SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43 número1Retornar à causalidade psíquica? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.1 Rio de Janeiro jun. 2011

 

RESENHA

 

No reino da fantasia

 

At the phantasy kingdom

 

 

Betty Bernardo Fuks

Psicanalista; Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professora do Programa de Mestrado da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro; Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

 

 

RESENHA DE:

Coutinho Jorge, M. A. (2010). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 288 páginas.

Dizia Mário Quintana que quem escreve poesia resgata um afogado. Ligar este dito à escrita de um livro extremamente didático é a tarefa que me proponho fazer nesta resenha de A clínica da fantasia. No segundo volume de Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan, Marco António Coutinho Jorge, com honestidade intelectual e criatividade conhecidas desde a escrita de Sexo e discurso, mergulha no caldeirão da "bruxa" freudiana - a metapsicologia - para capturar, de modo rigoroso e poético, o lugar da fantasia na teoria. O resultado surpreende: Coutinho eleva a fantasia à categoria de conceito fundamental da psicanálise.

Tudo começa pela fidelidade do autor a Freud. Por isso mesmo, antes de prosseguir, lembro que no âmago da experiência inaugural da psicanálise - a escuta clínica dirigida aos fenômenos designados, então, como realidade puramente ilusória: a loucura, o sonho, as fantasias, as crenças e os mitos - reside o futuro da disciplina freudiana. Sabe-se que durante a escrita de "A interpretação dos sonhos" Freud se apropriou do discurso de Polônio sobre a loucura de Hamlet - "Há um método na loucura" - para destacar a dimensão de verdade dos acontecimentos psíquicos marginalizados pela ciência positivista como mero erro de sentido. Coutinho entra no terreno da fantasia apresentando o grande embate em jogo nos "Três ensaios sobre a sexualidade", o da oposição entre normal e patológico, para demonstrar de que modo Freud, munido de ferramentas conceituais - o inconsciente e a pulsão -, traz a homossexualidade e a perversão para o campo da normalidade e amplia a concepção de sexualidade. Este giro, que terminou desconstruindo o mito da complementaridade sexual, é reconhecido pelo autor como sendo a primeira subversão freudiana. A partir daí estabelece a noção de fantasia como ponto de articulação entre, justamente, a pulsão e o inconsciente.

Além da lealdade à letra de Freud, Coutinho se mostra extremamente fiel aos passos dados por Lacan na formalização do estatuto da fantasia na teoria. Já na introdução do livro, o leitor se depara com a tematização da diferença entre real e realidade, logo antes de o autor afirmar que a fantasia tem a função mediadora do encontro do sujeito com o real. Na trilha do sintagma com o qual Lacan especifica o estatuto da fantasia - "janela para o real" -, define este conceito como tela protetora que faz possível o contato do sujeito com o "laço social - o outro, o semelhante e o mundo a nossa volta". O esforço de rastrear e estudar uma vasta bibliografia levou Coutinho a ultrapassar o conhecido e enunciar algo extremamente novo sobre o tema. Depois de isolar nas Obras completas um segmento nunca antes ressaltado, que chamou de "ciclo da fantasia", situou-o entre dois outros momentos importantes dos escritos freudianos: o "ciclo do inconsciente" e o "ciclo da técnica". Trata-se de três etapas da construção da teoria psicanalítica ordenadas cronologicamente, entre 1900 e 1915, e centradas em questões vitais para a clínica psicanalítica. Sem dúvida, este é um dos pontos mais importantes do livro, uma novidade que facilita a apreensão de um conceito extremamente importante.

Por que Freud se submeteu à autoridade do poeta? Por que Lacan afiançava que poetas e escritores desbravam o caminho para o psicanalista? O que o poético - contos, novelas, filmes, enfim, a produção artística - tem a dizer sobre a figura psicanalítica da fantasia? Essas perguntas, aparentemente simples, são o próprio questionamento que move grande parte do trabalho de Coutinho. Para encontrar a resposta foi preciso seguir ao pé da letra as diretrizes freudianas sobre a relação do poeta com o fantasiar e deixar-se levar pelas mais variadas criações nas quais encontrou vestígios de fantasias plenas de desejo. No meu entender, o pendor da psicanálise ao discurso científico e ao discurso poético reverbera em A clínica da fantasia: a metapsicologia, as letras do aparelho psíquico freudiano, os matemas lacanianos, o nó entre real, simbólico e imaginário e outros esquemas e diagramas que o próprio autor constrói ao longo do texto convivem lado a lado com a intensidade pulsional dos romances desenrolados na clínica da transferência - e com a capacidade do escritor, poeta e artista de criar representações de modo a dizer do real que nós, de outra forma, não poderíamos discernir.

