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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

O supereu entre o amor e o gozo

 

Superego between love and jouissance

 

 

Adelina Lima FreitasI; Ana Maria RudgeII

IMembro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID) e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
IIMembro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), Professora Associada do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Pesquisadora do CNPq, Pesquisadora e Membro Fundador da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental

 

 


RESUMO

O texto aborda a relação entre supereu, amor e gozo. A proposta freudiana de herança do Édipo coloca em destaque a renúncia à satisfação pulsional por amor ao pai. Freud descreve as manobras do sujeito para garantir o amor do supereu, estratégias que nem sempre são bem-sucedidas. Lacan, a partir de um determinado momento, distancia-se da proposta freudiana na vertente de referência ao pai da lei e propõe o mandato "goza!" como o verdadeiro imperativo superegoico. Identifica entre os efeitos decorrentes do declínio da imago paterna o surgimento de líderes autoritários que favorecem a vivência de devastação do sujeito pela submissão ao Outro que incita à busca incessante de satisfação absoluta.

Palavras-chave: supereu; amor; gozo; relação com líder.


ABSTRACT

The text approaches the relationship among superego, love and jouissance. The Freudian proposal of Oedipal inheritance puts in prominence the renouncement to drive satisfaction for the love to the father. Freud describes the subject's maneuvers to guarantee the love of the superego, strategies that are not always successful. Lacan, from a certain moment on, abandons the Freudian proposal in relation to the father of the law and proposes the mandate "enjoy!" as the true superego imperative. He identifies among the current effects of the decline of the paternal imago, the rise of authoritarian leaders that favors the experience of the devastation of the subject for his submission to the Other who orders the incessant search for absolute satisfaction.

Keywords: superego; love; jouissance; leader.


 

 

INTRODUÇÃO

A relação do amor com o supereu em Freud e Lacan levanta muitas questões. Embora seja um conceito formulado no texto "O ego e o id" (Freud, 1923/1974), o supereu apresenta antecedentes em sua definição que remontam ao início da psicanálise, com as indagações acerca da moralidade e seus efeitos, passando pela discussão sobre os ideais até chegar à formulação da segunda tópica, alçado à categoria de instância psíquica, juntamente com o eu e o isso. Centrado, inicialmente, no declínio do complexo de Édipo, o supereu é seu herdeiro, como afirma Freud neste período, articulado ao estabelecimento da lei. Ao final do processo edípico haveria uma transformação dos investimentos eróticos nas figuras parentais em identificações, relacionadas à introjeção das insígnias paternas, que abrem caminho para a assunção de uma posição sexual. Acrescente-se a este aspecto a formulação de valores a serem compartilhados entre os membros de uma determinada comunidade, o que fornece subsídios para os laços sociais.

A importância do amor na formação do supereu é evidente, uma vez que o amor é um elemento fundamental para a ocorrência do processo identificatório, além do fato de que é o desejo de ser amado que movimenta o indivíduo a agir de acordo com os ideais do Outro, visando, desta forma, alcançar tal objetivo. Por este aspecto, poderíamos falar da organização que esta instância promove tanto para o indivíduo quanto para a cultura.

Entretanto, a herança edípica não esgota a teorização do conceito, e a hipótese de uma ligação do supereu ao isso e à pulsão de morte introduz uma perspectiva diferente. Se no primeiro caso encontramos a gênese de uma instância reguladora, a associação do supereu ao isso o dota de outra faceta - os aspectos tirânicos, agressivos e hostis do supereu. Por esta via, ele perde a racionalidade e seus imperativos podem se tornar de uma crueldade ímpar, chegando, em casos extremos, à destruição do sujeito ou do outro, como em circunstâncias que envolvem violência e crime. Não podemos deixar de enfatizar aqui que quanto mais o sujeito tenta escapar destes imperativos mais se compromete com o sacrifício, que se apresenta como algo que tanto diz respeito aos esforços para atender a essas demandas quanto representa a punição por não ter conseguido alcançar o resultado exigido.

Em nome do amor já foram realizadas as mais terríveis ações. Os exemplos vão desde espancamentos e torturas em crianças ou presidiários, cujo pretenso motivo seria a correção de ações impróprias, passando por crimes motivados pelas frustrações amorosas até chegar à submissão sem crítica aos líderes carismáticos em suas mais destrutivas palavras de ordem, xenófobas e racistas, entre outros fenômenos. Estas constatações questionam a ideia religiosa e romântica do amor como pura construção e dádiva. São atos que colocam em xeque esta visão idealizada e tão difundida no cotidiano e que suscitam algumas interrogações. Quais são os limites razoáveis do amor? O que faz com que este investimento possa, por vezes, ser tão devastador? Qual a linha de separação entre o amor que engrandece e aquele que destrói? Questões importantes não só ao falar do amor em si, mas especialmente de suas relações ao supereu.

 

I - SOBRE O AMOR

O amor tem lugar privilegiado na psicanálise, a começar pela transferência, que é o nome que toma o amor no processo analítico e vem a ser tema sempre presente nas associações do analisando. A experiência clínica nos confronta com o amor de transferência, polo central da cura analítica, teorizada por Freud como elemento de dupla face: é o motor imprescindível ao processo, mas também pode funcionar como obstáculo, o que exige do analista um manejo preciso. O analisando fala porque o convidamos a tal a partir da transferência suscitada pela nossa presença, fato indispensável tanto para o início quanto para a manutenção do trabalho.

O amor é definido como um sentimento de afeição entre as pessoas, marcado por uma ambivalência que pode levar da idealização à violência. Inclui o narcisismo, mas implica, ao mesmo tempo, um investimento no outro (Chemama, 1995). Estas características nos levam a ponderar sobre alguns aspectos do amor que não coadunam com uma visão de construção e engrandecimento.

