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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro dic. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Duas propostas para a psicanálise contemporânea

 

Two proposals for contemporary psychoanalysis

 

 

Betty Bernardo Fuks

Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Psicanalista e Pesquisadora do CNPq, Professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA - RJ), Membro da Associação Universitária de Psicopatologia Fundamental

 

 


RESUMO

A psicanálise está estruturada em torno de dois eixos interligados de modo inexorável. Além de uma práxis apoiada em uma ética, ela convoca o analista a ocupar o lugar de crítico da cultura que testemunha. Em nome desta estrutura Lacan advertia que aquele que não puder estar atento à subjetividade de sua época deve desistir de ser analista. Sob o eco desta advertência, o presente trabalho aborda duas críticas de Freud à cultura que testemunhou e, a partir daí, propõe algumas qualidades do trabalho desse grande mestre e dos inestimáveis aportes de Lacan e a própria virtude da psicanálise como saídas à resolução dos impasses clínicos e teóricos que os analistas enfrentam na atualidade.

Palavras-chave: sexualidade; gozo; crueldade; cultura; transmissão.


ABSTRACT

Psychoanalysis is structured around two axes interconnected in an inexorable way. Besides being a praxis underpinned by ethics, it calls the analyst to take the place of a critic of the culture that he witnesses. In the name of this structure Lacan warned that one that cannot be tuned to the subjectivity of his era should give up being an analyst. Under the echo of this warning, the present work addresses two criticisms of Freud to the culture he witnessed and, thereafter, proposes some qualities of the work of this great master, the invaluable contributions of Lacan and the very virtue of psychoanalysis, as outputs to the resolution of clinical and theoretical dilemmas that analysts face today.

Keywords: sexuality; jouissance; cruelty; culture; transmission.


 

 

Perdoem-me o lugar comum de começar este artigo lembrando o princípio freudiano que invalida qualquer disjunção entre psicologia individual e psicologia coletiva. É bem conhecida a famosa passagem de "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/1976) em que nos deparamos com a afirmativa de que a experiência subjetiva, objeto privilegiado do trabalho analítico, implica, necessariamente, a referência do sujeito ao outro e à linguagem que o determina simbolicamente. No plano do coletivo, a vida social apenas apresenta unidades cada vez mais amplas, sempre obedientes às mesmas leis que marcam o indivíduo. Historicamente, toda esta teorização veio coroar o que, desde o "Projeto de uma psicologia científica" (Freud, 1895/1976), foi nomeado de Complexo do Próximo: o jogo em que é estabelecido o primeiro e rudimentar laço social da criança com o ser próximo (Nebenmensch), o outro estrangeiro que atende a seu grito de socorro.

Ao retomar esse "outro" que Freud identificou como dobradiça entre o sujeito individual e o coletivo, Lacan introduziu os termos Sujeito e Outro, articulando com precisão o que designou como a transindividualidade primordial do inconsciente. A originalidade desta leitura veio reforçar a verdade do destino que Freud reservou para os analistas: agregar à prática clínica do um-a-um a função de críticos da cultura que testemunham. Tão central é essa função que Lacan chega a advertir que o analista deve renunciar de exercer a psicanálise, se "não puder alcançar, em seu horizonte, a subjetividade de sua época" (Lacan, 1953/1998: 322).

Sob o eco desta advertência, retornarei a dois momentos em que Freud empreende uma crítica à cultura que testemunhou, aos aportes trazidos por Lacan à cultura de sua época e ao pensamento de alguns outros autores como ponto de partida à escuta de nossa contemporaneidade. A partir daí, pretendo, para fazer jus ao título deste artigo, propor algumas qualidades ou virtudes do legado de Freud e de Lacan, buscando situá-las na perspectiva atual. Confesso que minha inspiração veio da leitura de Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas de Ítalo Calvino (2003), onde encontrei algumas ideias que me serviram para pensar em como resistir ao empobrecimento da psicanálise, assim como às mais diversas tentativas externas de retirar sua credibilidade social na atualidade.

