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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro dez. 2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Mãe e filha - da devastação e do amor

 

Mother and daughter - devastation and love

 

 

Cristina Marcos

Psicanalista, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII, Docente do Programa de Pós-Graduação da PUC MINAS

 

 


RESUMO

Este artigo parte da afirmação de Lacan segundo a qual uma mãe pode ser uma devastação para uma filha. A devastação apresenta-se articulada ao amor e à sua impossibilidade. Sabemos que Lacan aborda o feminino a partir da divisão entre o real e o simbólico. Não-toda submetida à lei da castração e da palavra, a mulher teria uma relação privilegiada com o real, de modo contingente e esporádico. A devastação que uma mãe pode ser para uma filha seria um modo de manifestação desta relação privilegiada com o real. No filme "Sonata de outono", Bergman nos dá a ver a conturbada relação entre mãe e filha, marcada pela impossibilidade do amor. No outono de Bergman, assistimos a uma queda dos semblantes na qual um real insuportável ganha consistência. Onde o semblante fracassa, surge a devastação.

Palavras-chave: mãe; filha; devastação; amor.


ABSTRACT

This paper takes as its starting point Lacan's statement that a mother may be a devastation to her daughter. Devastation is articulated to love and its impossibility. We know that Lacan's approach to the feminine is based on the categories of the real and the symbolic. Not-all submitted to castration and to the symbolic, woman has a privileged relation to the real, a relation that is contingent and sporadic. The devastation that a mother may be to her daughter is a manifestation of this relationship to the real. Bergman's Autumn Sonata shows a troubled relationship between a mother and her daughter, marked by the impossibility of love. We see in this movie the failure of the appearance (semblant) - and when it fails, devastation appears.

Keywords: mother; daughter; devastation; love.


 

 

MÃE E FILHA - DA DEVASTAÇÃO E DA (IM)POSSIBILIDADE DO AMOR

Este artigo parte da afirmação de Lacan (1973/2003) segundo a qual uma mãe pode ser uma devastação para uma filha. A devastação apresenta-se articulada ao amor e à sua (im)possibilidade. Sabemos que Lacan aborda o feminino a partir da divisão entre o real e o simbólico. Não-toda submetida à lei da castração e da palavra, a mulher teria uma relação privilegiada com o real, de modo contingente e esporádico. A devastação que uma mãe pode ser para uma filha seria um modo de manifestação desta relação privilegiada com o real.

A maternidade é frequentemente pensada a partir do registro fálico e a mãe é definida como aquela que tem. Entretanto, a relação mãe e filha nos dá a ver aquilo que do real não se deixa encobrir pelo simbólico. Se a mãe é este primeiro Outro ao qual a criança se encontra mais ligada do que a si mesma, este Outro íntimo e estrangeiro que determina o sujeito em sua alienação primordial e do qual é preciso se separar, como a menina se separa da mãe?

Para Freud (1931/1969), a mãe será definida como Outro onipotente ao qual a menina está inexoravelmente ligada em sua pré-história; para Lacan (1972-1973/1975), ela pode ser uma devastação para a filha. A mãe e seu amor (ou sua impossibilidade) são elementos essenciais para abordar o feminino. Se é verdade que Freud (1931/1969) não deixa de reconhecer uma zona obscura, de difícil acesso à análise, na relação mãe e filha, ele, porém, persiste em pensar o feminino a partir do Édipo e da castração. Lacan, a partir disto que em Freud está apenas delineado, vai propor abordar o feminino a partir de uma divisão entre o simbólico e o seu mais além.

Freud (1931/1969) havia abordado, no texto "Sexualidade feminina", a importância da relação precoce mãe-filha e afirmava a ter subestimado em função do forte recalque que a mantém quase inacessível à análise. Mesmo se Freud aborda o feminino pela via do falo, ele não deixa de apontar a relação primitiva da menina com a mãe como essencial. Neste texto de 1931, e posteriormente em sua última conferência sobre a sexualidade feminina (1933), Freud acentua o ódio ressentido em relação à mãe, considerada responsável pela falta da filha.