Freud, em 1930 (1974), aponta para a importância do amor entre os homens, tanto no que diz respeito à origem da consciência e ao caráter inevitável do sentimento de culpa devido à ambivalência frente à figura paterna, quanto à luta das pulsões postas em ação na vida comunitária. Ao discorrer sobre a "técnica da arte de viver" (Freud, 1930/1974: 101), o criador da psicanálise acentua a importância da modalidade "que faz do amor o centro de tudo, que busca toda a satisfação em amar e ser amado" (Freud, 1930/1974: 101). Enfatiza, ainda, que o amor sexual, uma das mais intensas experiências de prazer, constitui para nós um modelo para a busca da felicidade. Entretanto, também alerta para o outro lado da moeda, a extrema vulnerabilidade em que se encontra aquele que ama pelo risco sempre presente da perda do seu objeto amoroso e dos efeitos de desamparo e infelicidade provenientes desta perda. De qualquer forma, mesmo com esse risco, a importância do amor não diminui como meio de se obter felicidade.

Desta forma, constatamos que o amor está, fundamentalmente, ligado à dependência e à angústia frente à possibilidade de perda do objeto, pois o ser humano, por sua prematuração, não pode satisfazer suas necessidades sem o auxílio de um Outro que se encarna primeiramente na mãe. Para Freud, o medo mais antigo é o de perder o amor dos pais, elementos protetores frente à angústia de desamparo da criança. Esta realidade irá colocá-la sob a influência destas figuras externas cujo amor e aprovação são vitais para ela, e nesta relação reside, segundo o autor, a fonte de todos os motivos morais.

Freud insistiu na existência de um dualismo pulsional: inicialmente opôs sexualidade a autopreservação, até chegar a sua última proposta: Eros e Tanatos, par que congrega amor e morte, junção e disjunção. É da mescla das pulsões que resulta a riqueza do ser humano. Por conseguinte, imaginar a existência de ações que expressam apenas o lado amoroso, extirpando os aspectos ligados ao ódio, seria distanciar-se da proposta psicanalítica. Tanto Freud quanto Lacan abordaram esta questão ressaltando a ambivalência do amor. Abordar o amor é lidar também com aspectos hostis, o que nos leva a indagar sobre os efeitos construtivos e devastadores dele.

Outro ponto que não pode ser negligenciado ao trabalhar sobre a teoria do amor é sua função na abordagem da organização social. O laço social compreende uma relação que preconiza limite à vontade individual. Para tanto apela a um pacto suportado por um sistema de leis, e o livre arbítrio pressupõe a liberdade em torno do cumprimento destas, o que permite ao sujeito circular pelo mundo simbólico (Gerez-Ambertín, 2009). Na explicação deste fenômeno, o amor aparece como um elemento que viabiliza a construção dos laços tanto com o líder quanto com os pares. Entretanto, esse processo não se faz sem percalços e os conflitos entre os componentes de um grupo estão sempre presentes, mesmo naqueles momentos em que a existência de um inimigo externo intensifica a ligação interna entre seus membros. Como disse Freud ao abordar a parábola dos porcos-espinhos, a convivência humana é plena de turbulências; a maior proximidade resulta em problemas de diversas ordens, a distância ideal que por um lado não sufoque e por outro não seja sentida como rejeição é sempre difícil de ser alcançada. De qualquer forma, o saber psicanalítico permite identificar que um dos elementos promotores de entraves às relações sociais é o narcisismo, o que nos obriga a um questionamento acerca das razões que levam o sujeito a abrir mão desta posição para se envolver em um projeto social. O amor aparece aqui como o elemento que possibilita a passagem do egoísmo ao altruísmo, funcionando, assim, como fator civilizatório (Freud, 1921/1974). O mecanismo de identificação, que constitui a mais remota expressão de um vínculo emocional com o outro, sustenta os laços sociais, e em sua origem está o pai da pré-história, incorporado metaforicamente pela inscrição do sujeito na linguagem. Pela identificação, o eu assume as características do objeto ao tomar um traço deste como base. No amor a identificação está sempre presente, é inevitável apreender traços do amado.

O homem constrói ideais calcados no amor e na formação dos laços afetivos para conseguir nortear sua sobrevivência frente às forças hostis, bem como estabelecer parâmetros para o compartilhamento da vida em grupo, intuito nem sempre cumprido facilmente. Esse amor está presente tanto em sua forma original, quando não há renúncia à satisfação sexual, quanto num contexto de afeição inibida em sua finalidade, que sustenta os vínculos de amizade.

O ideal de sociedade civilizada, expresso no mandamento "amarás a teu próximo como a ti mesmo" (Freud, 1930/1974: 130), significa um apelo ao convívio gentil com a alteridade, embora não sem sacrifícios, além de compor uma forte defesa contra a agressividade. Todavia, trata-se de uma determinação impossível de ser cumprida por conta do narcisismo que, como vimos, coloca entraves a este propósito - é mais fácil amar o semelhante, parecido com o que somos ou fomos, ou alguém que represente um ideal a ser alcançado, do que um diferente. Além disto, a severidade deste mandato indica o pouco que esta instância se preocupa com a felicidade do eu, já que não considera as resistências contra a obrigação de obedecê-lo - a força do isso e os obstáculos apresentados pelo meio ambiente. Fica evidente, a partir destas considerações, que a lei é limitada em seu propósito de controlar a agressividade contida em qualquer relação de amor: é em nome deste último que se cria a segregação e aqueles que estão fora do grupo formado pelos laços afetivos costumam ser identificados como opositores. Trata-se aqui do "narcisismo das pequenas diferenças" (Freud, 1930/1974: 136), fenômeno que promove a facilidade de agredir o diferente e que constitui a base dos ataques que frequentemente vemos no noticiário, com a união dos membros de uma determinada comunidade em ataques que se fundamentam em posturas discriminatórias contra os outros. A dificuldade para cumprir esta máxima foi lembrada por Freud com a afirmação de que o "homem é o lobo do homem" (Freud, 1930/1974: 133), confirmando o papel da agressividade nas relações humanas. Daí a necessidade de promover o incentivo às identificações e vínculos amorosos inibidos em sua finalidade, a restrição à vida sexual, além do mandamento de amar o próximo. Esta constatação levou ao entendimento deste imperativo como uma ordem cultural do supereu.