Na história da psicanálise, "A moral sexual 'cultural' e nervosismo moderno" (Freud, 1908/1976) vem a ser a primeira análise crítica de Freud à cultura. Valendo-se do que pôde apreender do inconsciente em sua realidade sexual, ao mesmo tempo que fazia-se acompanhar de uma vasta bibliografia dos autores que em sua época utilizavam os significantes "modernidade" e "nervosismo" quase como sinônimos, Freud nomeia os termos do problema do nervosismo moderno, circunscrevendo o sofrimento como efeito da repressão sexual, isto é, a regulação e a codificação do sexo e do laço social entre os homens. Logo somos levados a compreender que os sintomas possuem um estrondoso potencial de crítica social. O espantoso é que um texto, escrito há precisamente 111 anos, dá a impressão de ser, em parte, um comentário sobre os impasses de nossa vida urbana. Modernidade: pressa e agitação, aumento das exigências sociais e econômicas acarretando dispêndio de energia, luxo sem precedente espalhado por todas classes sociais, irreligiosidade e o consequente esvaziamento do sentido que ela promove, novos meios de comunicação; e a música barulhenta, etc.

Mas os "nervos à flor da pele" mudam com o passar do tempo, e as regras sociais que Freud descreveu no início do século passado parecem estar caindo em desuso: a dupla moral sexual para homens e mulheres; a maldição da relação inflexível entre sexualidade e reprodução; a exclusão das saídas chamadas então de "perversas"; o prolongamento da castidade; a não admissão - mais performativa do que praticada - da infidelidade conjugal; a hipocrisia na alcova; a neurose como proteção da "virtude"; a condenação relativa dos homossexuais que demonstram diversas aptidões para a sublimação e o enriquecimento da vida cultural; o desconhecimento da sexualidade infantil; a indissolubilidade do vínculo matrimonial; o desprezo pelas potencialidades do gozo feminino.

Se, hoje, tudo isso mudou... mudou de tal forma que nos permita dizer que o vínculo social está melhor, que o mal-estar na cultura diminuiu? Tudo é diferente... e tudo continua a ser motivo de preocupação. A condição da mulher é radicalmente outra, mas a diferença hierárquica entre o papel masculino e o papel feminino permanece opressiva. O Supremo Tribunal Federal equipara a união homossexual à heterossexual, mas a USP acaba de divulgar uma pesquisa em que 85% da população das escolas públicas (incluem-se aí, além dos alunos, seus pais e funcionários) apresentam preconceitos contra a homossexualidade. O racismo inominável que vivemos na metade do século passado encontra eco nos quatro cantos do mundo sob as mais diferentes faces.

No que diz respeito à organização familiar patriarcal, costuma-se dizer que ela deu um passo em direção a uma anarquia caótica, que frequentemente deixa indefinido o lugar dos filhos. O ato de procriar filhos foi libertado dos embaraços acarretados pela sexualidade com o advento da pílula nos anos 60; ganhou novos contornos com a reprodução assistida, ao ponto de a técnica ter conseguido desvincular a procriação do ato sexual, mas nem por isto diminuiu a ausência de responsabilidade dos pais pelos filhos gerados. Por outro lado, o reconhecimento da capacidade de escolher o modo de exercer a sexualidade foi substituído pela mercantilização das modalidades de consumo sexual e por uma desvalorização das possibilidades do amor como forma de vínculo entre seres heterossexuais ou homossexuais.

No âmbito das representações e das concepções sobre a sexualidade reina grande confusão, e o essencial da mensagem freudiana acerca das pulsões, sempre parciais, permanece ignorado ou transformado em propósitos de soluções sexológicas diante do que Lacan definiu, para escândalo de todos os que não se furtaram a compreender a mensagem freudiana, como inexistência da relação sexual. A mistificação da atividade das pulsões no mundo contemporâneo é favorecida pelo êxito de uma psicanálise "midiática" que se dissemina à proporção que se avoluma a falsificação a que se propõe; como por exemplo, ignorar e omitir que a própria pulsão, em si mesma, resiste à plena satisfação. A invasão da dimensão imaginária na televisão e na internet propaga a confusão entre a satisfação da demanda com bens de consumo e a insatisfação estrutural do desejo, o que serve como uma luva para ocultar o "real sexual". Se o sujeito do tempo de Freud nada queria saber da castração, em nossos tempos costuma-se recusá-la sob os auspícios da ciência, medicina e laboratórios, a quarta potência mundial de consumo. O fato é que, tal como Freud (1908/1976) de "A moral sexual", experimentamos, na atualidade, o mesmo desalento quanto às leis sociais que deveriam reger o pacto social.