Ele explica a intensidade deste ódio pela intensidade do amor que o precede e pela decepção. Sendo primeiro e tão intenso, o amor à mãe está fadado a sucumbir. Os motivos pelos quais a menina é levada a se afastar da mãe para se endereçar ao pai são calcados na hostilidade e no ódio. Ela é alvo de diversas acusações: não forneceu à menina um pênis; não a amamentou suficientemente e ainda a obrigou a compartilhar o amor da mãe com outros; sedutora, a mãe despertou a sexualidade para logo em seguida proibi-la. Freud conclui que a intensa ligação pré-edipiana da menina com a mãe é fortemente ambivalente, marcada pelo amor e pela hostilidade. O termo utilizado para caracterizar esta relação é "catástrofe". "A transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe" (Freud, 1931/1969: 275) que é a ligação primitiva com a mãe. Ele ainda dirá que, para muitas mulheres, suas vidas amorosas mantêm-se atadas a esta ligação primitiva com a mãe, marcada pela rivalidade.

Para Freud, a devastação está intimamente ligada ao destino do falo na menina e ao Penisneid. Efetivamente, Freud deriva a sexualidade feminina da inveja do pênis que deixa "marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter" (Freud, 1933/1969: 154). Múltiplas são as consequências no psiquismo da mulher: a reação contra a masturbação, a cicatriz que sela o narcisismo feminino, o ciúme, o afrouxamento da relação afetuosa da menina com a mãe na medida em que ela é responsável pela falta de pênis da filha (Freud, 1925/1969). Seu destino desdobra-se em três caminhos: a recusa da sexualidade, complexo de masculinidade e a atitude feminina normal, ou seja, a menina abandona seu desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo de um filho (Freud, 1931/1969). Poderíamos dizer que Freud vê a sexualidade feminina pela lente fálica, sua chave de leitura restringe-se ao campo simbólico e a cicatriz, o narcisismo, a inveja, a vergonha são nomes da inveja do pênis.

Todos os elementos do Édipo freudiano são retomados em La-can (1957-1958/1998) no seminário As formações do inconsciente. Nele, Lacan reformula a questão da relação primordial à mãe nos seguintes termos: trata-se de se tornar o ser desejado ou não. O sujeito busca saber o que orienta o desejo da mãe para encontrar aí seu lugar. O pai é aquele que abre a possibilidade de um além da captação imaginária. Permanece o fato de que a relação mãe-filha continua a ser centrada na reivindicação fálica.

Lacan, entretanto, distancia-se da posição dos pós-freudianos, que atribuem uma importância excessiva à mãe, caracterizando a relação mãe-criança como dual. O que é essencial, para Lacan, é o fato de a mãe se situar como Outro primordial para o sujeito. Para o sujeito, trata-se de saber se ele se tornou desejado ou não; ele busca no desejo da mãe um lugar para se situar no Outro.

Esta subjetivação consiste simplesmente em colocar a mãe como ser primordial que pode estar lá ou não. No desejo da criança, no seu desejo, este ser é essencial. O que o sujeito deseja? Não se trata simplesmente do apetite dos cuidados, do contato, talvez até da presença da mãe, mas do apetite de seu desejo.

Desde esta primeira simbolização onde o desejo da criança se afirma, começam todas as complicações ulteriores da simbolização, naquilo que seu desejo é desejo do desejo da mãe (Lacan, 1957-1958/1998: 182).

Lacan permite abordar a devastação de uma outra perspectiva. O desejo da mãe não é inteiramente recoberto pelo significante, permanece um gozo desconhecido, feminino. Há uma outra face da devastação que não se reduz ao desejo e à demanda, mas aponta para o gozo feminino. Vemos o surgimento de um gozo não redutível ao desejo, opaco, refratário ao limite do simbólico. O desejo da mãe é supostamente recoberto pela significação fálica introduzida pela inscrição do Nome do Pai, entretanto algo escapa ao falo.

O termo "devastação", em francês ravage, aparece na obra de Lacan (1973/2003) no "Aturdido" para designar a relação de uma mulher à sua mãe. Neste texto, Lacan marca uma diferença em relação à tese freudiana segundo a qual a menina se afasta da mãe acusando-a de ser culpada de sua castração e se volta para o pai a fim de receber dele o que a mãe não lhe deu: o falo. Daí o pai se constituir para a menina como o porto seguro no qual ela se refugiaria.