A inclinação para a agressão é o que mais perturba o equilíbrio nas relações grupais e representa uma ameaça constante para a sociedade, que tem que empreender enormes esforços com a finalidade de controlar os impulsos hostis. Esta tarefa é também a de cada um. Quanto mais difícil obedecer ao preceito, mais meritório é prosseguir neste intuito. Essa ética oferece uma satisfação narcísica: poder se considerar melhor que os outros.

Lacan nos lembra que o amor visa o Outro numa busca de garantias. Para ele, toda demanda é sempre de amor: "o amor demanda amor. Ele não deixa de demandá-lo. Ele o demanda... mais... ainda. Mais, ainda é o nome próprio desta falha de onde, no Outro, parte a demanda de amor" (Lacan, 1972-1973/1982: 13). Sendo Eros filho de Pênia, deusa da falta, a própria carência e pobreza, "o amor é dar o que não se tem" (Lacan, 1962-1963/2005: 22). Para que haja acesso ao universo desejante é fundamental que o Outro se apresente com uma falta para que o sujeito possa encontrar um lugar e trilhar um caminho em direção ao desejo (Rivadero, 2008).

Mas o desamparo amoroso leva a dificuldades na assunção de um desejo decidido, vistos os efeitos devastadores que a frustração amorosa pode promover.

A ambivalência afetiva, em algum grau, está presente em toda relação. Lacan desmistifica o mito do amor ideal ao criar o termo "hainamoration", às vezes traduzido como "amódio" (Lacan, 19721973/1982: 122), para ressaltar a impossibilidade de existência de um amor sem ódio. A relação amorosa quando se rompe dá lugar, muitas vezes, à sua transformação em ódio devido à regressão à fase sádica; este investimento assegura a continuidade deste laço, fazendo um uso também erótico do ódio. Como afirma o autor, o amor produz devastações (Lacan, 1972-1973/1982: 12). Portanto, se o amor pode às vezes disfarçar a falta, o ódio, pelo contrário, a coloca em evidência, revelando a falácia contida na ideia do encontro pleno na esfera amorosa, ainda que este sonho esteja presente desde os primórdios da constituição subjetiva.

A exigência pulsional nunca se realiza plenamente, pois seu objeto é sempre contingente, o que produz o circuito ininterrupto de busca. Acompanhando Lacan na proposta de que a relação sexual é impossível e o amor faz suplência a esta falta, estamos enfatizando a dissimetria na união dos sexos. O amor é sustentado pela ilusão de encontrar a plenitude, a busca do um a partir de dois. Mas será que o amor é fazer um só? Será Eros a tensão para o UM? São questões que o autor francês coloca em pauta para responder que, embora recíproco, "o amor ignora que é apenas o desejo de ser UM" (Lacan, 1972-1973/1982: 14).

Acompanhando suas elaborações sobre o tema, somos introduzidos numa discussão sobre a viabilidade de o amor sair da referência de si mesmo para configurar-se como um amor pelo outro, apesar de seu desejo de ser UM. O autor considera que a natureza do UM é miragem e por isso podemos criar muitos Uns. Porém, mesmo incluindo este desejo, "no amor o que se visa é o sujeito" (Lacan, 1972-1973/1982: 69), fato que implica a alteridade, a diferença, certa castração do gozo, e precisa levar em conta o outro em qualquer circunstância. O amor constitui um esforço para inscrever o gozo na relação com o Outro, gozo este que é autístico e, portanto, não necessariamente relacionado à alteridade.

Resumindo, podemos dizer que o ser humano está dividido por duas poderosas forças: o amor e a morte, e tenta fazer com que elas fiquem idealmente unidas, embora frequentemente possa haver uma relativa dissociação, o que o leva a diferentes direções e o dilacera. Neste sentido, é preciso avaliar a participação do amor na constituição do supereu. Busca-se o amor e aprovação desta instância que julga a cada um, tendo como medida uma referência ideal que, quando atingida, satisfaz o sujeito, mas que pode levá-lo ao limite do desespero quando de seus fracassos em atender a seus imperativos.

 

II - O SUPEREU ENTRE O AMOR E O GOZO

Relacionar amor e supereu exige uma análise que passa tanto por sua origem quanto por suas manifestações. O supereu se constitui a partir de duas premissas: a introjeção do Outro através das identificações estreitamente ligadas ao amor, ou ainda à inscrição significante conforme a tese lacaniana, além da angústia de perda do amor desse Outro que inibe a agressividade. Encontramos entre suas funções: observar, dirigir e ameaçar o eu como os pais faziam anteriormente. Um poder que vigia, descobre e critica as intenções existe em todos na vida normal, podendo aparecer também nos delírios de ser vigiado na paranoia. Trata-se, portanto, de uma instância que comanda o sujeito desde a subjetividade e, por uma questão de estrutura, não é possível escapar de sua ação.

