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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

As adicções: enfermidades da memória

 

The addictions: illnesses of the memory

 

 

Néstor A. BraunsteinI; Traduzido por Eduardo FrotaII

IDoutor em medicina, psiquiatra, psicanalista, Professor na Universidad Nacional Autónoma de México. Autor de centenas de artigos e de numerosos livros
IIDoutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

 

 


RESUMO

O autor ressalta duas concepções de memória na obra freudiana, correspondentes aos escritos de antes e depois de 1920, e discorre sobre suas relações com o prazer, a satisfação e o desejo, relações que se depreendem da caracterização do processo primário como visando a identidade de percepção. Tomando a dependência à droga como paradigma da adicção, problema especialmente presente na contemporaneidade, mostra como a neurociência permite ligar a adicção ao efeito da dopamina, hormônio da euforia, e à memória das intensas sensações de prazer promovidas pela droga. A satisfação proporcionada pela droga, entretanto, é a única alternativa ao gozo fálico, aquele que se satisfaz no exercício da fala e que tem lugar dentro do laço social.

Palavras-chave: gozo; dependência; adicção; memória.


ABSTRACT

The author emphasizes two conceptions of memory in the Freudian theories, before and after 1920, and discusses their relationships to pleasure, satisfaction and wish, relationships that are characteristic of the primary psychic processes, which seek the identity of perception. Taking drug dependency as a paradigm of addictions, a problem especially present in contemporariness, the author shows that neuroscience links addiction to dopamine, the hormone of euphoria, and to the memory of the intense pleasure sensations promoted by the drug. The satisfaction promoted by the drug, however, is the only alternative to the phallic jouissance, which is the one that is satisfied in the exercise of speech and that happens inside the social bond.

Keywords: jouissance; dependence; addiction; memory.


 

 

Devemos superar a vergonha que nos causa a banalidade da introdução que propomos ao tema das relações entre a memória e a experiência prazerosa. Distinguimos duas concepções freudianas da memória (antes e depois da "virada dos anos vinte"), ressaltando os aparentes e evidentes paradoxos do gozo da lembrança dolorosa. É, digamos, sob a forma de hipérbole - como iniciar uma longa série de variações com um tema musical irrelevante e imprimi-la com um 120 como número de opus. Não podemos deixar de pedir desculpas ao leitor incauto. Suponhamos agora que estamos visitando por uns dias uma cidade qualquer e chegamos a um restaurante onde a comida é deliciosa, os preços razoáveis, o cardápio variado, o ambiente agradável e os funcionários são prestativos sem serem incômodos. Saímos nos dizendo "- A este lugar voltaria com prazer" e é provável que nossos passos nos levem pouco depois ao mesmo local, muito mais provável do que se a experiência tivesse sido decepcionante e tivéssemos saído dizendo "- Não voltaria aqui por nada neste mundo". É trivial a conclusão de que a memória, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, nos faz retomar ou rechaçar um possível regresso, e que até suspeitaríamos do masoquismo inconsciente (ou não) se retornamos a um lugar onde já sofremos ou nos maltrataram. Da mesma forma, um jogador de qualquer jogo - de azar, de salão ou de inteligência - tenderá a repetir as estratégias que lhe permitiram vencer e evitar as que resultaram em derrotas. O passado, geralmente (para o senso comum), é instrutivo. Pois bem, que opinião teríamos sobre alguém que diz: "- Não posso viver se não voltar a este restaurante" ou "- Daria qualquer coisa para retornar"? E de alguém que diz: "- Mesmo sabendo que me faz mal, mesmo sabendo que voltar ali pode me custar a vida, não posso me privar de voltar, porque a satisfação que estar lá me traz passa toda outra consideração para segundo plano"? O retorno a situações de perigo de destruição física ou mental demonstrará a presença de uma "compulsão à repetição" e se dirá que o sujeito, ao ceder sua liberdade e adquirir um hábito que o conduz de maneira inevitável à reiteração das primeiras experiências, entrou em um estado de adicção1.

Em El goce: un concepto lacaniano (Braunstein, 2006), postulamos que a principal "patologia" da atualidade, em termos estatísticos brutos, é a adicção, ou seja, jogando com as palavras e tomando a letra a como prefixo de negação, o afastamento do sujeito em relação ao campo da "dicção". Neste sentido também as diferentes psicoses, o suicídio ou a dedicação absoluta à escrita são formas de "adicção". Este uso da palavra supõe uma teoria da "dicção", ou seja, do discurso entendido como vínculo social, assim como uma interpretação de quais são as razões que levam este ou aquele indivíduo, de um modo particular e muito difundido em nossa época, a se apartar dos intercâmbios com o Outro no plano da vida social. Certamente não se teve que esperar o século XX, e muito menos o XXI, para que as adicções (químicas ou outras) se manifestassem - que se pense no alcoolismo e no tabagismo -, mas é evidente a qualquer observador dotado de interesse clínico que hoje em dia aumentam a olhos vistos os casos, a severidade e a variedade das formas de adicção: sexo compulsivo, pornografia, Internet, videogames, compras insensatas, anorexia, bulimia, exercício físico, acumulação sem limites do que quer que seja, esportes radicais, etc.