No "Aturdido", após ter comentado as fórmulas da sexuação do lado do homem, Lacan (1973/2003) afirma: "Até aqui, seguimos Freud, e nada mais, no que se enuncia da função sexual por um paratodo, mas igualmente ficando numa metade, das duas que por sua vez ele discerne, a partir do mesmo côvado, por lhe remeter as mesmas diz-mensões" (Lacan, 1973/2003: 463).

Lacan reprova Freud por ter abordado os dois sexos pelo mesmo modelo, por ter utilizado a mesma medida e por atribuir as mesmas dimensões aos dois sexos com esta medida. Efetivamente, Freud estabelece entre o menino e a menina uma simetria invertida: do Édipo à castração para o menino e da castração ao Édipo para a menina.

Instala-se uma divergência nesta simetria entre os sexos, mesmo se a referência ao falo é mantida. Aliás, é o falo que permite a Lacan escrever as fórmulas da sexuação. Entretanto, ele critica a afirmação freudiana segundo a qual a mulher estaria à vontade na relação edipiana com o pai. Freud pretende que a menina, tendo constatado a castração materna, se refugia no Édipo para não mais sair. Segundo Freud (1933/1969), haveria uma forte vinculação pré-edipiana da menina à mãe, duradoura e essencial na compreensão das mulheres. Para as meninas, o Édipo é um processo longo e difícil e o forte vínculo pré-edipiano com a mãe permanece obscuramente ativo e de difícil acesso à análise: "diferentemente dele, repito, eu não imporia às mulheres a obrigação de toesar pelo calçador (chaussoir) da castração o estojinho (gaine) encantador que elas não elevam ao significante, mesmo que o calçador, por outro lado, ajude não somente o significante, mas também o pé" (Lacan, 1973/2003: 465).

Lacan não obriga as mulheres a medirem com o falo sua gaine charmante, quer dizer, a vagina, que elas não elevam à categoria de significante. Contrariamente a Freud, Lacan afirma, com prudência, não somente que a castração não é o essencial para as mulheres, mas também que haveria alguma coisa de suplementar em relação ao falo nas mulheres: "mas que elas possam prescindir desta deve ser previsto" (Lacan, 1973/2003: 465).

No seminário Mais, ainda, Lacan (1972-1973/1975) fala de um gozo suplementar. O suplemento distancia-se do complemento na medida em que supõe algo a mais. A suposição de um gozo feminino suplementar ao gozo fálico não nos diz que as mulheres podem abrir mão completamente da referência ao falo ou à castração, isto equivaleria à psicose, mas propõe definir o feminino a partir de um mais de gozo - o gozo feminino.

Em uma passagem no "Aturdido" (1973/2003), Lacan afirma claramente que a menina parece esperar algo da mãe que não se situa inteiramente sob o signo da castração. Ele afirma a existência de algo na relação da menina com sua mãe, na relação com a feminilidade, que não se situaria sob o significante do falo e que ele nomeia como ravage, traduzido por devastação.

Por esta razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai - o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (Lacan, 1973/2003: 465).

O termo ravage tem a mesma raiz que ravissement e ravinement. Significa "desgaste violento", "deslizamento", "dano", "prezuízo", ou ainda, "devastação" (Robert, 1996). A palavra latina rapere significa "tomar", "levar à força", "arrancar", "raptar". É também ser elevado aos céus, estar em êxtase, levado a um estado de felicidade suprema.

Uma outra ocorrência do termo ravissement pode ser destacada no texto "Lituraterre" (1971/1986). Nele, Lacan aproxima o ravinement, que é erosão, desgaste do solo pela água, de uma literatura que não seria do significante, mas da letra. Falando da lituraterre, Lacan descreve o momento em que sobrevoa a planície siberiana. Ele fala de um território que se oferece ao olhar e de como as rasuras e as erosões ali evidentes constituem uma escrita a ser lida: "a escrita é ravinement", diz Lacan. "Bem, o que de gozo se evoca no romper de um semblante, é isto o que, no real, eis o que é importante, no real se apresenta como ravinement/sulco" (Lacan, 1971/1986: 28). É no romper do semblante que algo do gozo se evoca como um desgaste, uma erosão que marca um território.