O processo de transformação dos investimentos amorosos em identificações às insígnias paternas que participam do estabelecimento da lei do pai finalizam o Complexo de Édipo. Assim podemos entender a proposta freudiana de que o sujeito busca o amor do supereu (Freud, 1926/1974) atendendo a seus ditames. Além disto, o amor ao pai constitui um dos fundamentos da civilização e a base da convivência social. Freud considera, inclusive, o destino como um substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, sente que não é mais amado por este poder supremo. Encontramos aqui a vertente normalizante do supereu relacionada aos ideais e valores que norteiam as relações entre os indivíduos.

"O mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1974) é um texto que discute tanto o lugar do amor na vida de cada sujeito quanto suas relações com o supereu. "No auge do amor a fronteira entre o ego e o objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que 'eu' e 'tu' são um só e está preparado para se conduzir como se isto constituísse um fato" (Freud, 1930/1974: 83). Lacan, como vimos, também fala da tentativa de fazer um nas relações amorosas. "Nós dois somos um só" (Lacan, 1972-1973/1982: 64) é uma maneira grosseira de dar à relação sexual o seu significado.

O amor sustenta para o eu sua unidade configurada no estádio do espelho, os dizeres do sujeito que ama são inequívocos quanto a isso (Coutinho Jorge, 2010). O amor do supereu, é nossa hipótese, também contribui para essa sustentação do eu. Logo, no caso em que amor do supereu e as manobras do eu para satisfazê-lo atingem certa harmonia, é difícil distinguir essas instâncias; quando a diferença se estabelece, porém, suas divergências são claramente perceptíveis. A renúncia pulsional quando ligada às razões externas produz desprazer e até hostilidade, isso fica claro na proposta freudiana. Todavia, se a origem da renúncia são as exigências internas do supereu, temos um efeito econômico diferente, já que, em acréscimo a esta insatisfação anterior, haverá também um saldo de prazer em uma satisfação substitutiva. O eu sempre espera ser recompensado com mais amor pelas suas renúncias, e a constatação de merecê-lo é motivo de orgulho. Este fenômeno deve-se ao fato de o supereu persistir no exercício das funções paternas quase sem mudança ao longo da vida, exercendo uma coação sobre o eu e mantendo-o numa posição de dependência. O eu, por temer colocar em risco o amor do supereu, concede a todas as exigências e sente a aprovação aos seus feitos como liberação e satisfação e as censuras, como tormentos de consciência.

A questão a ser considerada aqui é o preço que o sujeito paga por essas recompensas e o aspecto mortificante que o amor pode ter, pois está na base da renúncia à satisfação dos impulsos pelo medo do castigo, bem como pela culpa. O eu considera como perigo e reage com sinal de angústia à raiva do supereu, sua punição ou desamor (Freud, 1926/1974) e caso não desfrute da confiança de seu mentor é em vão que se esforçará para adquiri-la. Há casos extremos de pessoas que não se acham merecedoras de boas condições de vida, o que ocorre, por exemplo, na melancolia, que pode levar até ao suicídio. Outra situação diz respeito àqueles que, visando à santidade, renunciam aos seus desejos, embora sem deixar de se recriminar por não alcançar este estado, no que não estão totalmente errados, pois as tentações são aumentadas pela frustração constante, ao passo que uma satisfação ocasional diminuiria a pressão, pelo menos temporariamente.

O paradoxo que encontramos é que quanto mais se abre mão dos seus desejos, mais se torna exigente e crítico o supereu. A agressão que se suprime vem engrossar a hostilidade do supereu. Até a má sorte é atribuída às próprias falhas: quando ocorre uma desgraça, por força da culpa surgem recriminações assim como a imposição de penitências. Não é incomum ouvirmos alguém comentar, após algum acontecimento mal vindo: "o que foi que eu fiz para merecer isso?". Neste panorama, a rigidez superegoica cresce cada vez mais, nada consegue aplacá-la.

Aqui se coloca um fator ligado ao pai que impede a formação de um supereu apenas pacificador, posto que, em sua própria estruturação, o amor que sustenta as identificações traz, ao mesmo tempo, a destruição e o ódio àquele que não permitiu o gozo pleno das pulsões. Entretanto, na conferência XXXII, Freud (1932/1974) se afasta da realidade da educação e do romance edípico da criança para instituir a agressividade como expressão da pulsão de morte. Com relação ao componente agressivo, a hipótese é de que a restrição à sua satisfação constitui uma pesada carga psíquica, embora indispensável, pois é ele, acima de tudo, que torna difícil a vida do homem em comunidade, além de ameaçar sua própria sobrevivência. Esta limitação é o primeiro e talvez o mais severo sacrifício exigido pela sociedade aos seus componentes, e o supereu é o agente a sofrear a expressão da agressividade. Aqui, novamente, é a mescla com as tendências eróticas que consegue controlar esta situação. É, como vimos, em nome do amor que se pode renunciar às pulsões, o que ocorre apenas em certo nível, porque o problema é que depois o sujeito vai gozar de renunciar. Vemos, então, o caminho que parte do gozo pulsional, passa por sua renúncia em nome do amor e desemboca na insatisfação constitutiva do desejo. Seguimos assim o percurso do gozo que, através do amor, condescende a ir até o desejo (Miller, 2010).