Para os neurocientistas contemporâneos a adicção se define como uma doença cerebral crônica e recorrente que produz uma severa alteração em áreas que são essenciais para a tomada de decisões, a aprendizagem, a memória e o controle da conduta (Hyman, 2005). Acrescentam que um primeiro critério para diagnosticar esta "doença" é que o transtorno seja compulsivo e seja acompanhado de consequências adversas ("destrutivas") para o paciente. O outro critério é o aparecimento de sintomas nos períodos de abstinência das substâncias ou atividades envolvidas, levando a que o indivíduo se veja dominado pela necessidade imperiosa e inadiável de voltar ao uso ou às condutas adictivas. Steven Hyman (2005), até recentemente diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, define a adicção em termos precisamente de aprendizagem e memória, e elabora o impacto destas

condutas na usurpação dos mecanismos nervosos que, em circunstâncias normais, modelam os comportamentos de sobrevivência relacionados com a busca de recompensas e antecipação do alívio que tal substância proporcionaria. O uso crônico leva o adicto a crer que as propriedades hedonísticas da droga excedem em muito qualquer outra meta que pudessem conceber, e por isso dedicam suas vidas a conseguir a substância (Hyman, 2005: 1417; tradução nossa).

Nos últimos vinte anos, com técnicas de neuroimagem computadorizada e com dosagens bioquímicas dos neurotransmissores, os fisiologistas chegaram à conclusão de que a dopamina (o hormônio da "felicidade" ou "euforia"), produzida abundantemente em um núcleo subcortical vizinho ao hipocampo, o nucleus accumbens, é a substância endógena liberada no momento das sensações máximas de prazer (Lehrer, 2008), como o orgasmo, a ingestão de líquidos ou alimentos durante estados de sede e fome, as emoções de intenso prazer estético, etc. Pois bem, nada se compara à quantidade de dopamina liberada nesse nucleus e à satisfação concomitante que substâncias como a cocaína, as anfetaminas ou a nicotina produzem em determinados sujeitos predispostos ou nos adictos a estas substâncias; nada tem uma força instigadora, nada produz uma "fome" tão feroz como a que se desdobra quando estes estimulantes da secreção de dopamina faltam: nenhuma recompensa é comparável nos mamíferos, desde as cobaias até os homens. A necessidade de repetição se faz ineludível, despótica, superior a qualquer ameaça de dano ou convicção acerca dos perigos implicados. A atividade mental se submete a obter a substância pagando qualquer preço, para além dos sentimentos de culpa, de temor ao castigo ou de responsabilidade. O adicto torna secundárias as demais relações sociais: familiares, sexuais, de trabalho, econômicas, vocacionais: é como se retira dos circuitos do intercâmbio com o Outro e se desvanece frente a este Outro químico que impõe a servidão que conhecemos pelos testemunhos dos pacientes e de tantos escritores que buscaram na descrição de seus próprios tormentos e na criação de personagens fictícios uma maneira de se libertarem de uma realidade opressora2.

Para nós que estamos interessados é fascinante conhecer os avanços já realizados e os que são previstos no campo das neurociências e no conhecimento da atividade cerebral. No entanto, o prazer de ninguém aumenta por se inteirar sobre a dopamina e o nucleus accumbens, assim como o medo não se apazigua por se saber que em sua produção estão envolvidas a serotonina e o núcleo de onde mais se segrega, que é a amígdala, outra formação subcortical. A paixão de saber não é paralela à paixão de consumir. Cabe prever, por outro lado, que acabarão sendo produzidas substâncias que inibam o medo ou que aumentem o prazer sem os efeitos, muitas vezes fatais, das drogas adictivas atuais. As drogas também "progredirão". Diminuirá ou aumentará a responsabilidade do sujeito ao usar estas substâncias, buscar e produzir esses efeitos estimulantes ou inibidores? As duas respostas são possíveis e não nos adentraremos (agora) nas implicações éticas da psicoquímica que está por vir. Interessa-nos sublinhar a relação evidente entre o prazer e a memória, saber intuitivo da humanidade e de todos os seres animados, saber reforçado pelas investigações de Pavlov sobre a "motivação" condicionada pelos "cientistas" e, ao mesmo tempo, ponto de partida para a concepção de Freud sobre o psiquismo quando assimilou o desejo à busca do regresso dos signos perceptivos do prazer e à evitação do desprazer. Que qualquer um busca o que gosta e se afasta do que desgosta, que o cão e o rato podem ativar mecanismos de recompensa e inibir as ações que levam ao castigo ou à descarga elétrica é algo que, por ser óbvio, quase não deve ser mencionado. No entanto, é justamente aí que se localiza a significação fundamental da descoberta psicanalítica, despercebida por psicólogos e fisiólogos e motivo de nossas insistentes referências ao gozo como outro polo do prazer e como outro polo do desejo. É o paradoxo da busca daquilo que, a princípio - e o sujeito sabe disso -, é nocivo ou perigoso. Do prazer como excesso que fere o princípio do prazer. Do gozo acima do que é conveniente. Da adicção ao sofrimento. Da dissolução, do retorno ao inanimado e da morte como metas de uma pulsão contrária ao instinto. Que melhor ilustração da pulsão de morte senão a droga-a-dicção em todas as suas formas?