É na queda dos semblantes que a devastação se dá a ver revelando um gozo opaco, refratário à ordem simbólica. Devastar é tornar deserto, despovoar, remetendo a uma destruição completa, a um aniquilamento. Marie-Hélène Brousse (2002) afirma que a devastação parece estar ligada à impossível troca fálica, na medida em que algo da mãe escapa à lei simbólica. Por isto, ela tende a permanecer como um Outro real, ela é interpretada como Outro do gozo, convocando assim à fusão impossível ou à persecução. A devastação provém de um defeito que tocou a palavra.

A devastação situa-se no campo da relação entre o sujeito e a mãe, o campo incluindo o Outro da linguagem e a relação da palavra. Este campo, chamado por Lacan "do desejo da mãe", entendido segundo duas modalidades do genitivo em francês, comporta uma zona obscura, não saturada pelo Nome do Pai, e como tal sem limite definido (Brousse, 2002: 98).

Brousse nos adverte de que não se trata de reduzir a devastação à relação dual com a mãe, mas afirma que tanto Freud quanto Lacan esclarecem o fato de que a relação mãe-criança é logo de início situada no campo simbólico. Não se trata, para a autora, de identificar necessariamente psicose e devastação, mas de articulá-la ao modo particular como a linguagem emerge em um sujeito. A devastação toca as origens da inscrição simbólica, o que ocorreu como primordial na infância. O insulto, a rejeição ou o silêncio são alguns dos modos de emergência particular da linguagem para um sujeito. Embora diversos, eles têm um ponto em comum, a saber, a consagração da "crença inabalável na onipotência de um Outro não castrado, de uma mãe que escapa à falta da castração e que apresenta ao sujeito uma alternativa mortal: ou a rejeição, ou a reintegração do seu produto pela genitora" (Brousse, 2002: 99). A palavra do outro materno é associada à descoberta de uma experiência de gozo; trata-se da conexão da experiência da palavra com o sexual.

Há, em Freud, a indicação da existência de uma pré-história, anterior à história edipiana, que nos remete a algo inacessível, inassimilável, cujo acesso nos é vedado e que diz respeito à relação da menina com sua mãe. "Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão difícil de apreender nas análises - tão esmaecido pelo tempo e tão obscuro e quase impossível de revivificar - que era como se houvesse sucumbido a um recalque inexorável" (Freud, 1931/1969: 260).

Quando Lacan demarca que o falo não regula todo o campo do gozo, ele abre todo um campo para além do falo no qual situamos a devastação. Se a devastação comporta uma face fálica de reivindicação ligada ao desejo da mãe, há também uma face não toda fálica que diz respeito a um rapto do corpo, ligado à dificuldade de simbolização do gozo feminino, cujo âmago se revela no momento em que a filha entra em contato com o que da mãe não se reduz ao desejo e ao falo, mas diz respeito a uma ausência de limite (Brousse, 2002). A postulação de Lacan da existência de um outro gozo que se situaria como suplementar ao gozo fálico, o gozo feminino, permite pensar a devastação para além de uma lógica fálica do ser e do ter, para além da demanda e do desejo. Lacan não faz objeção ao falocentrismo freudiano, entretanto acrescenta o fato de que a lógica fálica não regula todo o campo do gozo. Há uma parte que não é regulada pelo falo e permanece real. Assim sendo, a devastação não se reduz à cicatriz da castração feminina tomada em sua dimensão simbólica, mas aponta para um gozo desconhecido, feminino, não redutível ao falo e refratário ao simbólico.

 

A DEVASTAÇÃO EM "SONATA DE OUTONO"

No filme "Sonata de outono", Bergman nos dá a ver a conturbada relação entre mãe e filha, marcada pela impossibilidade do amor. Esta obra-prima do cinema nos permite explorar a afirmação de Lacan segundo a qual uma mãe pode ser uma devastação para uma filha. No outono de Bergman, assistimos a uma queda das vestimentas, dos semblantes, dos panos que usamos para encobrir nossas chagas e feridas; assim como as folhas das árvores que caem nesta estação, caem as máscaras. Há uma vacilação do semblante na qual um real insuportável ganha consistência.