Todas as questões do momento a que chegamos na civilização são cruciais à psicanálise. Assim, a preocupação em situá-las é grande entre os psicanalistas, de vez que os pacientes que chegam aos consultórios não são os de mais de um século atrás. Os esforços em dar conta da mutável realidade cultural são verdadeiramente indispensáveis à vitalidade do campo psicanalítico. Entretanto, seus resultados algumas vezes deixam a desejar, parecem saídas um tanto apressadas e simplistas que evitam a via mais árdua de construção da teoria, do esforço de uma elaboração interna ao campo psicanalítico que responda a tal desafio.

Um exemplo bastante conhecido dessa tendência é o do psicanalista Charles Melman (2003), que em seu livro O homem sem gravidade, na tentativa de teorizar o sujeito contemporâneo, declara não haver mais recalque, pois a economia psíquica do sujeito contemporâneo seria organizada pela exibição do gozo. Não há recalque, não há mais inconsciente! Por fim, Melman conclui que, devido à ausência de limites em nossos tempos, decorrente da falta de referências e autoridade, a transferência não mais se estabelece nos consultórios dos analistas. O que restaria, então, à psicanálise? Todas as afirmativas de Melman, como bem notou Ana Maria Rudge (2006), pelo fato de terem sido feitas em uma entrevista concedida a outro analista, Jean-Pierre Lebrun, aparecem com um tom coloquial, o que exime o entrevistado de aprofundar teoricamente suas ideias. Em contrapartida, deixam claro seu inegável conservadorismo face às mudanças subjetivas contemporâneas.

Tomando a ideia de Melman (2003) de que a transferência, o laço social que sustenta a prática analítica, não se presentifica na atualidade, seria de bom tom avisá-lo que, mesmo com todas as transformações do sujeito contemporâneo, a pulsão é uma ferramenta que permite instalar a transferência. Ora, a transferência continua sendo, queira ele ou não, o playground em que ocorre uma análise. Seja ela encenada sob o carrossel da histérica apaixonada ou no trem fantasma da anoréxica, cujas cenas de horror proporcionadas por um corpo esvaziado de desejo fazem o analista se perguntar: o que está sucedendo aos sujeitos contemporâneos levados a "comer nada" num mundo entulhado de objetos criados para satisfazer as demandas, os gadgets? Sim, a clínica atual testemunha um aumento de sofrimentos que não chegam a se traduzir psiquicamente - anorexia, bulimia, depressão e as toxicomanias -; mas isto não quer dizer que a transferência não possa vir a se instalar no decorrer das entrevistas preliminares (Recalcati, 2004).

Entrevistado e entrevistador em O homem sem gravidade (Melman, 2003) responsabilizam Freud, como a Igreja sempre o faz, pelo ideal da moral menos rígida em nosso tempo, o que contribui, segundo eles, para o incremento da ideologia de satisfação de qualquer desejo, até mesmo para as reivindicações de casamentos entre homossexuais. Além do conservadorismo e preconceitos revelados nesta crítica que beira uma cruzada homofóbica, ela é totalmente infundada: Freud jamais deixou de evidenciar que a cumplicidade entre lei e desejo funda a cultura e sustenta os vínculos sociais. De "A moral sexual 'cultural' e o nervosismo moderno" (Freud, 1908/1976) a "O mal-estar na cultura" (Freud, 1930/1976) a tese de que a civilização se constrói à custa da renúncia à satisfação irrestrita das pulsões não autoriza a interpretação de que a psicanálise seja responsável pelos males contemporâneos.