A forma emblemática da dependência, a adicção a drogas, é agora um negócio mundial de magnitude incalculável que tem efeitos deletérios sobre sociedades inteiras. Mas esse "- Eu morro ou fico louco se não consigo... isto ou aquilo", ou seja, a dependência de substâncias (assim como de pessoas e ações), certamente existe desde a aurora da humanidade e toma as formas e cores dos ciúmes, da inveja, da cobiça, da intolerância e dos demais "pecados capitais" descritos pelo saber médico, pela psicologia e pela literatura em todas as áreas culturais com história. Caberia incluir a adicção ao trabalho (workaholism) ou à erudição livresca, a rituais religiosos, ou seu re-verso especular que é a blasfêmia, a jaculatórias tranquilizadoras, a nacionalismos, a fundamentalismos políticos e mesmo científicos, a objetos isolados ou coleções deles, etc., pois a enumeração nunca estaria completa. De um ponto de vista lacaniano são sinthomes, como o mestre da psicanálise francesa exemplificou a partir da escrita de James Joyce e como demonstraremos que era também o caso quando Marcel Proust escrevia, o primeiro protegendo-se da paranoia e o segundo, da melancolia.

Talvez a palavra que melhor expresse essa necessidade insubstituível de "algo" sem o qual não se pode viver ou não se pode manter a sensatez seja a palavra paixão no múltiplo sentido de "aquilo de que se padece", o contrário da ação, pois implica a passividade dependente do indivíduo, a inclinação irresistível para uma pessoa, ação ou coisa e o afinco a este "algo" com veemência igual ou maior que a qualquer aspiração imprescindível para a sobrevivência. Pulsão de morte - já dissemos evocando alguém que nos resta nomear.

Se aderirmos ao paradigma da droga como exemplar das adicções e quisermos condensar a essência da contribuição psicanalítica devemos recordar duas intervenções, entre várias, de Lacan sobre este tema, situadas nos dois extremos de seu ensino. A primeira, em 1938, no trabalho sobre "os complexos familiares" (Lacan, 1938/2003), quando tomava como modelo (sem mencioná-lo) o alcoolismo e assimilava os transtornos de abstinência com o desmame. Diferentemente da psicanálise da época, não ligava de maneira direta estes transtornos com a pulsão oral e a busca de satisfações vorazes, mas com um "trauma psíquico", a separação da mãe. Dava por certo que o sujeito da dependência, através das "anorexias mentais, as toxicomanias por via oral, as neuroses gástricas" (Lacan, 1938/2003: 37), aspirava reconstruir a harmonia perdida, "uma assimilação perfeita da totalidade ao ser" (Lacan, 1938/2003: 42). A perda, "o trauma", era o fundamento de uma aspiração universal: "as nostalgias da humanidade: a miragem metafísica da harmonia universal, o abismo místico da fusão afetiva, a utopia social de uma tutela totalitária, todos saídos da obsessão com o paraíso perdido de antes do nascimento e da mais obscura aspiração à morte" (Lacan, 1938/2003: 42)3.

Já desde antes do que poderia ser chamado de "o início de seu ensino", Lacan ressaltava a importância do conceito psicanalítico de "apetite de morte" e se queixava de que os preconceitos biológicos houvessem levado Freud ao equívoco de confundir uma tendência com um instinto. Antes mesmo de se aprofundar nos labirintos e nos paradoxos do gozo que seriam o núcleo da parte final de sua teoria, já podia afirmar que "a tendência à morte é vivida pelo homem como objeto de um apetite". Em suma, Lacan adianta nossa tese, e o antecedente quase pré-histórico de sua enunciação nos compraz: o traumatismo, perda de uma situação paradisíaca que nunca existiu, é fundador da nostalgia.

A segunda das intervenções lacanianas que destacamos se produz no final de seu ensino, na sessão de encerramento das Jornadas de Cartéis em Paris em 1975. Disse então que havia uma única definição da droga, e provinha do fato de ser "o que rompe o matrimônio do corpo com a coisinha de fazer xixi". O que significa isto, para além da maneira intencionalmente pueril de expressá-lo? Que, desde a infância, o sujeito - e não só o de sexo masculino - está incluído na ordem fálica, amarrado em seu corpo ao órgão que é objeto do complexo de castração, e que há um único recurso para se desprender desse "matrimônio" (uma pessoa não se casa com alguém do outro ou do mesmo sexo; ela está desde sempre casada com o Wiwimacher do pequeno Hans, com o falo que está sempre no corpo do Outro - da Mãe, especificamente), e este recurso único é a droga, capaz de proporcionar um prazer (uma liberação de dopamina no accumbens, diriam os fisiólogos) que leva a um gozo Outro, distinto e rival do gozo fálico. O fato de que a droga é "única" com esta prerrogativa impõe uma opção excludente: ou a droga ou o gozo fálico. Lembremo-nos que o gozo fálico é o que se satisfaz no exercício da palavra, o que faz a satisfação da demanda passar pela articulação de um discurso dirigido ao outro, por um aparato privilegiado que é o da linguagem4. Portanto, a droga é o que retira o sujeito dos intercâmbios linguageiros impostos por seu matrimônio originário com o órgão que nunca está à altura de sua função, que está marcado pela castração e que o obriga a passar pelos emaranhados desfiladeiros da linguagem como caminho até qualquer satisfação. O (droga-)a-di(c) to: aquele que não diz, aquele que não pode dizer, aquele que escapa das apertadas malhas do discurso e das convenções, da sociedade burguesa em muitos casos, como os de Artaud ou Burroughs.

