciente aparece sob a forma de analogia explícita em Les nouveaux blessés (Malabou, 2007), obra que introduzo termo"cerebralidade", palavra esta necessária para a construção analógica sobre a qual será baseado todo o raciocínio do autor. Em À chacun son cerveaux (Ansermet e Magistretti, 2004) podemos observar a analogia implícita entre traço psíquico e rastro sináptico.

É possível perceber em todos estes trabalhos o mesmo embasamento na neurologia, à espera de uma ciência. Para estes autores, Freud, ao abandonar a referência à neurologia, teria perdido o trem da cientificidade tendo "sua teoria" se tornado obsoleta pelo progresso. Freud teria se limitado a sobreviver apenas como intérprete, doador de sentido, em suma, um religioso.

Naccache conclui pela existência de uma divisão de territórios: a metapsicologia de Freud não se sustentaria mais, pois as neurociências teriam demonstrado que o que Freud descobrira não era o inconsciente, mas o consciente. O que restaria então à psicanálise?

O que podemos isolar pela epoché da psicanálise uma vez que não consideramos mais o conjunto das teorizações freudianas? O que se nos oferece, em sua nua verdade, é a postura do psicanalista, sua postura de sujeito consciente que interpreta o mental, que busca incessantemente procurar e construir significações e uma causalidade em tudo o que provém da vida psíquica de seu paciente, dele mesmo e mais largamente de todo ser humano (Naccache, 2006: 376-377).

É possível ter maior sensibilidade e algumas vezes concordar com os ataques que Naccache faz à concepção do inconsciente freudiano tal qual ele o representa, e que, é necessário dizer, é a de uma vulgata, isto é, uma expansão do termo "inconsciente" do qual Lacan já havia denunciado o abuso que se fazia em 1946: "[...] espero que logo se renuncie a usar a palavra inconsciente para designar aquilo que se manifesta na consciência" (Lacan, [1946] 1966: 183). Esta afirmativa pontual não determina que se renuncie a dar conta da experiência analítica, nem tampouco que venhamos a aderir a esta forma de interpretação que é a da "teoria do espírito", isto é, a do desconhecimento ou da paranoia comum, chamada ainda de "psicologia ingênua".

No momento em que Naccache parece estar prestes a captar a diferença entre o inconsciente/vulgata e o inconsciente freudiano (Unbewusst), ele nos afirma que o sujeito modela e esculpe, a sua própria revelia, processos inconscientes, aplicando-lhes as consequências de sua postura consciente. Seria bom avisá-lo de que o analista não interpreta "o mental" como ele diz, mas o "mental" que surge no discurso em análise; que a interpretação só se demonstra pelos seus efeitos e que ela segue o ritmo do chiste. Logo, o esforço despendido pelos psicanalistas, quando eles se colocam em posições semelhantes à do neurologista, é vão.

 

PAVLOV EM LÍNGUA LACANIANA

Parece, então, necessário retornar a uma das fontes daquilo que cria a confusão: os postulados da reflexologia, base do comportamentalismo, e depois das neurociências. "Podemos incluir todos os nossos problemas psicológicos e suas soluções nos termos estímulo e resposta [...]. O fisiologista russo Ivan Pavlov e seus alunos são os principais responsáveis por este trabalho [sobre os reflexos ditos condicionados, ou de associação, ou psíquicos]" (Watson, [1925] 1972: 27). Para o que se passa à distância, sem contato, e que chamávamos de psíquico na antiga cosmologia, Pavlov preferiu um nome moderno: reflexo condicionado, o que designa a interação de muitas condições que influenciam, sem contato direto, o resultado de uma ação ou experiência. Lacan, reconhecendo, no Seminário O ato psicanalítico o rigor das experiências de Pavlov, aponta seus fundamentos:

Afinal, o que são os reflexos condicionados? [...] A existência dos reflexos condicionados repousa na intervenção do significante num ciclo mais ou menos predeterminado, inato, de comportamentos instintivos. Todos aqueles sinaizinhos elétricos, aquelas pequenas campainhas, aquelas sinetas [...] são justamente significantes e nada mais. São fabricados unicamente pelo experimentador, que é quem os aciona: ele se apoia sobre um botão ou sopra num trompete (Lacan, 1967-1968).