Entre outros exemplos de resistência à psicanálise penso, em particular, nos analistas que querem "naturalizar" a descoberta freudiana sob os auspícios das neurociências em sua pretensão de explicar o inconsciente em termos neuronais. O que espanta é o fato de que, em geral, as pesquisas científicas nesta área venham sendo usadas, de modo bombástico, para anunciar a morte do sujeito do inconsciente. Na verdade, a crença de que o Sistema Nervoso Central demonstra a psicanálise é a vacina de última geração contra a peste freudiana. Considerar que a neurologia explica o aparelho psíquico freudiano representa, no mínimo, dar existência física ao inconsciente quando o próprio estatuto do inconsciente, o Unbewusste - o saber que não pode ser sabido -, descarta toda e qualquer possibilidade de que possa vir a ser demonstrável. É certo que a psicanálise não pode deixar de estar a par dos progressos científicos, mas não se pode permitir que novidades da biologia ou da neurologia se infiltrem em seu território, sob pena de a clínica perder a singularidade que a distingue de outras práticas: a escuta da inesgotável melodia pulsional.

Articulações da teoria do inconsciente com os mais diversos campos do saber datam do empenho de Freud em efetuar cruzamentos, convergências e instituir divergências entre eles. A psicanálise vive no "entre-dois": frequenta o universo das artes, da literatura, da filosofia, da religião, da ciência, da psicologia e outros, ao mesmo tempo que exige repensar todos estes topos. É o que justifica sua função de corte. Neste sentido, os laços fronteiriços entre psicanálise e as neurociências, por exemplo, só se farão positivos se os analistas não cederem às tentativas de subtração da originalidade e importância dos conceitos psicanalíticos.

De Melman (2003) aos adeptos do "inconsciente neuronal", todas as tentativas de desqualificar a teoria e a prática freudianas nada mais são do que a velha resistência à subversão que Freud trouxe à história do pensamento, ao se dirigir à escuta ao real, isto é, ao incoerente, ao não-idêntico, ao que não tem sentido nem nunca terá. Inconsciente, pulsão, recalque e transferência são construções oriundas desta subversão. É com elas que se pode responder aos neurocientistas e neurobiólogos, entre outras coisas, que o corpo marcado pela linguagem não é o corpo biológico. Ou ainda: que a transferência é o instrumento pelo qual a psicanálise reafirma que mais além de uma pura e simples medicalização do sujeito é necessário incluí-lo na estratégia terapêutica. Enfim, para responder às tentativas atuais de desmentir ou foracluir o discurso analítico, o analista deve manter-se fora e dentro da cultura, nas fronteiras em que seja possível subscrever o intemporal - a pulsão - e o que é da ordem da História. A pulsão pertence ao real, alheio à moral. Já a mudança na fenomenologia da clínica corresponde a modos culturais de seu exercício. Portanto, trata-se de defender a excepcionalidade do conceito, sem perder de vista as novas formas de subjetividades; acolher o novo sem deixar de articular inconsciente, sexualidade e lei.

Trata-se de uma questão política; política de transmissão. A pergunta é: de que modo usar os conceitos como ferramentas, colocá-los para trabalhar em campos inexplorados, exprimi-los e levá-los até as últimas consequências lógicas, se o que define a psicanálise é a experiência?

Com isto nos aproximamos do exemplo que Lacan deixou à sua geração e às que se seguiram. Reafirmando a morte e a sexualidade no cerne do conceito de inconsciente, Lacan fez contribuições originais e inestimáveis à clínica e a teoria psicanalíticas. Entre elas destaco os conceitos de gozo (elaborado a partir do vocábulo ale-mão Genuss, usado por Freud pouquíssimas vezes), de objeto a e as progressões concernentes ao real. Todos estes extraídos da teoria energética e do problema econômico do texto freudiano que têm também como antecedente a teoria marxista de "mais-valia" (o que se obtém pelo cálculo da diferença entre o valor da mercadoria e do trabalho do obreiro, o lucro). Nas palavras de Rabinovitch, "o que interessa a Lacan é a economia política do gozo - o mais-de-gozar" (Rabinovitch, 2004: 78) que, como toda a política, se articula com uma política de discursos. Lacan direciona a leitura do mal-estar na cultura com base na relação do sujeito com o "mais de gozar", dado que é ao redor desta relação que o objeto a vai ser produzido em duas dimensões que oscilam entre si: a dimensão de causa, da causa do desejo, e a dimensão da pulsão como perda ou ganho excessivo de gozo.