Talvez essa oposição entre o gozo fálico e o Outro gozo possa ser ilustrado com uma anedota pouco grata e ignorada pelos lacanianos, que se esconde, inclusive, nas mais minuciosas das biografias de Lacan. Há algumas figuras que são emblemáticas desse Outro gozo, além dos milhares de casos anônimos que podem ser encontrados nos arquivos e ainda hoje nos manicômios do mundo inteiro. Entre essas figuras, destacaremos duas que sempre se menciona e que não por acaso ocupam um lugar específico na história da loucura e na obra de seu historiador, Michel Foucault. São elas: Vincent Van Gogh e Antonin Artaud. Pois bem, Artaud, insistente no uso da expressão "infame sexualidade", depois de usar e abusar do ópio durante anos, depois de suas experiências com a mescalina na terra dos Tarahumaras, depois de prolongadas internações psiquiátricas, publicou em 1947 (2007) um de seus textos mais importantes e o tema é, precisamente, o da arte e da vida do pintor holandês. Ao começar este insólito ensaio, Artaud põe em cena um "psiquiatra" cujo mode-lo é inequivocamente Jaques Lacan. Vale a pena reproduzir o texto:

A lucidez em ação de Van Gogh deixa a psiquiatria reduzida a um covil de gorilas, obcecados e perseguidos, que só têm como recurso, para atenuar os mais terríveis estados de angústia e opressão humana, uma terminologia ridícula, produto que corresponde a seus viciados cérebros. Não há psiquiatra, com efeito, que não seja um manifesto erotômano. E não creio que haja exceções na regra da arraigada erotomania dos psiquiatras.

Há um que há alguns anos se rebelou diante da possibilidade de me ver acusar, em sua totalidade, o conjunto de notáveis crápulas e fraudadores patenteados ao qual ele pertencia.

- Senhor Artaud, no que me toca - me dizia - não sou erotômano, e o desafio a mostrar uma única prova para justificar sua acusação.

- Eu só tenho de apresentar você como prova Dr. L...; leva a marca na cara, pedaço de porco sujo (bougre d'ignoble saligaud). Você tem o aspecto de quem mete sua presa sexual sob a língua e depois a faz girar como uma amêndoa, para desdenhá-la à sua maneira [...] Se no coito não consegue esses estalidos da glote que conhece tão bem e ao mesmo tempo o gorgolejo da faringe, do esôfago, da uretra e do ânus, você não se dá por satisfeito. No decurso destes espasmos orgânicos internos, você adquiriu certa tendência que é prova de seu asqueroso estupro, que você semeia cada vez mais, ano a ano, porque em termos sociais você não cai sob a égide da lei, mas quando a consciência lesionada sofre inteiramente, você cai sob a égide de outra lei porque esse modo de comportar-se lhe impede de respirar.

Enquanto você, por um lado, estabelece que a consciência em atividade produz delírio, por outro a asfixia com sua infame sexualidade. [...] Por outro lado, você, Dr. L ..., talvez pertença à raça dos serafins perversos, mas por favor deixe sossegados os homens; o corpo de Van Gogh, livre de qualquer pecado, esteve também livre de toda loucura que, por outro lado, se gera no pecado. Que se saiba que não creio no pecado católico, mas creio sim no crime erótico do qual, precisamente, abstiveram-se todos os gênios da Terra, os verdadeiros alienados dos asilos, ou, em não sendo este o caso, é porque não eram (verdadeiramente) alienados. E o que é um verdadeiro alienado?

É um homem que escolhe tornar-se louco - no sentido em que se usa socialmente a palavra - antes que trair um pensamento superior da dignidade humana. Por este motivo, a sociedade se serve dos asilos para amordaçar todos aqueles dos quais quer se desfazer ou se defender, porque se negaram a converter-se em cúmplices das maiores porcarias (Artaud, 1947/2007: 60).

Sobre esse encontro entre Artaud e Lacan não dispomos de outra coisa senão desta clara alusão ao ensaio sobre Van Gogh (referendada como dirigida ao psicanalista pela editora das obras completas de Artaud, Paule Thévenin) e de um testemunho constantemente repetido, ainda que único, do ator e dramaturgo Roger Blin, que disse que Lacan visitou Artaud no manicômio em 1939 e, em seguida, lhe disse, a Blin, que "o caso não lhe interessava porque o paciente estava definitivamente fixado a suas obsessões, que viveria oitenta anos e que já não escreveria mais uma linha sequer"5. Blin aponta, não sem ironia, que é uma pena que Lacan estivesse equivocado quanto à longevidade esperada de Artaud e acrescenta, com mais ironia ainda, que ele pôde terminar outros 18 volumes dos 26 que integram suas Obras completas na edição de Gallimard. Lamentavelmente faltam referências de Lacan ou de seus conhecidos a este encontro. É o problema do testemunho único e da credibilidade que merece, pois Blin não cita ninguém e não poderia ter tido outro informante senão o próprio Artaud6, um Artaud que nunca mencionou Lacan com seu nome completo.