Um trabalho deste porte não poderia ser realizado sem que Coutinho tivesse se disposto a depor suas armas. Na contracorrente daqueles que insistem em aplicar conceitos psicanalíticos à obra de arte, colheu elementos bastante significativos de algumas produções artísticas e deles pôde se servir como exemplo ilustrativo da efetividade de uma teoria. Neste processo, nosso autor não apenas testemunha estar submetido ao poder dos poetas, aqueles que conhecem, segundo Freud, muito mais coisas que a sabedoria escolar possa imaginar, como contribui para estreitar o vinculo indelével da psicanálise com o fazer poético e a criação artística.

Quem tem medo da pulsão de morte? Há algo de assustador na afirmação lacaniana de que toda a pulsão é pulsão de morte, afirma Coutinho. Mas em um dos segmentos da segunda parte de seu livro - Fantasia e pulsão de morte - a leitura que apresenta de "Além do princípio de Prazer" impressiona: sustenta que o próprio Freud dá a entender que no "fundo toda a pulsão é de morte", na medida em que ela visa "quiescência do mundo orgânico". Para tal conceito fantasmagórico, cuja destinação pode ser, inclusive, a mais maldita repetição, o autor expõe um diagrama de esquemas mínimos e precisos das noções de Coisa e de Gozo, sem as quais não haveria como apreender os destinos da pulsão, principalmente no que diz respeito ao masoquismo e ao sadismo. A análise de O exterminador do futuro, de James Cameron, ilustra o esquema minimalista, construído pelo autor, da função mediadora da fantasia entre o princípio do prazer e seu além.

A pulsão de morte só sobrevive amalgamada ao erótico. E talvez por isto mesmo, no segmento "Amor e morte", Coutinho tenha optado por sustentar que o discurso poético é um discurso sobre o amor. Se o amor é o que vem em suplência à relação sexual, conforme os aportes de Lacan à teoria psicanalítica, não foi nada difícil para Coutinho parafrasear este mestre e dizer que o "amor é, também - e, talvez, sobretudo, aquilo que vem em suplência à inexistência", isto é, à morte. Eis, então, a face da pulsão de morte "criacionista" do trabalho de Coutinho: re-começa a falar de amor para renovar, com insistência, a convicção de que a psicanálise é uma ciência da alma que tem como objetivo a tarefa de erguer barreiras contra a face destruidora e cruel da pulsão de morte, mesmo sabendo da impossibilidade de extingui-la. Resta reconhecer que a face criacionista da pulsão de morte é este processo virulento e apaixonado de dar acesso à linguagem e à criação.

Inconsciente ou consciente, imaginária ou simbólica, a fantasia é, como o sonho, uma via de acesso ao real, "a manifestação mais palpável ao psiquismo da insatisfação inerente à própria pulsão". Este seria o motivo pelo qual, observa Coutinho, Lacan concebia o tratamento analítico como uma travessia da fantasia - aquela em que o sujeito mantém seu desejo aprisionado. Assim figurado, a função do discurso analítico não poderia ser outra que não a de despertar o sujeito para uma região além da linguagem, de todos os sentidos, lá onde se pode extrair um novo dizer sobre o dito. O que penso interessante marcar neste momento é o fato de que na terceira parte - Despertar - o autor encerra o segundo volume de Fundamentos da psicanálise em absoluta consonância com o subtítulo do primeiro - As bases conceituais -, cujo rigor teórico ecoa, em especial, na capacidade de Coutinho de extrair das Obras completas, em base a uma rigorosa articulação histórico-cultural, uma série de despertares de sentido promovida por Freud.

Há vários ensinamentos clínicos e teóricos importantes em A clínica da fantasia, assim como referências generosas a muitos autores brasileiros, o que é raro na produção de escritos nacionais. Mas o lugar que coube à escrita de Clarice Lispector neste livro é realmente especial. Através dela, temos acesso a um exemplo contundente do que parece estar em jogo no cerne da práxis do despertar: possibilitar ao sujeito transcender a própria subjetividade e inventar uma verdade. A escolha da obra de uma escritora enigmática e misteriosa que não se curvava a nenhum a priori coube como uma luva para sustentar a tese final de um livro que, por sua vez, escora a vinculação estreita entre psicanálise e arte. Por isto mesmo, não poderia terminar esta resenha sem aplicar o que aprendi com o autor a ele próprio: a escrita de Coutinho testemunha o despertar de sentido promovido por um analista que se responsabiliza pela transmissão do legado de Freud.

Creative Commons License