É voz corrente que as formas mais atuais e inquietantes do mal-estar na contemporaneidade não estão diretamente ligadas ao excesso de proibição, mas pelo imperativo de gozar contido no discurso ideológico a favor da liberação sexual irrestrita. Discurso este que, na verdade, despoja o sujeito de sua capacidade de desejar. Pode-se dizer que a voracidade com que o supereu empurra o sujeito ao excesso de gozo, ao mesmo tempo que se compraz de vê-lo fracassar, conforme as reflexões de Freud (1930/1976) em "Mal-estar na cultura", tornou-se uma referência para ordenar a experiência analítica atual. Trata-se então de examinar de que maneira tal excesso traz consequências à subjetividade contemporânea e que saídas a psicanálise apresenta, considerando que o discurso analítico seja capaz de viabilizar aos sujeitos o fazer desejar. Porque, de todas as formas, se for mesmo verdade que já não mais precisamos levar o paciente a superar impasses sexuais "vitorianos", certamente, depois de Lacan, temos instrumentos para sustentar um discurso, conforme lembra Zizek (2010), que dê permissão ao sujeito para não gozar, caso não queira.

De que outra maneira poderíamos conduzir a análise das jovens que chegam ao nosso consultório com a queixa de que, mesmo com uma coleção de amantes iniciada os 13 anos de idade, desconhecem o prazer e o amor? Tenho certeza é de que não há nenhuma biologia das paixões que possa implicar esta jovem "Madame Bovary/gatinha do Leblon" na responsabilidade de suas escolhas. Certamente, por tudo o que aprendemos no texto de Freud e de Lacan, restará à psicanálise fazê-lo.

O que trouxe até agora sobre a contribuição lacaniana à psicanálise talvez esteja muito condensado ou até mesmo apressado. Não posso atribuir apenas à restrição do número de laudas permitidas por este periódico esse risco. Na verdade, meu desejo é privilegiar neste texto os impasses da transmissão da psicanálise na atualidade.

Para isto, peço ajuda à literatura para ousar dizer o que penso ter sido a maior contribuição de Lacan à psicanálise. Ao contrário do protagonista de um conto de Guimarães Rosa (1962/1988) que recusou a convocação do pai de substituí-lo no fluxo contínuo do rio, Lacan ocupou a "terceira margem", o lugar simbólico da transmissão "de uma tradição de história e vivências de valor" (Librandi-Rocha, 2011: 5) ou de textos que sobrevivem à morte do autor. Desde esta margem, se deixando levar pela correnteza da letra de Freud, confrontou-se com o já dito e ousou dizer um não-dito, reescrever a teoria e criar uma obra singular; o que lhe valeu ocupar o lugar de um dos grandes pensadores da psicanálise e da cultura. Curvou-se à lei da transmissão: retornou à escritura freudiana, aos brancos e às margens dos textos das Obras completas e enunciou algo de novo em harmonia com as urgências de seu tempo: "Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: 'Navegar é preciso; viver não é preciso'./ Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar" (Pessoa, 1960/1986: 1).

Encerro com estas palavras de Fernando Pessoa a apresentação da primeira crítica de Freud à cultura e de alguns dos aportes de Lacan extremamente úteis à clínica contemporânea, propondo duas qualidades destes grandes mestres, criatividade e precisão clínica, como o norte do trabalho de alcançar aberturas infinitas, contundentes e arrojadas à escuta da pulsão, sem perder de vista as mudanças subjetivas contemporâneas.