O confronto é, por si só, instrutivo: Lacan desdenha a possível escrita do opiômano psicótico, e Artaud acusa o psiquiatra e psicanalista de obcecado sexual, antecipando-se às críticas ao falocentrismo ou falogocentrismo da teoria antes que o próprio Lacan se perguntasse sobre o "gozo Outro" e o "gozo do Outro" trinta anos mais tarde. Quando revisamos os índices onomásticos dos escritos e seminários de Lacan, nos surpreendemos ao ver que no oceano de autores e nomes quase não figura o de Artaud. Este nome, tão presente na cultura francesa do pós-guerra, aparece citado uma única vez (hapax legomenon), em uma conferência ditada em Roma em 1967 que seria publicada em 1968 e incluída no volume de seus Outros escritos com um título por demais sugestivo: A psicanálise. Razão de um fracasso. Disse então Lacan: "Nenhuma pessoa sensata, por iniciativa própria, destacará em nosso círculo a paixão de Antonin Artaud. Se um de meus alunos se inflamasse neste sentido, eu tentaria acalmá-lo. Digamos até que não me esqueço de já ter chegado a isso" (Lacan, 1967/2003: 349). Frase ambígua que faz brotar uma dúvida: acalmou ou tentou acalmar o próprio Artaud (quando o viu em Saint Anne em 1939), ou estava se referindo a alguém muito excitado no círculo de seus alunos?

"Divorciar-se do faz-xixi" é, obviamente, conceber a mencionada disjunção entre a sexualidade e a drogadicção. O notável é que há outro testemunho (ai, também único!) que nos permite assinalar a profunda solidariedade entre o pensamento de Lacan e o de Artaud sobre o uso de drogas e a opção disjuntiva entre as drogas e a ordem fálica. Trata-se do relato que faz Jaques Prevel (1915-1951), admirador, discípulo, assecla, cúmplice e fornecedor de drogas de Artaud até o dia de sua morte, que figura no livro En compagnie d'Antonin Artaud. Ali Prevel (1974/2000) relata um diálogo com Artaud, no qual este teria dito:

- Cada vez que um homem e uma mulher fazem sexo - eu o sinto - eles tomam algo de mim, Antonin Artaud. O sexo não é puro; tornou-se muito sujo, como, em certas épocas, o ato de comer. Foi assim que pereceram Sodoma e Gomorra. Não faça sexo, senhor Prevel. Você deveria evitá-lo porque é uma ameaça ao espírito. Chegará o dia em que não será nem desejado nem necessário e deixará de existir". Prevel o interrompe: "- Foi isso o que as drogas lhe ensinaram?". E Artaud responde: "- Eu tomo drogas para me libertar da obsessão sexual". "- Seria porque você nunca conheceu o amor?". "- Não creio que seja o caso, Sr. Prevel. Pedi a alguém que realmente me amava que renunciasse ao ato sexual. O sexo é um desperdício de energia" (Prevel, 1974/2000: 75; tradução nossa).

Sendo assim, a obsessão sexual da qual Artaud acusava os psiquiatras, e Lacan em particular, era a obsessão sexual da qual Artaud escapava mediante os opiáceos, o cloral, a cocaína, o álcool ou o que fosse.

Há que se distinguir, naturalmente, entre o uso recreativo e ocasional de drogas, o uso experimental para sentir vivências corporais insólitas e a verdadeira adicção, que é o estado de dependência compulsiva com relação a uma substância química da qual o sujeito não conseguiria se separar. Apenas neste último caso cabe considerar o paciente como alguém para quem o fármaco é um meio de repúdio ao contato com outro sujeito e com o Outro.

Devemos levar em conta as condições que favorecem a eclosão acelerada dos comportamentos adictivos em nossa época, caracterizada pela passagem do discurso do capitalista, que imperou até a segunda metade do século XX, ao discurso dos mercados anônimos, que se torna mais visível à medida que adentramos o século XXI, um discurso no qual falam mais alto os pequenos aparelhos tecnológicos autorregulados que funcionam segundo procedimentos e regras que escapam ao sujeito e o deixam em um estado de submissão ao programa que guia sua construção: são os servomecanismos que submetem ao controle e à servidão os usuários que deles dependem - acreditando que se servem deles - e ficam em estado de a-dicção. Esta passagem é também a das sociedades disciplinares com seus locais de confinamento, como cárceres, escolas e prisões, para as sociedades de controle, abertas, líquidas, globais, sem muros nem fronteiras, on-line. Nas sociedades do capitalismo dominante - sucessoras, por sua vez, das arcaicas sociedades de soberania, que eram governadas por uma palavra transcendental e estavam organizadas dogmaticamente de cima para baixo, do senhor para o servo - é notória a presença de um discurso normativo procedente do Outro, que dita e promulga e põe em ação a Lei que emana de uma autoridade terrena, mais ou menos "democrática" e republicana. Diferentemente delas, nas novas sociedades de controle, o sujeito descobre que já não existe nenhuma mensagem normativa do Outro (de algum modo, lhe é transmitido que pode fazer o que quiser porque, em última instância, ninguém se importa) e tampouco há um Outro que escute ou responda às súplicas. O Outro não existe, não diz, não ouve e não há nada a dizer: é uma A-dicção. Os performativos perderam seu caráter vinculador e não há razões para crer em promessas, em juramentos e em compromissos.

O sujeito se desespera diante da ausência de quem esteja disposto a escutar sua palavra e renuncia a emiti-la, deixa de dizer (a-dicção). No lugar do sujeito emudecido e da autoridade reguladora se encontra agora o ubíquo objeto @, os milhares de servomecanismos controladores que satisfazem demandas e subornam a subjetividade com as supostas "vantagens" oferecidas pelo consumo, pela aquisição de mercadorias que caem rapidamente na obsolescência: drogas, aparelhinhos mágicos oferecidos pela indústria, substitutos da relação amorosa, etc. Por outro lado, o próprio ser falante é convertido em um objeto descartável na medida em que seu destino não é objeto de um interesse particularizado em um mundo governado pela perspectiva da livre escolha dos modos e estilos de vida: "coloca-te no cardápio de opções que a máquina te oferece". Digamo-lo assim: @-dicção. O agente do discurso não é o "eu autônomo" da ideologia do individualismo burguês e sim o objeto @ com suas instruções ao usuário.