A fome e o amor movem o mundo, lembra Freud. No caso do amor, a busca de objetos que leva o homem a sair do seu narcisismo para encontrar-se com outros é o que promove os laços sociais e preserva a espécie. Mas então o que fazer com a agressão? A resposta freudiana é clara: será internalizada, assumida pelo supereu e, sob a forma de consciência, colocará em ação contra o eu a mesma agressividade que este gostaria de satisfazer sobre o outro. A condição infantil implica agressividade contra a autoridade que impede as primeiras satisfações e, ao mesmo tempo, a necessidade de renunciar aos impulsos vingativos por conta desta proibição. A saída para esta situação seria, então, incorporar esta autoridade através das identificações, constituindo o supereu que se apossa de toda a agressividade que a criança gostaria de expressar. Trata-se aqui da frase invertida assinalada por Freud: "se eu fosse o pai e você fosse a criança eu o trataria muito mal" (Freud, 1930/1974: 153). Assim sendo, a severidade do supereu não representa apenas a introjeção da que foi experimentada a partir da ação do outro (objeto/autoridade). Parte considerável dela representa a própria agressividade para com ele. Desta forma, a origem da consciência severa e consequentemente do supereu se deve a dois fatores: "a frustração da pulsão1, que desencadeia a agressividade, e a experiência de ser amado, que volta a agressividade para dentro e a transfere para o supereu" (Freud, 1930/1974: 154). Toda renúncia à satisfação pulsional torna-se, portanto, fonte dinâmica da consciência, que ganha reforço de cada impulso destrutivo não atuado, o que constitui o supereu como resultado destas operações. Neste sentido, ele deixa de ser causa da censura, como inicialmente havia sido postulado, para se transformar em efeito do processo, situado além do declínio do complexo de Édipo.

A civilização consegue, desta forma, dominar o desejo de agressão estabelecendo no interior do sujeito este agente. Mas esta solução é precária, visto que a tensão entre o eu e o supereu, identificada como sentimento de culpa, cresce a cada renúncia num circuito de reforço interminável e se expressa pela necessidade de punição que joga o sujeito numa sucessão de fracassos, autorrecriminações e outras penas. Lacan faz um comentário acerca deste funcionamento ao enunciar que "a única coisa pela qual se pode ser culpado é de ter cedido a respeito do seu desejo" (Lacan, 1959-1960/1988: 385).

O que dizer a favor do amor ao supereu, se o resultado é tantas vezes um quadro de acréscimo de sacrifício, autopunições, culpas infundadas, satisfação masoquista e crimes insensatos? Quando Freud atesta que são os santos os que mais se maltratam com os castigos do supereu, está apontando para a impossibilidade de o amor pacificar as relações dessa instância com o eu.

Na discussão das relações entre amor e supereu, é importante marcar a diferença entre esta instância e o ideal do eu, conceito introduzido no texto sobre o narcisismo e que já antecipara alguns traços referentes à instância superegoica. Freud fala do supereu como veículo do ideal do eu, continuando a distinção realizada em 1914 entre o ideal do eu e "uma instância psíquica especial que realiza a tarefa de procurar fazer com que a satisfação narcísica proveniente do ideal do eu seja assegurada e que, com este fim em vista, constantemente observa o eu e o avalia segundo esse ideal" (Freud, 1914/1974: 112). Esta distinção ainda não havia dado origem, naquela época, à formulação de um conceito autônomo, mas o autor já antecipava suas funções. A formação de um ideal consiste numa estratégia simbólica que funciona como uma medida para a ligação com o desejo do Outro pela qual o sujeito se avalia e cuja exigência sempre se esmera em cumprir. Este ideal é um precipitado da antiga imagem dos pais, calcado na admiração e perfeição que a criança lhes atribuía, além de no amor vigente neste relacionamento. O ideal do Outro é o lugar onde o sujeito se coloca, porque é dali que poderá ser amado. Nós amamos o que nos falta para atender ao que supomos ser aquilo que o Outro deseja. Nesse caminho, partimos da identificação ao traço significante deste Outro para montar o nosso ideal. Como nos diz Lacan, "sejam quais forem as modificações que intervêm em seu ambiente e seu meio, o que é adquirido como Ideal do eu permanece no sujeito [...] seu ideal do eu lhe pertence, é, para ele, algo adquirido" (Lacan, 1957-1958/1999: 301).

O ideal do eu apresenta uma dupla face por sua identificação paterna, que oscila entre a exaltação que promove a vertente amável das insígnias paternas e a opressão relacionada à exigência de ser tal como o Outro determina como condição para ser amado. Algumas interrogações se colocam então: qual o passo que separa o ideal que exalta daquele que submete? Até que ponto o amor ao pai pode levar da idealização à exaltação da crueldade? O amor, ao se constituir pela vertente narcísica, não deixa de ter elos com a destruição por pro-mover a busca de "algum inatingível ideal de nós mesmos" (Freud, 1921/1974: 122), uma idealização tamanha do objeto que resulta em fascinação, sacrifício e servidão voluntária, seja ao parceiro ou ao líder.

Retomando o texto de 1921 no qual Freud discute a formação dos grupos sociais, observamos dois movimentos principais. O primeiro diz respeito à composição de seus membros em torno do líder, fenômeno sustentado pelos laços afetivos, base mesma da organização da cultura. O segundo também implica a relação com o líder, embora elevado à posição de amo absoluto, que mantém um controle sobre o grupo ao promover práticas sacrificiais que glorificam mais a aniquilação e o medo do que o amor (Gerez-Ambertín, 2009).