Bergman, mais do que contar a história de um encontro (ou do não-encontro) entre mãe e filha, escreve uma música. Nela, temos um movimento que abre e fecha a composição. Viktor, marido de Eva, situado fora da cena, cumpre esta função. Duas cenas abrem e fecham o filme. Na abertura, temos em primeiro plano o rosto de Viktor que observa sua mulher ao fundo da sala sentada em frente a uma escrivaninha. Viktor a observa sem que ela o veja, ele é este olho que olha sem ser visto. Ficamos sabendo, por ele, que Eva escreve uma carta à mãe, Charlotte, convidando-a para visitá-los depois de uma ausência de quase sete anos, que serão completados em outubro, no outono. Charlotte acaba de perder seu companheiro e Eva então a convida para passar alguns dias em sua casa.

A mesma cena fecha o filme. Viktor observa novamente a mulher que escreve outra carta à mãe pedindo para revê-la. Entre uma carta e outra, transcorre o filme em três movimentos que parecem seguir o andamento característico de uma sonata. O primeiro movimento é marcado por um ritmo allegro com a chegada de Charlotte, a esperança acesa, o encontro com Lena, a preparação para o jantar. O segundo movimento remete à cena em que mãe e filha interpretam o Prelúdio de Chopin ao piano. É o momento no qual se desenvolvem os elementos apresentados na primeira parte e agora delineados com contornos mais nítidos. A intensidade cresce e explode, de fato, no terceiro movimento composto pela discussão entre mãe e filha durante a madrugada. Viktor e o pai de Eva parecem estar ausentes, são como espectadores, fora da cena que se desenrola entre mãe e filha.

A cena que abre e fecha o filme nos remete ainda a uma outra: àquela da infância de Eva na qual ela observa a mãe ao piano. Aqui também, o espectador, Eva, é invisível aos olhos da mãe que é observada. Efetivamente, é este não-encontro, esta ausência da filha no olhar da mãe que vai ser desnudada ao longo do filme. Se seu início é marcado pela nostalgia e pela expectativa feliz do reencontro, o filme vai ganhando uma intensidade na qual a esperança de enlaçamento no amor materno vai dando lugar a um ódio sem limites. Mais do que um banal reencontro entre mãe e filha e uma revelação do turbilhão de sentimentos que as habita, Bergman parece exibir de modo contundente e perturbador a impossibilidade do amor.

Parece que, no filme, o amor não se conjuga. A criança necessita ser amada na medida em que busca no amor um lugar para ser. A demanda de amor da criança é também uma demanda de uma resposta sobre o seu ser. Esta é a marca da alienação primordial ao Outro - "O que sou para o Outro?". Todo ser falante, homem ou mulher, deve se constituir a partir do Outro. As duas operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação, evidenciam a constituição do sujeito a partir do Outro. Há que existir o momento da alienação no significante do Outro para que o sujeito encontre um lugar no mundo simbólico. O Outro como lugar da fala, lugar do tesouro dos significantes, é também marcado pela falta. A criança depara-se com a falta no Outro e pode a partir daí separar-se e se constituir como sujeito do desejo. Para que a criança se separe do Outro materno é preciso que ela tenha primeiro ocupado um lugar no desejo da mãe. Quando isto não ocorre é a própria existência da criança que fica em suspenso. É o que acontece quando a criança procura sua imagem fálica no olhar da mãe e não a encontra. Para Eva, destituída desde sempre deste lugar de ser objeto do desejo do Outro, só resta petrificar-se na melancolia. Por não encontrar um lugar no desejo da mãe, ela se vê privada de si mesma e impossibilitada de amar.

Com vimos anteriormente, se a devastação comporta uma face fálica de reivindicação ligada ao desejo da mãe, há também uma face não toda fálica que diz respeito a um rapto do corpo, ligado à dificuldade de simbolização do gozo feminino. Brousse (2002) propõe a tese de que a devastação enraíza-se no rapto. "Raptar" (ravir) envia, por um lado, a "roubo" e, por outro, a "ser raptada", ou seja, "roubada de si mesma". O rapto está ligado ao corpo, ao fato de se ter um corpo e dele poder ser privado.