Passemos à outra das críticas de Freud ao mal-estar na modernidade. Ela começa a ser esboçada no inicio da 1ª Grande Guerra e segue, até o final, com a escrita de "Moisés e o monoteísmo" (1939/1974). Acometido por um forte sentimento de perplexidade e desilusão diante da desrazão que aflorava no coração da civilização moderna, Freud indagava-se atônito: por que todas as conquistas intelectuais e científicas da cultura moderna não foram suficientes para diminuir a violência e a destruição entre os homens? Com um tom de profunda descrença no poder de liderança das nações mais avançadas técnica e cientificamente e profundamente decepcionado com intelectuais e cientistas que, então, demonstravam uma clara afinidade para com o infernal, transpõe para o papel suas reflexões sob o título "De guerra e morte. Temas da atualidade" (Freud, 1915/1976).

O objetivo não era o de explicar a guerra a partir da psicanálise, mas, ao revés, examinar a destruição e a crueldade como realidade do psiquismo. A lógica de sua argumentação foi precisa: se, no homem, amor e ódio intensos convivem conflitantes (ambivalência de sentimentos), e as pulsões são aquilo que são - nem boas nem más, dependendo do destino que seguem na história do sujeito e da civilização -, então os atos cruéis e destrutivos que atingem a civilização não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro. Muito ao contrário, trata-se de acontecimentos inexoráveis que incorporam um elemento radicalmente social e histórico.

Moral da história: impossível erradicar a presença da destruição e da crueldade na espécie humana. Na prática, as diferentes intensidades com que essas forças se manifestam através dos tempos levaram Freud a desconstruir a fantasia de "superioridade" moral das civilizações mais avançadas sobre as mais primitivas e a defender certa unidade da espécie: o sujeito moderno e o selvagem das cavernas podem ser igualmente bárbaros, cruéis e malignos.

Seria a apreensão da crueldade um dos horizontes mais apropriados ao campo da psicanálise? Esta foi a questão que levou Jacques Derrida (2001) a convocar os herdeiros de Freud a refletir sobre o lugar da crueldade nos processos que sustentam a cultura e, no plano da política, o Estado e a sociedade. O tema da crueldade aparece já na "Interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1976) como sendo algo da ordem constitutiva da subjetividade. É em "Três ensaios" (Freud, 1905/1976) que a crueldade é elevada à categoria de pulsão, lado a lado com a pulsão de dominação e seu papel relevante no domínio do outro. Mas a sexualidade não é o único universo conceitual em que Freud circunscreverá a crueldade. Em "Introdução à psicanálise e neurose de guerra" (Freud, 1919/1976), o termo é associado ao conceito de trauma como efração. O excesso da crueldade sofrida ou praticada no front produzia as chamadas neuroses de guerra que, por sua vez, impossibilitavam o soldado de voltar ao campo de batalha. Nestas neuroses, o sintoma era uma forma de protesto do sujeito contra o papel que lhe era suposto desempenhar no exército (Freud, 1921/1976). Vale ressaltar que diante dos efeitos da eletroterapia, prescrição psiquiátrica da época às neuroses de guerra, Freud começou a circunscrever o que hoje designa de gozo da crueldade, o fazer sofrer por sofrer, a monstruosidade latente de ser humano, a dimensão diabólica que alguns anos mais tarde vai desembocar no extermínio planejado de milhões de seres humanos. A Primeira Guerra colocou em evidência a estranha e interminável compulsão à destruição:

[A nova guerra] não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer outra guerra de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa; é, pelo menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido (Freud, 1915/1976: 280).

Esta unidade poeticamente descrita entre diferentes guerras ao longo da História revela um paradoxo: o perigo mora ao lado do progresso. Ciência e tecnologia protegem o homem das forças da natureza, trazem bem-estar e mudanças consideráveis à civilização; mas, por outro lado, concedem poderes desmesurados ao homem moderno, essa espécie de "deus de prótese" (Freud, 1930/1976: 111) capaz de mergulhar a civilização na barbárie. Embora Freud tenha se ocupado em pensar a "cultura de morte" que testemunhou, esta foi uma crítica premonitória diante de acontecimentos como os de Auschwitz e Hiroshima; a invenção da morte planificada e o uso da bomba atômica pelo Estado são fatos que testemunham, como bem diz Philippe De Georges, uma figura alegórica: "O Saber servindo ao Mal" (apud Paturet, 2009: 96).