Pavlov, o experimentador, manejava bem os significantes pela experiência do reflexo condicionado - pois não se trata, absolutamente, de associar um símbolo a uma coisa. Segundo Lacan, trata-se de associar um significante que é característico de toda condição de experiência no ato de sua instituição com o corte que se pode fazer na organização orgânica de uma necessidade - este algo que se designa por uma manifestação no nível de um ciclo de necessidades interrompidas e que designa, na experiência pavloviana, o que encontramos aqui sob a forma de corte do desejo.

Constrói-se um dispositivo que irrompe dentro do ciclo "natural" do dito estímulo e lhe confere sua dimensão significante. Foi em 1967, no Seminário O ato psicanalítico, buscando distinguir a motricidade, como polo de resposta na montagem neurofisiológica do arco reflexo, do ato do dispositivo discursivo da cura, que Lacan tirou conclusões de sua releitura das experiências pavlovianas. Para que seja reconhecida a dimensão linguageira, para que seja reconhecido o fato de que o experimentador e o experimento estão dentro da linguagem, é necessário, segundo ele, admitir duas coisas.

A primeira é a presença do desejo, no caso o de Pavlov de ir contra o idealismo, o espiritualismo, a favor do materialismo. Este desejo é elidido na experimentação, e é precisamente esta elisão que faz sua consistência e seu caráter científico. O verdadeiro sujeito da experiência não é o testado, aponta Lacan, mas o próprio cientista, dividido pela ciência. De fato, o cientista ignora que, ao manipular o gozo do experimento pelo uso direto do significante, ele mesmo sofre a ação da estrutura da linguagem da qual ele se acredita mestre - le non dupe, desconhecimento este que faz a "objetividade" da ciência. A segunda coisa a reconhecer, outra face da primeira, é o engodo: para Pavlov, tratava-se de fundar a apropriação, dominação do organismo vivo, por qualquer coisa que não fosse uma estimulação adequada à necessidade. Esta estimulação inadequada, que nos interessa nesse caso, "trata-se de fundamentá-la em algo que só se conota no campo da percepção, pelo fato de ser verdadeiramente destacado de qualquer objeto de gozo real" (Lacan, 1967-1968). Uma nota de trompete não tem um grama de carne e, entretanto, faz salivar! Lacan conclui, pela maneira "extraordinariamente correta" que teve Pavlov de operar, que ele se revela um estruturalista: "No início de sua experiência ele é estruturalista precursor do estruturalismo da mais fiel observância, a saber, da observância lacaniana, uma vez que precisamente aquilo que ele lá demonstra, o que ele pressupõe como implicado é, precisamente, o que o significante faz, a saber, que o significante é o que representa o sujeito para um outro significante" (Lacan, 1967-1968: 15/11/1967), contudo ao preço de um engodo, de uma substituição. Lacan captava aí a relação direta que o reflexo condicionado permite estabelecer entre o real do corpo, o gozo e o significante como tal, ou seja, a eficácia da operação significante.

Toda a experimentação pavloviana não teria verdadeiramente nenhum interesse, se não se tratasse de edificar a possibilidade essencial da tomada de algo que é exatamente, e que não se pode definir senão como efeito de significante sobre um campo que é o campo vivo. O que não tem outra repercussão, quero dizer, repercussão teórica, senão permitir conceber que, ali onde está a linguagem, não há nenhuma necessidade de procurar referência em uma entidade espiritual (Lacan, 1967-1968: 15/11/1967).

Para Lacan, entidades como "espírito" ou "mental", "psíquico" substantivados entre S-R (estímulo-resposta) são supérfluas. Estaria Lacan concordando com Watson, ao negá-las? O conforto de uma oposição consolidada ou de um amálgama entre neurociências e psicanálise é perturbado por Lacan: o significante lacaniano modifica os dados, redistribui as cartas freudianas, as desloca de onde são colocadas habitualmente, entre estímulo e resposta, ou como suporte dos significantes.