A mãe é este primeiro Outro encarregado de introduzir o corpo da criança nas primeiras exigências do discurso. Encarregada de introduzir o discurso do Outro em um corpo pulsional, ela é necessariamente um objeto decepcionante. A mãe impõe e vela pela tomada do corpo pelo discurso na educação do sono e do ritmo da vida, no controle dos excrementos e no cuidado com a limpeza. Ela se situa entre a demanda de amor incondicional vinda da criança e o fato de que ela só pode preencher sua função introduzindo a criança em um discurso de amor condicional (Soler, 1995). "A mãe revela-se uma sequestradora de corpos. Ela o é estruturalmente, poderíamos dizer, na medida em que ela fala. Mas é também uma sequestradora de crianças, em razão dos cuidados que ela lhe confere. Ser sequestrada é ser descompletada do seu corpo, com efeito de gozo que se segue ao deslocamento" (Brousse, 2002: 102).

Eva parece despossuída de seu corpo. Sua roupas recobrem com um véu um corpo que não há. Uma mãe transmite os objetos metonímicos que tocam o corpo materno na relação mãe e filha, os sapatos, as bijuterias, as roupas. Contrariamente, na devastação esta transmissão fracassa e o corpo permanece desfalicizado. A devastação consiste em uma perda corporal não simbolizável pelo significante fálico que testemunha uma não-inscrição no desejo do Outro. A recordação da cena da infância de Eva em que ela se vê no espelho, corpo esquálido, sem véu, sem beleza, remete à devastação. Eva é raptada de si mesma, sequestrada, roubada, despossuída de seu próprio corpo. Na devastação, o sujeito é desprovido do seu lugar seja como corpo desfalicizado, seja como silêncio, as palavras de amor já não podem significar. Este não-lugar no desejo do Outro não pode ser apaziguado pela função paterna, já que o pai está ele mesmo submetido aos caprichos do Outro materno.

Charlotte, por sua vez, encarna a mãe fálica, aquela que tem a vida, os palcos, os homens, a beleza, a música. Tudo funciona para tamponar a falta, ela parece não suportar a castração: a doença de Helena, sua segunda filha, e as fraquezas de Eva são mantidas à distância. Entretanto, a lógica fálica não recobre todo o campo do gozo. Nas lembranças de Eva, vemos o encontro da filha com algo do desejo da mãe que não se reduz ao desejo e à demanda, mas aponta para um gozo que não se recobre inteiramente pelo simbólico, que não se insere na lógica fálica do ser e do ter, revelando um outro gozo desconhecido. A mãe parece pertencer a um mundo do qual pai e filha estão excluídos.

O filme aponta para a dimensão real do amor, para um ódio sem limites, devastador, que não é inteiramente recoberto pela vertente imaginária do amor presente no narcisismo, nem pela dimensão simbólica presente na demanda de amor. Vemos surgir o campo não do desejo, mas da devastação e do aniquilamento, no qual irrompem o real, a angústia, o desamparo, a coisa despedaçada.

O filme de Bergman nos ensina talvez que, se uma filha espera encontrar, como mulher, mais substância do lado da mãe do que do lado do pai, esta substância não parece ser da ordem de um dom. Seria então da ordem de uma transmissão? Eva e Charlotte revelam que algo escapa à transmissão fálica. Se é verdade que o falo é o significante que vem ordenar o desejo para ambos os sexos, que ele inscreve a sexualidade humana no registro de uma transmissão e que há transmissão fálica para definir o feminino, "Sonata de outono" exibe aquilo que escapa à transmissão. Se a devastação comporta uma face fálica ligada à demanda e à reivindicação atrelada ao desejo da mãe, presente nas cartas endereçadas à mãe, nas reprimendas e nas queixas, ela comporta também uma face não-toda fálica revelada no rapto do corpo, na petrificação na melancolia e na ausência de si, testemunhas da impossibilidade de simbolização do gozo feminino.

A falta de um lugar no desejo do Outro tem um efeito devastador. A ausência de uma inscrição no desejo da mãe engole Eva, deixando-a presa em um limbo, em um não-lugar. Eva transforma-se em nada, um ser em suspensão, à espera de alguém que venha nomeá-la, lhe dar consistência. A demanda persiste com uma nova carta escrita à mãe ao final do filme.

A devastação encontra-se onde o semblante fracassa. Fica-se impossibilitado da invenção e temos uma fixidez na demanda direta à mãe que, senão exclui a função fálica, também não a coloca em termos da troca e da perda. Eva parece não conseguir abrir mão da mãe fálica, mãe do fetiche, e não consegue entrar no registro da troca. É o falo como significante e não como fetiche que torna possível a troca.