Já analisávamos em El goce. Un concepto lacaniano (Braunstein, 2006) as múltiplas variantes da adicção, que incluem a psicose (o sujeito está na linguagem e fala, mas está em grande parte desligado e desinteressado da resposta que sua palavra pode encontrar no próximo), o suicídio, a forma mais radical de separação do laço social, as atividades adictivas que causam isolamento - podem ser, e muitas vezes são, atividades artísticas - e, finalmente, as drogas, com sua reconhecida capacidade de afastar o sujeito de sua relação com a lingua-gem, com o discurso, com o outro, com o Outro, com o sexo, drogas da felicidade ou do insólito ou do inalcançável de outra forma, que se apresentam oferecendo um prazer máximo, segundo se ratifica pelas descobertas procedentes das neurociências, que avançam no conhecimento das regiões cerebrais e dos mecanismos de ação das drogas e que são um interlocutor privilegiado e indispensável da psicanálise nos dias de hoje.

Qual é a mais intensa das sensações de prazer que é possível experimentar na vida? Para Freud, não havia dúvida. A bússola que orienta todas as ações do sujeito é o prazer que se busca e a dor e o desprazer que se quer evitar. O prazer não vem sozinho: requer certos objetos e as sensações que eles despertam nas zonas erógenas, que são as de intercâmbio entre o corpo e o exterior. Busca-se o objeto a fim de repetir uma experiência que já se teve. A memória está, portanto, envolvida na escolha de objeto. Encontrar o objeto é reencontrá-lo (wiederzufinden) e o psiquismo tende a isto de forma intransigente. Como a satisfação inicial está perdida e é irrecuperável - é, simplesmente, uma lembrança -, o sujeito se dirige para os rastros deixados por este objeto e trata de voltar a trilhar o caminho que o levou em primeira instância ao encontro bem-aventurado. Nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/1969) reitera o que havia comunicado a Fliess na década anterior e que havia ficado nas gavetas de manuscritos inéditos na casa de seu amigo: a primeira ação satisfatória, aquela na qual o sujeito fica fixado de modo indelével, é a ação específica da sucção do peito com excitação da zona labial. O contato do bebê indefeso (hilflos), desesperado, com o peito que fornece o apaziguamento da fome (Befriedigungerlebnis) representa uma passagem angustiante da morte iminente à vida e um sinal do amor da mãe que tem o poder de dar e tirar a vida oferecendo ou fazendo faltar um apêndice de seu corpo. Na falta de peito e mãe, a criança se entrega ao prazer autoerótico acompanhado de fantasias de repetição dessa experiência: o chuchar, anseio máximo que seria o de beijar seus próprios lábios, a demanda oral que logo se transformará no uso de sucedâneos do mamilo e, finalmente, na afeição aos beijos, à bebida ou ao cigarro que se fuma. Essa busca tem gradações, é mais ou menos intensa, mais ou menos irrefreável, funda os esforços para a repetição do gozo, e Freud se vê na urgência de inventar o conceito de uma espécie de fluido energético que circula com um fluxo variável pelas diferentes zonas erógenas. Ele dá um nome a esta entidade misteriosa, um nome derivado do amor (Liebe): libido. Que digam, aqueles que se atreverem, qual é a relação entre a ficção freudiana da libido e a postulação da muito objetiva e moderna dopamina, cujo bombeamento sináptico de emissão e de recuperação, enormemente potencializado por substâncias como a cocaína e a nicotina, o sujeito pode regular, em alguma medida, deslocando os investimentos objetais que saem e regressam ao eu - tal como Freud os intuiu em seu artigo sobre o narcisismo - para retraçarem os caminhos que o levam ao gozo, oral ou não. Caminhos de Swann ou de Guermantes, do Éden, de Sodoma ou de Gomorra. Da sublimação artística ou da cocaína.

Que necessidade ou objetivo biológico a droga satisfaz? Absolutamente nenhum. "É o que não serve para nada" (como o gozo!). E isto que não serve para nada se transforma em um atrativo motivacional, em uma necessidade poderosa, superior a qualquer outra: comer, beber, ter vida sexual, etc. Todas estas recompensas "naturais" ou "instintivas" estão submetidas a limitações "quantitativas" e são amplamente ultrapassadas em intensidade e duração pelas que provêm dos fármacos que depositam e alagam de dopamina as sinapses dos núcleos hedonistas do encéfalo. A dopamina parece preguiçosa e mesquinha ao drogadicto quando procede apenas de estimulações "naturais". Mas qual é a fronteira entre o natural e o artificial? É mais "natural" sentir o prazer de um orgasmo do que o de ver o time pelo qual se é fanático marcando um gol no adversário, ou do que o de conseguir esse tabaco que põe fim à angústia do fumante compulsivo e permite um momento de paz antes que precise de outro cigarro?