 

SEM FREUDO-LACANISMOS

As hipóteses freudianas sobre o "aparelho psíquico" nascido na sombra do "Projeto" (Freud, 1950 [1985] 1974) enviado a Fliess em carta de 8 de outubro de 1895, apesar de algumas modificações necessárias devido ao abandono do fisiológico, reaparecerão em certos escritos posteriores, tais como: "Além do princípio de prazer" (1920) e "O eu e o isso" (1922). Algumas delas se situarão entre os elementos permanentes das hipóteses psicanalíticas.

Lacan constatou que certo número de construções mentais se funda na experiência e tenta utilizar o modelo de estímulo e resposta, considerado como o mais elementar. Existe uma persistência na psicanálise em se recorrer ao arco reflexo, à teoria fisiologizante, sendo inclusive a técnica psicanalítica a menos apropriada para isso, pois implica uma outra dimensão, a linguageira. Estas construções mentais, o psíquico, pelo lado de uma psicanálise dita freudiana, e o mentalismo da teoria do espírito das neurociências se confundem e se confortam hoje em uma "neuropsicanálise", muito simplesmente...

Em suma, a experiência pavloviana serve de apoio a Lacan no debate atual contra certo freudismo propagado pela IPA. Apoiandose no trabalho linguageiro freudiano, a experimentação pavloviana serve a ele para eliminar as referências biológica e fisiológica presentes no nascimento da psicanálise. Pois, ao se referir ao linguageiro, não elimina o corpo, mas elimina o mental como entidade fixa ou construída: um "espírito", um "mental", um "psíquico". Para a psicanálise, o "espírito", não sabido, é de fato produzido, revelado; efêmero, ele advém.

Temos aqui a separação mais nítida entre Freud e Lacan. Insisto: o empreendimento lacaniano foi separar a psicanálise do modelo fisiologizante que mantinha o conceito freudiano de pulsão como conceito-limite entre o psíquico e o somático, o que era ainda uma tentativa de dar solução dualista ao problema. Lacan atribuiu o materialismo pavloviano à materialidade do significante, materialidade própria de lalíngua - um motérialisme2, materialidade que produz algo de "espiritual", apesar de si. Esta materialidade, que consiste na escuta dos signos e das letras, não apresenta uma circularidade como para Pavlov, para quem a resposta se torna, por sua vez, um estímulo. De maneira diferente, para Lacan ela sugere um sentido, pois o significante que está no segundo lugar (S2) é sempre ambíguo, equívoco próprio à língua. O espírito, o Witz - dublê de wissen - ,saber outro, vacilante por sobredeterminação, se recusa ao acúmulo, é produzido por um ato (Faktur, fábrica, diziam os românticos alemães para a produção do espírito), dispositivo retomado por Freud em "O chiste e sua relação com o inconsciente" ([1905] 1974). Para a psicanálise, o corte não é entre o corpo e o espírito, mas entre o saber e a "inscrição" no corpo: o que Freud apontou é que não é necessário saber-se o que se sabe para gozar de um saber (Freud, (1925 [1924] 1974)).

A este pensamento se atribuem muitas consequências, sendo a maior conceber que um significante não é uma representação, não vem renomear "pós-modernamente" a representação dita mental entre estímulo e resposta ou motricidade. O significante é o "estímulo" reconhecido pelo que ele é: um dispositivo de linguagem não linguístico. O que, de imediato, distingue o significante linguístico do significante lacaniano é que este ganha corpo a partir de um precipitado, de um amarrado aleatório e errôneo de escrita/palavra, precipitado que apenas a transferência, a erótica transferencial da experiência analítica, pode fazer advir e revelar.

A bem dizer, nós é que fornecemos o material do significante - é exatamente isso que eu ensino e gasto meu tempo a lhes dizer. É com nossos próprios membros - o imaginário, é isso - que fazemos o alfabeto deste discurso que é inconsciente, e, bem entendido, cada um nas suas diversas relações, pois nós não nos servimos dos mesmos elementos para sermos cercados pelo inconsciente (Lacan, 1958-1959: 18/3/1959).