Brousse (2002) afirma que a devastação está ligada à troca fálica impossível, algo da mãe tendo escapado à lei simbólica que deveria tê-la feito objeto na estrutura da troca. Devastada, Eva parece não metaforizar a falta e fica presa na demanda e na mãe do fetiche. Uma característica destes sujeitos é uma dificuldade nas relações de troca, em colocar seu corpo na troca amorosa, nas parcerias e na maternidade (Brousse, 2002). Efetivamente, Eva parece estar mobilizada me-nos pelo desejo do que pelo insaciável do amor. No entanto, a dificuldade em se dar, em se oferecer torna este mesmo amor impossível.

No Seminário XXIII, Lacan (1975-1976) afirma que um homem é para uma mulher uma aflição pior do que um sinthoma, uma devastação.

Se uma mulher é um sinthoma para um homem, é absolutamente claro que é necessário encontrar um outro nome para o que é um homem para uma mulher, já que o sinthoma caracteriza-se justamente pela não-equivalência. Podemos dizer que um homem é para uma mulher tudo o que vocês quiserem, a saber, uma aflição, pior do que um sinthoma. Vocês podem articulá-lo como lhes convém. É uma devastação (Lacan, 19751976/2005: 101).

Temos, nesta afirmação de Lacan, uma importante indicação de como a devastação pode surgir no campo do amor para a mulher não-toda situada na lógica do falo. Quando um homem é uma devastação para a mulher ele reacende nela o sem limite do gozo feminino. A devastação toca aquilo que do gozo não se deixa reduz ao desejo e à significação fálica.

Jacques-Alain Miller (2003) afirma que a devastação é a outra face do amor. O que um e outro possuem em comum diz respeito ao não-todo, no sentido do sem limite. A definição lacaniana do amor - dar o que não se tem - repousa sobre a anulação do ter e aponta para seu mais além. Se o sintoma é um sofrimento sempre limitado, localizado, a devastação remete a uma dor sem limites, a um estrago que se estende a tudo. O sentido do não-todo de Lacan deve ser buscado não em uma incompletude, mas na inconsistência. Ele só tem valor inscrito na estrutura do infinito. Sendo assim, Jacques-Alain Miller pode concluir que o infinito da demanda de amor retorna à mulher sob o modo da devastação.

No seminário Mais, ainda, Lacan (1972-1973/1975) apresenta uma nova teoria do amor e ela implica que a abertura para o Outro só é possível pela via do amor. Ele o explica pela carta de amor. O amor é demanda de que o Outro fale, mas a demanda de amor não é só demanda de significante, ela é também uma demanda que visa obter um mais-de-gozar do significante do Outro. Neste sentido, o amor é uma busca de substância, uma busca de ser por definição infinita na medida em que o significante não pode representar o mais-de-gozar. A demanda de amor é uma busca infinita de substância, sem limite. Aqui aproximam-se amor e devastação. A devastação, como nos lembra Miller (2003), não é simétrica ao sintoma, ela é a outra face do amor, sua face de gozo infinito.

Para uma mulher, o amor comporta um imperativo de que o Outro a ame e que ele diga o significante do seu ser. Eva fica petrificada na demanda de amor da mãe, esperando dela a substância do seu ser. Fixada na catástrofe (Freud, 1931/1969) que é a relação pré-edipiana da filha com a mãe, Eva não consegue colocar seu corpo na troca amorosa - as palavras de amor do marido permanecem vazias de sentido. Se a possibilidade do amor, no filme, parece restringir-se às cartas, elas apontam, no entanto, para uma demanda infinita que retorna sobre Eva com um poder de destruição avassalador. "A acentuação da demanda de amor conduz à devastação" (Aflalo, s/d: 3). Caem os semblantes e não há mais possibilidade para o amor. Podemos pensar que "há uma tendência estrutural, nas mulheres, para a devastação e/ou arrebatamento" (Alvarenga, 2003: 46), na medida em que ela provém da falta de um significante que possa nomear a mulher.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 25 de março de 2010
Aceito para publicação em 15 de agosto de 2011

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