É imprescindível lembrar aqui uma contribuição fundamental de Lacan à sempre incompleta, sempre em revisão, leitura de Freud. No Seminário 7, dedicado a A ética da psicanálise, Lacan (19591960/1986) mostra e torna central em suas argumentações a importância de um conceito que até então tinha passado despercebido no discurso freudiano: das Ding (a Coisa). Ele não só a encontra em Freud, mas também a importa do discurso filosófico em relação com a Coisa em si kantiana, o real impossível de representação e imagem, e as considerações de Heidegger (1935-1936/1984) em Die Frage nach dem Ding (A pergunta pela Coisa). Essa Coisa é o objeto da nostalgia mais absoluta. É o útero ou é a mãe perdida para sempre e irrecuperável graças à barreira do incesto convertida em Lei da cultura. Expressa o mito de um estado de presença plena, total, e a passagem da infinita bem-aventurança a um estado de desespero irremediável pela ausência desta fusão, simbiótica, no sentido estrito da palavra. Da Coisa só se sabe pelo grito, pelo desamparo, pela distância irrevogável que se aprofunda para sempre entre o sujeito e o objeto primordial de seu desejo. A Coisa é o modelo que orienta as buscas posteriores do sujeito. Enquanto o retorno à Mãe está proibido e é, ao mesmo tempo, a meta absoluta, todos os objetos que ulteriormente se poderá encontrar estarão marcados por uma diferença com respeito à Coisa. A esta perda forçada, originária, e ao estado de carência absoluta que beira a morte segue-se a experiência de ser acolhido e salvo pelo outro auxiliador. Sem ele não haveria, para o ser que está brotando, possibilidade de sobrevida7. É o que, com Freud, chamamos de experiência de satisfação: o Outro contribui com um apoio e o sujeito realiza uma ação específica que lhe permite passar do desespero à calma. Freud tomava, no início, tanto a ação de nutrir-se quanto o ato sexual como exemplos desta ação específica, definida como aquilo que suspende o desamparo (Hilflosigkeit). Ou podemos repetir com Burroughs (1953/1999) que talvez todo prazer seja alívio. Um sossego que se segue aos extremos do estresse, uma saída do infame gozo do Outro.

Da experiência original de desamparo, de grito, de auxílio, da ação específica ficam traços mnêmicos, marcas na memória, que orientarão a marcha do sujeito pelo mundo tentando repetir, diante de cada estado de tensão, este modelo que proporciona uma satisfação. É isso o desejo, que pretende recuperar uma percepção perdida, ainda que nunca esquecida, e que está na base do funcionamento inconsciente. É a chamada, por Freud, identidade de percepção, à qual só se pode ter acesso de maneira alucinatória.

Freud criou o mito, que tem toda a aparência de responder a uma realidade fundamental, das origens da vida e da inscrição inicial indelével de uma experiência de prazer absoluto, que acalma uma angústia suprema, que se inscreve na memória e se transforma num modelo e num caminho para a busca de todas as satisfações posteriores. O ano em que escreve este texto, o "Projeto", que ficou inédito por muitos anos, foi também o ano em que abandonou o uso da cocaína (1896), e isso talvez não seja uma mera coincidência. A construção da experiência de satisfação como o prazer que orienta as ações do organismo acima de todas as demais opções é surpreendentemente similar ao que nos descrevem os pesquisadores do cérebro: as substâncias que causam dependência, em particular a cocaína e as anfetaminas, produzem uma mudança nos circuitos neurais do cérebro e, particularmente, incidem sobre os modos de registro da memória porque liberam a dopamina, que brota de certos neurônios e se represa nas sinapses por um tempo muito mais longo do que aquele que as experiências espontâneas do organismo podem conseguir. Acontece que a liberação desta dopamina no nucleus accumbens que conecta o córtex pré-frontal com a amígdala e com o hipocampo é acompanhada de uma sensação subjetiva de prazer que é proporcional à dopamina liberada e ao tempo em que o neurotransmissor perdura nas sinapses antes de ser recapturado pelos neurônios.

Anos depois, por volta de 1905, o fundador da psicanálise enfatiza a sexualidade infantil e as condições em que as experiências e fantasias relacionadas com ela sofrem o destino do recalque de seus representantes psíquicos, e estes representantes psíquicos acabam ficando no inconsciente. Por sua vez, as ações e as fantasias relacionadas com a função alimentar não participam deste caráter inconsciente. Daí a primeira teoria das pulsões, que as divide entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais, sendo que só as últimas, não sabidas, unbewusst, são as que interessam à psicanálise. Freud logo irá propor a segunda teoria pulsional, com suas pulsões de vida e de morte, que suplantará a anterior.

Os organismos ficam cativados pelas experiências que provocam prazer (ou que evitam o desprazer) e tendem a repetir o processo que os levou a conquistar estas experiências hedonistas incomparáveis com as que a vida cotidiana oferece. A pulsão é, ao mesmo tempo, a razão última e o primeiro motor da existência: aspira a um estado de extinção das tensões, mas só pode alcançá-lo uma vez completado o circuito que passa pela experiência da falta, que beira a morte que não tem representação no inconsciente. Este nirvana é a meta final e é por isso que toda pulsão é, em última instância, pulsão de morte. As drogas adictivas oferecem o exemplo mais contundente da metapsicologia freudiana.

Reducionismo biológico? De modo algum. Os ratos não acham nem cocaína nem anfetaminas para preferi-las a qualquer outra recompensa como acontece quando humanos interessados em estudá-los lhes ministram estas substâncias. Que os ratos se tornem dependentes das drogas (e não "a-dictos", porque eles sempre o são, nunca dizem nada) é um efeito perverso da linguagem em que estão instalados os pesquisadores. Pelo que acontece aos ratos assim pervertidos é que podemos entender que esta oportunidade de escapar do matrimônio com o faz-xixi (Lacan) que a droga permite seja atraente para milhares de nossos contemporâneos no momento em que são condenados à a-A-@ dicção.