É importante que se compreenda o impossível retorno da psicanálise a uma referência qualquer à psyché como o "mental", como "realidade", ou "aparelho" psíquico, tal qual ela foi construída pelo freudismo. Eis então o eixo, ou melhor, a bobagem à qual permanece agarrado o problema psicanálise/neurociências. Se a teoria analítica exclui o mental, a realidade psíquica ou ainda a representação da ligação S→R transformada por Lacan em uma metonímica cadeia significante (Sa→Sa) devido à "associação livre" do analisando, a psicanálise não rivaliza com aquilo que as neurociências descobrem do chamado mental e de seu funcionamento, não é necessário que ela seja complementada pelas neurociências. A psicanálise não exclui os aportes das neurociências enquanto conhecimentos eventualmente afins ao campo freudiano, mas como distintos dele, inaplicáveis a ele.

Assegurada a disparidade destes dois campos, a incompatibilidade de os amalgamarmos em uma mesma experiência marcada pela "causalidade psíquica", lerei de maneira crítica as propostas de G. Pommier. Devo ainda precisar que uso a expressão "causalidade psíquica" em sentido restrito, apesar do que pudesse ser inferido da seguinte afirmação de Lacan, anterior ao Seminário O ato psicanalítico:

O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito, por este efeito, ele não é causa dele mesmo, ele traz em si o germe da causa que o cinde. Pois sua causa é o significante, sem o qual não haveria nenhum sujeito no real. Mas este sujeito é o que o significante representa e ele não pode representar nada senão para outro significante: ao qual que se reduz, por conseguinte, o sujeito que o escuta (Lacan, [1960] 1966: 849).

Tudo isso tem o objetivo de prevenir uma eventual conclusão apressada, ou seja, que o dispositivo pavloviano transmutado em dispositivo significante implicaria uma mecânica "causalidade significante". Este movimento, que me parece ser o de certas reflexões atuais a respeito do autismo, passa do registro orgânico ao registro linguageiro por meio da noção de "rastros"3. Esta passagem se apoia essencialmente na "Carta 52" de Freud, ela mesma - apesar de Freud ter-lhe aposto modificações ditadas pela sua nova teoria da memória - presa em suas concepções neurofisiológicas da linguagem, cuja ideia principal data do final do século XIX e início do século XX. A linguagem teria dois níveis: o primeiro seria o das sensações ou imagens, rastros ou traços sobre o tecido neuronal que se associariam entre si, e um segundo nível que seria a abstração, a formalização deste nível de linguagem propriamente humano. Para Pavlov, por exemplo, sonhos e crises de histeria eram uma regressão do segundo para o primeiro nível (Pavlov, [1932] 1961: 306-307).

O processo primário (de prazer) e secundário (de realidade) freudiano são relicários desta concepção dicotômica que Lacan começa a abolir propondo um duplo entrecruzamento em a Ética da psicanálise.

De fato, com o significante não se trata de um dispositivo de linguagem em dois níveis, nem de um dispositivo de causa a efeito, mas de um dispositivo que produz a causa (a), ao mesmo tempo que revela em eclipse o sujeito dividido do desejo; em outros termos, de um dispositivo que faz aparecer, no efeito, a lógica de sua própria causa.

 

RETORNO AO LIVRO

As propostas do livro de Gerard Pommier trazem algo de novo para reabrir este antigo debate? Por que G. Pommier entrou neste debate das neurociências com a psicanálise? Cinquenta anos após o veredicto de Lacan sobre a falaciosa e enganadora síntese da psicanálise com a biologia, a criação de uma biopsicogênese terá sido mobilizada pelos progressos das neurociências ou pelas transformações da psicanálise? Julguemos então: G. Pommier afirma que serão trazidos também elementos que demonstram que a pulsão é recalcada pela palavra, segundo um circuito cuja pista podemos seguir do hemisfério direito ao hemisfério esquerdo do cérebro. Afirma também que o sonho encena o desejo, estimula o sistema nervoso e o seu crescimento. Em seguida infere que possivelmente tais manifestações fisiológicas traduziriam um problema entre a pulsão e sua simbolização no nível das conexões entre os hemisférios; ou ainda, que o córtex pré-frontal traduz em uma dimensão orgânica a função de integração psíquica do narcisismo, isto é, a subjetivação do eu reflexivo.