Nesta linha de raciocínio, o que fica ressaltado em relação ao líder é que é preciso amá-lo, obedecê-lo, combater por ele, ser até mesmo cruel, considerá-lo único, muitas vezes um salvador quase divino, o que faz existir o lugar da exceção. Quanto maior a insegurança, seja por razões internas ou externas, mais crucial se torna a busca de uma figura deste porte, que seja, por vezes, até mesmo autoritária, mas que possa também servir de garantia ao sujeito além de desresponsabilizá-lo por suas escolhas, desde que cumpra estritamente aquilo que for solicitado. Nos momentos de turbulência, um "grande homem" ocupa este lugar. Mesmo que, por suas características pessoais, esteja bem longe deste personagem, é o grupo que, na realidade, lhe designa esta função. Esse grande homem é a autoridade que oferece abrigo ao desamparo, pelo qual as realizações são desenvolvidas visando seu amor. Em virtude de sua semelhança ao pai na psicologia dos grupos, o papel superegoico lhe é destinado. A articulação do amor ao supereu fica clara aqui. Mas é preciso distinguir como se passa da identificação amorosa, necessária à união dos homens em comunidade, à fascinação servil. Nas identificações, sejam quais forem (a amorosa ao pai, a histérica ou ao traço unário), o sujeito se enriquece com os atributos do objeto, enquanto que na fascinação é o contrário, é o objeto que se enriquece à custa do sujeito. Na fascinação estamos numa posição servil em relação ao Outro, na dimensão da demanda ao Outro e do Outro (Gerbase, 1999).

O regime nazista foi exemplar neste aspecto e encontramos no livro de J. Littel (2007), As benevolentes, um romance de ficção baseado nas memórias de um oficial SS acerca da Segunda Guerra Mundial, a idealização extrema da figura do Führer. O texto mostra como colaboradores altamente graduados na linha de poder sentem-se incapazes de questionar a palavra de Hitler, tomado como guia mesmo nos momentos mais críticos, quando a ameaça de morte era iminente. A variação do imperativo kantiano da lei moral adaptada à satisfação nazista mostra bem a importância da obediência e da submissão neste contexto: "Em um estado nacional-socialista o fundamento último da lei positiva é a vontade do Führer: aja de maneira a que o Führer, se conhecesse a sua ação, a aprovasse" (Littel, 2007; 522). Nesta proposta, é a submissão que está em jogo, enquanto que na lei kantiana é o sujeito que estabelece a lei, o próprio legislador.

No texto de Littell (2007), o que se conjuga como referência última é a figura de poder. Frente ao líder tirânico sobra muito pouco espaço para uma escolha. Não se trata da consciência moral atuando no sentido de um pacto universal, mas de um poder sádico que dessubjetiva, pois na fascinação o sujeito se encontra numa posição servil em relação ao Outro. Como nos afirma Gerez-Ambertín (2009), se a perfeição do líder não pode ser obtida, ao menos é possível submeter-se e sacrificar-se por ele, o que constitui uma forma degradante de sustentá-lo. O objeto do fascínio, neste sentido, é uma devastação. Relacionado a um gozo narcísico sem limites, ele chega a substituir o ideal almejado do sujeito. A obediência ao líder visa, em última instância, a segurança associada ao pai, e é somente suportando a desidealização deste último que se torna viável escapar ao amo cruel.

Outro exemplo encontra-se no filme A onda de Dennis Gansel (2008), que retrata muito bem a questão ao mostrar o caminho da alienação presente nos regimes autoritários, que pode levar a comportamentos cada vez mais submissos às ordens do líder, por um lado, e, por outro, a ações agressivas contra todos aqueles que tentam manter uma posição crítica frente ao comando tirânico. A trama se baseia em uma experiência real ocorrida numa escola da Califórnia em 1967, um experimento proposto por um professor de ensino médio para discutir o contexto das autocracias. O enredo mostra como os laços amorosos funcionam de suporte ao estreitamento das relações entre os membros da turma e o mestre escolhido por todos para ficar no comando. Entretanto, iniciado como um simples exercício de cunho pedagógico, o projeto desemboca num movimento mais amplo chamado A onda. Na realidade, em nome do grupo inicia-se uma sequência de violência, o que exige a interrupção da experiência com um resultado trágico ao final. Fica evidente, neste exemplo, como, relacionada ao amor, a destruição se faz presente em muitos momentos, dependendo do lugar ocupado pelos integrantes de uma determinada história. Daí ser possível concluir que, "quando a serviço de uma relação mimética com o próximo, que resulta numa impossibilidade de subjetivação, o amor pode se tornar um instrumento mortífero" (Fuks, 1999: 16), pois compreende identificação, condução e produção da cultura, mas também da agressividade.

No desenvolvimento da teoria freudiana a instância superegoica vai ganhando contornos ligados a um afastamento das figuras parentais, ampliando-se para outros elementos que compõem a realidade de cada um. Além disto, a proposta de identificação ao supereu dos pais coloca em pauta o furo da lei, o furo dos pais, o limite do simbólico. Freud introduz, ainda, uma nova questão com o imperativo "Farás!" (Freud, 1923/1974: 71) e acrescenta, assim, mais um paradoxo nesta teorização, pois é problemático sustentar a hipótese de um supereu que normaliza e ao mesmo tempo incita a uma ordem que lança o sujeito numa busca de satisfação sem limites, tendo como resultado fracassos e punições. A condenação por insuficiência ou incorreção mostra que não há saída para uma convivência sem conflitos entre o eu e o supereu. É a abordagem pela herança pulsional que permite acessar esta vertente, ao associar ao masoquismo do eu o sadismo do supereu com estas exigências desmedidas. Considerando este ponto, podemos afirmar que a perspectiva amorosa perde espaço e o supereu ganha um formato mais hostil como principal face. Lacan irá retomar este caminho, situando a ação do supereu como mandato de gozo, furo da lei do pai que não pode tudo pacificar, como apontado por Freud.