Freud falava da "distribuição da libido", que gerava um sistema de equações e de preferências, e falava também de "fixação" e de "regressão" pulsional em função do princípio de prazer, que considerava soberano até descobrir que existia um "gozo" para além do princípio de prazer que fazia o sujeito preferir o inconveniente e até mesmo o doloroso (Freud, 1924/1969). Pôde vislumbrar também que o álcool e certas substâncias químicas podiam proporcionar ao sujeito uma relação de satisfação perfeita, na medida em que a garrafa é, para o alcoolista, uma forma de escapar às demandas do Outro e também às do ideal do eu. Foi Simmel (1948) quem lançou pela primeira vez a piada segundo a qual o supereu é a instância da personalidade que é solúvel em álcool.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Os dicionários etimológicos nos contradiriam, pois na antiguidade romana ad-dicto denotava o indivíduo que, por não poder pagar suas dívidas, era adjudicado ou herdado como escravo e perdia a cidadania. É, de fato, fantástica a etimologia que entra em jogo com o jogo (de palavras) quando se faz da a-dicção uma privação da dicção. Conceitualmente, porém, o novo significado não fere a etimologia: o adicto é dependente, escravo, carente da liberdade de se fazer ouvir.

2 Seria fácil acusar as linhas anteriores de moralistas ou preconceituosas tendo em conta os louvores idealizados aos paraísos artificiais que todos conhecemos desde os cânticos dionisíacos às virtudes do vinho, passando pelos ambíguos elogios (junto aos ameaçadores presságios) dos opiômanos do século XIX (de Quincey, Nerval, Baudelaire). Que conste que nessas linhas não me refiro aos pregadores da virtude senão aos que nos transmitiram sem preconceitos suas experiências horríveis com a droga, como o próprio de Quincey, E. A. Poe, M. Lowry, Drieu la Rochelle, A. Artaud, A. Huxley, W. S. Burroughs, etc. Lista em que tampouco seria descabido incluir o nome de Sigmund Freud, consumidor de cocaína até 1896 e autor em 1884 de um texto sobre o tema. Seria errôneo e injusto negar que muitas das obras maravilhosas e impressionantes destes autores foram produzidas sob o efeito de substâncias que acabaram destruindo seus criadores.

3 Anos depois, por volta de 1960, reconheceria n'A Coisa (das Ding) o objeto para sempre perdido como consequência da proibição (a do incesto) imposta pela Lei.

4 Burroughs (1953/1999: 182) dá um testemunho irrefutável e reiterado. Incluirei somente esta citação sobre o ponto: "A droga altera os mecanismos do desejo sexual. O impulso de sociabilidade não sexual procede do mesmo lugar que o da sexualidade e assim, quando estou 'chapado' de heroína ou morfina, não sou sociável. Se alguém quiser falar comigo, tudo bem. Mas não sinto necessidade de me envolver com ninguém. Quando me 'solto' da droga, entro muitas vezes em um período de sociabilidade descontrolada e me envolvo com o primeiro que está disposto a me escutar. A droga absorve tudo e não dá em troca mais que a segurança contra a síndrome de abstinência". Podemos nos perguntar: há maneira mais clara de dizer que as toxicomanias são a-dicções?

5 Comentário reproduzido por Alain e Odette Virmoux, Libération, 14 de junho de 1977, e por Marco de Marinis, Artaud y el segundo teatro de la crueldad, em O. Pelletieri (compilador), Tradición, modernidad y postmodernidad, Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, p. 49.

6 Sobre a questão da testemunha única, ver Ginzburg (2007, 2010).

7 Burroughs (1953/1999: 146; grifos nossos): "É possível se distanciar da maior parte das sensações dolorosas - as feridas em dentes, olhos e genitais apresentam as maiores dificuldades - de forma que a dor seja experimentada como uma excitação neutra. Mas da síndrome de abstinência não parece haver escapatória. A síndrome de abstinência é o contrário do bem-estar que a droga causa. O bem-estar que a droga te dá é que tens que ter droga. Os junkies vivem em um tempo e com um metabolismo marcados pela droga: é ela que lhes faz sentir frio ou calor. O bem-estar que a droga concede é viver segundo as condições que a droga estabelece. Do mesmo modo que não podes escapar da síndrome de abstinência, não podes escapar do bem-estar que a droga te faz sentir depois de um pico. Quando estás com síndrome de abstinência, acaba sendo tão insuportável fazer o que quer que seja quanto não fazer nada. Um homem pode morrer, simplesmente, por não ser capaz de suportar a ideia de permanecer dentro de seu corpo. Ninguém sabe o que é a droga até que tenha síndrome de abstinência". Antes Burroughs (1953/1999: 22; grifos nossos) formulara uma equação que teria agradado a Freud quando ele se referiu a seu princípio de desprazer-prazer: "Já experimentei a angustiante privação que a síndrome de abstinência provoca e o prazer do alívio quando as células sedentas de droga bebem da agulha. Talvez todo prazer seja alívio".

 

 

Recebido em 12 de abril de 2010
Aceito para publicação em 10 de outubro de 2010

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