Urge alguma providência quanto a isso? A reedição relativamente recente deste livro de bolso testemunha que sim. Existe uma urgência em rebater os conceitos de "orgânico" e "psíquico" em um momento em que as neurociências e a ideologia das neurociências predominam não só no sistema da saúde dita mental, mas sobre a própria concepção da loucura. Por exemplo, a questão do autismo - que foi o que me motivou a leitura do livro - é apresentada como uma entidade (uma psicopatia autista) toda perpetrada pela genética e pela neurofisiologia, implicando a produção de uma nova distribuição das cartas. Existe a fabricação de uma espécie de homo psicanaliticus, ou seja, uma generalização extra-analítica concebível pelos neurocientistas e compatível com suas hipóteses.

Existe aí algum cálculo político? Quem sabe, a necessidade de fazer aliança com o científico para atuar nos movimentos de oposição internos ao campo freudiano? Segundo Pommier, as neurociências obrigam os psicanalistas a escolherem seu campo de trabalho, pois acredita que alguns deles renunciaram à natureza científica de sua disciplina, preferindo se deliciar no amor de transferência e nas certezas de uma seita. Desenha-se no horizonte um grande debate, pois o que parece estar em questão é interrogar se é científico regrar a cientificidade de uma disciplina pela cientificidade da outra. Lacan se colocou de forma diversa neste debate em 1965:

Colocar a questão do objeto da ciência é retomar a questão [...] da posição da psicanálise dentro ou fora da ciência, [...] esta questão não pode ser resolvida, sem dúvida, sem que se modifique a questão do objeto na ciência como tal. O objeto da psicanálise [...] não é outro senão aquilo que já expus sobre a função que nela desempenha o objeto a. O saber sobre o objeto a seria então a ciência da psicanálise? Essa é precisamente a fórmula que se deve evitar, uma vez que esse objeto a deve ser inserido, já sabemos, na divisão do sujeito pela qual se estrutura [...] o campo psicanalítico. Eis por que era importante promover de início, e como um fato distinto da questão de saber se a psicanálise é uma ciência (se seu campo é científico) - o fato de que sua práxis não implique outro sujeito senão o da ciência (Lacan, [1965] 1966: 863).

Fiz questão de citar esta passagem que avança contra a questão principal do livro de G. Pommier: qual foi a psicanálise escolhida por ele? A de uma ciência que teria constituído seu objeto - o mental, o psíquico? Ou então aquela cuja experiência repousa sobre o sujeito da ciência, sujeito cuja divisão pelo significante contém o objeto (a)? Enfim, por uma inversão sutil já mencionada e secreta, essa é a tentativa de um psicanalista não de demonstrar a psicanálise pelas neurociências, mas de dar razão às neurociências às custas da psicanálise. Para Pommier, as neurociências demonstram a existência do processo psicanalítico, contudo elas não têm como integrá-lo, pois lhes faltam os conceitos necessários para isso, que não pertencem a seu campo ou à sua experiência.

Do porquê do livro posso apenas presumir... Do como, é nisso que estou trabalhando neste momento, pois o cerne da questão que as neurociências apresentam à psicanálise impôs a elas uma restrição: a escolha de certa psicanálise e suas consequências. Para fazer face à concepção do "homem-máquina", expressão já consagrada, ou, mais modernamente, do "homem neuronal", assim definido pelas neurociências, Pommier precisa dispor de uma teoria da psicanálise que não seja forte e local, mas ampla a ponto de se tornar uma antropologia, um discurso sobre o homem e sua construção do mundo. Isso depois que a concepção de um homo psicanaliticus caiu por terra ante a radicalidade do golpe desferido por Freud em sua crítica de uma psicanálise tomada como Weltanschauung, como concepção do mundo: esse pan-psicanalismo poderia arruinar a psicanálise.

 

BASE BIOLÓGICA DO OUTRO

A escolha de certa psicanálise fundada sobre o "aparelho psíquico", renomeado aqui de "corpo psíquico", é em parte necessária, pois ela parte, inicialmente, de uma característica do sistema nervoso central do homem: "a sobrematuração neurológica". Esta expressão designa as "assembleias de neurônios" disponíveis no nascimento que excedem em muito as que serão utilizadas pelo organismo. Entretanto, segundo Pommier, por ser "orgânico", este excesso de neurônios não corresponde às futuras funções orgânicas: ele aguarda o que, vindo de fora, irá ativá-lo. A superpopulação de neurônios pede uma ligação com o exterior, sem a qual se fragilizaria. A linguagem é o que vem atualizar este excesso quantitativo.