Portanto, mesmo considerando o supereu ligado à lei, como aparece inicialmente em Freud, é possível pensar em dois aspectos, o que se liga à regulação do complexo de Édipo ou do nome-do-pai, por um lado, e, por outro, o que se liga ao pai de "Bate-se numa criança" (Freud, 1919/1974) ou à père-version de Lacan, relacionado aos limites da lei reguladora. Podemos constatar inclusive que a referência aos ideais bem como aos emblemas em suas dimensões simbólica e imaginária, que estão na base da construção do nome do pai, é também perigosa, pois a passagem para a vertente mortífera do supereu é fácil, visto que o objeto amoroso idealizado quando rompe também fica persecutório.

Definindo alguns termos utilizados no texto de 1930, Freud se refere ao supereu como um agente e à consciência como uma de suas funções, que consiste em manter a vigilância sobre as ações e intenções do eu e em julgá-las, exercendo uma censura. Falar em severidade do supereu é aludir aos rigores da consciência e ao decorrente sentimento de culpa. O medo desse agente por vezes sádico torna o eu masoquista: "é uma parcela da pulsão voltada para a destruição interna presente no ego, empregada para formar uma ligação erótica com o supereu" (Freud, 1930/1974: 161).

Lacan, por seu lado, relacionou o supereu às três dimensões, imaginária, simbólica e real, com particularidades referentes a cada uma. Na primeira, está em cena como uma figura obscena e feroz que atormenta com ataques e recriminações. Na vertente do simbólico é sua ligação intrínseca à linguagem que se evidencia, a marca significante que põe o selo no homem. Como real, está associado a uma das formas do objeto a, como voz; é resíduo inassimilável que o significante deixa na subjetividade. Finalmente, a partir de 1971 estabelece o supereu como imperativo impossível de gozo, vinculado à não-castração. Ao refletir sobre a contemporaneidade, o autor identifica o "goza" como o verdadeiro imperativo superegoico. Insiste nos efeitos decorrentes do declínio da imago paterna, que não diminuem a pressão do supereu. Pelo contrário, isto permite o surgimento de figuras fantasmáticas de autoridade que favorecem a vivência de devastação pelo que implicam de submissão ao Outro, senhor do gozo, que incita à busca incessante de satisfação absoluta.

No Seminário 10 (Lacan, 1962-1963/2005), a abordagem dos perigos capazes de precipitar uma situação traumática coloca em pauta a tese freudiana de "Inibição, sintoma e angústia" (Freud, 1926/1974), que situa o amor do supereu numa série: a nostalgia do seio materno, a ameaça da perda do pênis, a perda do amor do objeto e o amor do supereu. Nos quatro casos, o sujeito tem que se defrontar com a angústia, relacionada à perda ou ao sentimento de culpa, de acordo com Freud. Na proposta lacaniana o risco é o da presença absoluta; o traumático não é a falta, mas sim a falta de apoio dado pela falta, que corresponde à anulação do desejo. O amor do supereu leva, então, ao temor do sucesso, pelo que este indica que "isso não falta" (Lacan, 1962-1963/2005: 64) e precipita a angústia, pois, ao operar a partir do imperativo de gozo ao avesso da lei, é na tentativa de anulação da falta e de ir além dos limites que se produz sua ação.

Restam assim as seguintes questões: o amor do supereu resulta em satisfação e felicidade ou em mais e mais culpa e sacrifício? Qual seria o lugar do amor no universo da teoria lacaniana relacionado a este conceito? Se nem tudo na lei do pai regula e na sua falha está o gozo, também está o supereu. A lei do pai compreende uma inconsistência que coloca um paradoxo: ao mesmo tempo que proíbe o gozo e exibe um modelo a ser alcançado, estabelece, por seu limite, um imperativo que impele ao "Goza!" (Lacan, 1970-1971/2009: 166). Nesta última posição, o que está em jogo é o avesso do nome do pai, resíduo paterno que não faz metáfora. Lacan assinala, assim, os limites da função paterna, a lei vem acompanhada dos pecados do pai. O pai real é o avesso do simbólico, pai morto de "Totem e tabu" (Freud, 1913/1974), e sempre retorna um resíduo desta figura devastadora com as imposições sem limites do supereu. Desta forma, podemos entender que mesmo articulando o supereu ao pai não é apenas com sua dimensão simbólica, normalizante, que nos depararemos. Daí podermos diferenciar o pai como ancestral - há circulação da lei da palavra - e como espectro, saldo traumático do pai.

Para Didier-Weill (Lacan, seminário 26, intervenção de Didier-Weill, apud Gerez-Ambertín, 2003), o pai ancestral fica mitificado e sustenta as metaforizações do desejo, enquanto o espectro é ressuscitado e emite imperativos perturbadores, tão bem representados no fantasma do rei Hamlet na peça de Shakespeare, resíduo da metáfora paterna que invoca a não-castração. A recriminação masoquista do filho, inclusive, é testemunha de que na lei do pai nem tudo é regulador e que na sua falha se instala o supereu. O neurótico, para preservar o amor do pai e sua consequente proteção, carrega nas costas seus pecados e falhas, trilhando muitas vezes um caminho de fracasso para sustentar a ilusão de completude deste pai. Com esta manobra, tenta escapar da castração do Outro, o que implicaria num limite nas garantias que ele pode lhe proporcionar (Gerez-Ambertín, 2003).

Para Lacan, o supereu também representa a expressão da divisão do sujeito contra si mesmo, além de supor a castração estrutural relacionada à intromissão do significante, o que constitui um golpe traumático na subjetividade. Neste sentido está além da possibilidade de ter como origem apenas a trama edípica. O sujeito da linguagem se constitui no campo do Outro e é deste que recebe uma primeira formulação, o "tu és", que se insere no sujeito como corpo estranho: um externo se faz íntimo (Gerez-Ambertín, 2003). O supereu surge, então, como resto da divisão do sujeito frente ao Outro, daí sua associação com o objeto a, voz incorporada, embora não assimilada, que comanda o sujeito a partir de um imperativo de gozo.