Pommier refere-se à linguagem como fato objetivo: a linguagem é que atualizaria este excesso, realizando conexões sinápticas. Partiria dai a importância do córtex humano e das associações pelas células piramidais, antigamente chamadas de "células psíquicas". Assim, não apenas haveria o psiquismo das representações de coisas alternando-se com as representações de palavras da linguagem como este psiquismo teria sua localização no neocórtex.

Na página 87, o autor afirma que a imageria médica visualiza os caracteres cinéticos da neurofisiologia que corroboram o recobrimento da área orgânica pelo corpo psíquico. A prova disso é dada pelas técnicas de cura das dores nos membros fantasmas por V. Ramachandran. Aqui, o imaginário, a imagem do corpo, amarrado ao real e ao simbólico, que estaria operante nesse aspecto, teria sido ultrapassado, descartado, cedendo lugar à imagem objetiva das RMI.

G. Pommier acentua a relação da sobrematuração com a prematuração, afirmando que a prematuração é simétrica da sobrematuração, tal como teria formulado Lacan, em 1949, em "o estádio do espelho" (Lacan, 1937 [1936] 1966). Ele esquece, contudo, que Lacan jamais fez disso uma origem, deixando de considerar sua retomada crítica sobre o estádio do espelho. Seria possível que essa fase de insight sobre a constituição do sujeito pudesse ser reduzida a uma crise biológica?

O apoio tomado na base biológica da sobrematuração tem consequências imediatas: 1. a linguagem é exterior a um corpo duplo; 2. um "organismo" e um "corpo psíquico" passam a ser concebidos segundo um paralelismo psicofisiológico modernizado; 3. são retomados os projetos de Fechner ou de James. Estes dois elementos: linguagem e corpo duplo (orgânico e psíquico) receberão, pelo fato deste engajamento, a característica muito científica da objetividade.

O que é este famoso "corpo psíquico" visualizado, observável, chamado ainda "corpo sensorial"? A concepção de Pommier de "corpo psíquico" - corpo pesquisado, cartografado, espacializado - é melhor entendida em sua afirmação de que "os homúnculos das áreas sensíveis e motrizes não se distinguem do corpo psíquico que se esconde nos mesmos espaços" (Pommier, 2007: 87). Não há nada aí de freudiano ou psicanalítico. É pela linguagem que G. Pommier fará entrar na psicanálise - sua psicanálise - uma linguagem que teria efeito sobre a vida e a prosperidade dos neurônios. Eis aqui algumas formulações do autor: o som das palavras possui uma materialidade que tem a mesma eficácia que a atividade tem para um músculo. O sentido dos sons só aparece graças à sintaxe, e esta, ao desenvolvimento dos neurônios. A gramática seria algo imaterial que modela a flexão dos sons, cujo ritmo e fluxo impactam o crescimento dos nervos.

A entrada da perspectiva psicanalítica se faz então pela linguagem, pela relação com o outro, pela demanda dos pais à criança. Para Pommier, a demanda que lhe é feita se apoia sobre suas necessidades e suas sensações de tal maneira que se adiciona ao organismo um "corpo psíquico" que corresponde à demanda dos pais. Positivo ou negativo, este desejo dos pais solicita e aliena constantemente a criança que, para se tornar um sujeito, deve recusar esta demanda além de um determinado limite.

Trata-se, precisamente, da demanda da mãe; demanda determinada pela sua "falta de pênis", falta esta que é, ao mesmo tempo, a divisa entre o organismo e o psíquico.

 

QUAL É A PSICANÁLISE DEMONSTRADA PELAS CIÊNCIAS?

Com este livro, o leitor fica diante de uma questão: uma "psicanálise" com um estranho "significante" que não faz letra e ignora o objeto a não estaria foracluindo o objeto a, cujo retorno seria o orgânico?