Nesta formulação teórica está em pauta uma diferença estrutural entre o amor e gozo, aspecto indicado pela produção de sentido que encontramos no primeiro em contraposição ao segundo, em que impera justamente a falta de sentido. A fantasia do amor visa encobrir uma falha: "o que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor" (Lacan, 1972-1973/1982: 62). O gozo compreende a busca de satisfação absoluta, que se repete na medida em que há um vetor pulsional operando insistentemente. Por seu lado, no "amor o que se visa é o sujeito como tal, enquanto suposto a uma frase articulada, a algo que se ordena ou pode se ordenar por uma vida inteira" (Lacan, 1972-1973/1982: 69).

O sujeito no amor é confrontado com as interrogações acerca do que representa para o Outro ou mesmo em que medida este pode perdê-lo, o que remete ao lugar que ocupa como complemento deste Outro. Se o amor falha em sua função de encobrir, seja o desejo do Outro, seja sua aspiração de gozo, a culpa se instala.

O sentimento de culpa é a expressão da ambivalência frente à autoridade, efeito da luta entre o amor e a pulsão de morte e o mais importante problema da civilização. Parte de duas origens, uma pautada no medo da autoridade e outra, posterior, que surge do temor do supereu. No primeiro caso, quando relacionada ao remorso por um ato ruim cometido, é ruidosa, visível. Todavia, quando constituída pela vertente da culpa inconsciente não pode ser reconhecida enquanto tal, sendo demonstrada muitas vezes por efeitos tais como mal-estar, doenças, angústias, fracassos, insatisfações, vergonhas, variações que se apresentam como "modos masoquistas de vida" (Gerez-Ambertín, 2003: 267) que se situam na ordem da demanda ao Outro, que é sempre de amor. Aqui encontramos um aspecto a ser ressaltado nesta relação supereu/amor. Se, com relação ao agente externo, o amor funcionou como proteção frente ao desamparo, mesmo que à custa de uma renúncia à satisfação, com relação ao supereu este êxito não ocorre, pois não dá para escapar de sua vigilância e de suas exigências impossíveis de serem cumpridas.

No Seminário 8, Lacan (1960-1961/1992) afirma que amamos para escapar da culpabilidade, tese que acompanha aquela sustentada por Freud (1913/1974) em "Totem e tabu". O criador da psicanálise acredita mesmo que a intensificação da culpabilidade é o preço que pagamos pelo avanço da civilização. Relaciona a culpa, desta forma, à renúncia à satisfação pulsional sem limites, condição estrutural para que o sujeito ingresse na cultura. Ainda neste seminário encontramos a tese de que a demanda, na realidade, é de ser amado por quem poderia nos tornar culpados, ou seja, para se livrar da dor o sujeito deve encontrar alguém que possa incriminá-lo, embora também o amando.

O supereu, quando surge como mandato, dever impossível de não ser cumprido, não pode se articular à demanda. Entretanto, se a roupagem for de culpa, inconsciente ou consciente, configurada como um apelo através de uma articulação significante negociável, representa uma estratégia para escapar ao gozo aniquilante. Porém reconhecer a culpa por esta vertente de apelo amoroso não nos exime de assinalar a possibilidade de ela também se constituir como um artifício para amarrar o Outro numa rede de enganos.

Para finalizar podemos dizer que o sujeito se submete masoquisticamente ao supereu, através de uma máxima que se impõe pela via do comportamento servil, para com isto garantir reconhecimento, obter alguma recompensa e diminuir as pressões sobre o eu. O masoquismo está na base da violência do sujeito que toma a si mesmo, em sua divisão, como objeto. Comparece como pano de fundo de um gozo mortífero incitado pelo supereu como lei insensata e feroz, bem como diz respeito à articulação de Eros com a pulsão de morte. Esta associação do masoquismo ao supereu é trabalhada por Freud em relação à culpa e ao sacrifício, em que prima o submetimento à vontade paterna, sacrifício este apresentado como paga inevitável pela instalação da lei simbólica e do laço social, tese que terá continuidade na abordagem lacaniana.

O amor não é só narcísico, pois está determinado, também, pelo desamparo do ser humano que condiciona a dependência ao Outro como garantia. O supereu parte daí e inclui a angústia pela perda do amor; o sujeito demanda a um outro um sinal de seu amor, um dom que possa pacificá-lo. Mas a mesma cultura que impõe proibições e cria leis de convivência no grupo possibilita as transgressões. O supereu inicialmente identificado por Freud como instância pacificadora representa, também, a hostilidade da cultura e os limites da lei simbólica para estabelecer as normas sociais. A proteção conseguida pela identificação ao pai ameniza as dificuldades da sobrevivência (Ananké), mas ao mesmo tempo aprofunda a dependência ao Outro. A questão que se coloca então é: uma vez instaurado o amor, uma nova ameaça vem se somar ao perigo exterior decorrente do desamparo - as ameaças decorrentes das exigências do supereu. Em outras palavras, o desamparo humano frente às incertezas e vulnerabilidades da vida joga o sujeito na busca de uma garantia sem limites, o que exige, muitas vezes, a submissão em uma posição masoquista frente ao poder do Outro.

 

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NOTAS

1 Aqui a palavra "instinto" foi substituída por pulsão, uma melhor tradução para Trieb.

 

 

Recebido em 13 de abril de 2011
Aceito para publicação em 25 de setembro de 2011

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