Ao longo de quatrocentas páginas, não foi mencionada nenhuma vez, pelo ex-aluno de Lacan, aquilo que este chamava de sua invenção. No lugar disso, um extraordinário exercício binário de se meter entre o cerebral e o psíquico, que passará em revista diversos temas, como o da consciência.

Os temas citados se constroem majoritariamente sobre uma soma de trabalhos e experimentações neurocientíficas e algumas referências filosóficas. De Freud, dezesseis trabalhos ou artigos são citados; de Lacan, três conferências e um seminário. É bem verdade que Lacan resolvera a questão de uma maneira completamente diferente.

Por fim, o que é que G. Pommier conclui desta confrontação? Que as neurociências demonstram a psicanálise apesar delas mesmas? Explico: ao final deste percurso, do qual só podemos admirar a tenacidade em querer fazer com que a psicanálise e as neurociências "colem" explorando todas as analogias possíveis, todas as "adequações" entre o funcionamento do aparelho psíquico descrito pela psicanálise e uma neurofisiologia, Pommier conclui que os limites (previsíveis!) das neurociências se devem ao próprio fato de que seu dispositivo científico exclui a "sexualidade" e a "linguagem". Ou seja, o espaço próprio da psicanálise. É colocando de lado a sexualidade que a ciência estuda a vida como o oposto da morte, que, todavia, lhe é correlata. Pela mesma razão, a importância da linguagem, condição da sexualidade humana e característica mais visível do ser humano, é minimizada. Falar de um esquecimento da sexualidade e da linguagem pela maior parte dos neurocientistas é um eufemismo, pois se trata de uma preliminar sistemática.

Os efeitos da ideologia da ciência são, para ele, mais impressionantes para os não cientistas do que para os pesquisadores. Os "usuários" serão ainda mais permeáveis ao cientificismo, pois aspiram à inocência prometida pela árvore do saber - no contrafluxo da Gênese. A ciência declara que tudo é determinado, tornando-os inocentes. Vou finalizar com esta questão do determinismo na medida em que Pommier, carregado por tais truísmos que não se elevam à dignidade de verdades, fica adstrito a se pendurar nos galhos da árvore freudiana; precisamente naquilo que crê ser seu conceito de "sobredeterminação", mas que pela definição parece ser não um superdeterminismo, mas o seguinte: a sobredeterminação não significa causalidade múltipla, mas sim uma causação que comporta no interior dela mesma sua própria contradição. A causalidade de um sintoma resulta de determinismos contraditórios que, considerados isoladamente, não explicam nada. É por esta razão que não podemos curá-lo com explicações. A liberdade só começa com determinações que sejam tão contraditórias entre elas que obriguem o sujeito a escolher. Esta liberdade forçada e paradoxal do homem reconhece ao mesmo tempo sua alienação.

O problema é que as ditas "ideologias" não produzem só desengajamento, produzem também os compromissos "livres", entre os quais este livro. As determinações tão contraditórias sobre o orgânico dentro do campo freudiano nos levariam a verdadeira e livremente desmontar e transformar a psicanálise em uma neuropsicanálise?

Alguns dirão que não. Pois se a originalidade da psicanálise "é feita dos meios dos quais ela se priva, é que os meios que ela se reserva bastam para constituir um campo cujos limites definem a relatividade de suas operações" (Lacan, [1953] 1998: 257).

 

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Notas

1 Conferir as leituras críticas de Eric Laurent a respeito do que é, às vezes, mais uma aproximação, uma tradução de uma à outra em Lost in cognition, Psychanalyse et sciences cognitives. Usages des neurosciences pour la psychanalyse.

2 Neologismo. Mot (palavra), aqui é condensada com materialisme (materialismo). J. Lacan usa o termo na conferência "Le symptôme" de 4 de outubro de 1975) impressa com o título "Conferencia de Ginebra sobre o sintoma", em Lacan, J. Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1988.

3 Ver, por exemplo, o livro de Henri Rey-Flaud (2008), L'enfant qui s'est arrêté au seuil du langage, Comprendre l'autisme. Paris: Aubier.

 

 

Recebido em maio de 2011
Aceito para publicação em junho de 2011

 

 

Versão: Catarina Coelho dos Santos
Revisão: Cynthia De Paoli

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