Chegamos assim ao que Freud não conheceu: o extermínio, embora tenha deixado ferramentas para pensar nesta recusa radical ao outro; a saber: 1) a morte, um dos grandes fatos da vida que era envolta no esplendor do mistério divino, foi paulatinamente sendo dessacralizada na modernidade. O luto empreendido pelo primitivo diante da morte, mesmo a de um inimigo, foi substituído pela destruição desta estrutura simbólica que garante a transmissão geracional. 2) a instrumentalização da tecnologia e da ciência em favor da barbárie no lugar de oferecer bem-estar e segurança aos povos. Quando o mundo tomou conhecimento do que foi a Shoa, Lacan (1969/2003) imediatamente circunscreveu na "Proposição" ao analista de sua Escola o real em jogo na constituição dos campos de extermínios. Redutos do sonho de higiene e da raça sob os auspícios da medicina e da genética, os campos, afirmou Lacan, significavam o início do que "iria se desenvolver no remanejamento dos grupos sociais pela ciência, em sua tentativa de universalização e normalização da sociedade" (Lacan, 1969/2003: 29). Ou seja, a invenção de máquinas fabricantes de cadáveres - que faziam com que prisioneiros entrassem no ciclo da produção/consumo (reciclagem sob a forma de sabão) - não tinha sido apenas um acidente único da História, mas inerente ao próprio progresso técnico-científico a serviço do ideal de construção de uma sociedade sem outro.

A expressão "máquinas fabricantes de cadáveres" por si só indica que o que designamos como morte foi algo de extremamente infame e vergonhoso. Em Auschwitz, Treblinka e outros campos, nas palavras de Peixoto Júnior (2006: 6), "não se morre, se produz cadáveres". Considerando que até o advento da modernidade, diferentemente das carniças dos animais, os mortos ocupavam um certo lugar do sagrado, eixo da transmissão da herança arcaica entre as gerações, segundo o mito de "Totem e tabu" (Freud, 1913/1976), pode-se dizer que, no campo, a foraclusão da morte se apresenta, justamente, na produção indiferente de cadáveres. Evento limite, o extermínio no século XX se transformou em marco definidor da destruição da morte como estrutura simbólica responsável pela transmissão transgeracional (Piralian, 1989).

Logo depois da Segunda Guerra, os analistas foram convocados a criar estratégias de atendimento aos sobreviventes do holocausto e pensar teoricamente o que foi este trauma inenarrável sofrido por sujeitos que passaram pelos campos nazistas. Passaram, então, a ouvir no cotidiano da clínica o silêncio das dores das quais a rememoração e a narrativa estão excluídas (Kupferberg, 2009). Aqueles que experimentaram, de uma forma ou outra, os horrores da guerra procuravam a psicanálise sob o efeito de um trauma inenarrável, de uma experiência para a qual não há palavras. Tamanho desafio confirmava aos analistas que a "história privada do sujeito, por estar ligada à linguagem, faz parte da História, a história pública, qualquer que seja sua biografia e seu país" (Stern, 2004: 241).

Neste ponto, além da teorização lacaniana do objeto a extraída, segundo diversos autores (Plon, 2003; Stern, 2004), desta entidade inominável, incompreensível mas onipresente que foi a Solução Final, muitos analistas centraram e vêm centrando a escuta sobre os efeitos do Holocausto até os dias de hoje. Os estudos sobre este trauma que não pôde ser elaborado pela geração que os vivenciou e que por isto mesmo é transmitido como criptas ou fantasmas, segredos mantidos em decorrência da impossibilidade de nomear o vivido, encenados na vida do sujeito (Kupferberg, 2009), incluem a psicanálise na primeira fileira das disciplinas que se debruçam sobre os efeitos da crueldade sanguinária que se abateu sobre o século XX. E não poderia ser de outra forma porque, ao final, uma análise é lugar do testemunho daquilo que não cessa de não se inscrever mas que urge ser inscrito.

Teóricos de outras disciplinas chamam atenção para o que foi a invenção destas máquinas de extermínio, a primeira de uma sucessão de extermínios racistas, e procuram refletir sobre seus efeitos na contemporaneidade. Penso sobretudo em Giorgio Agamben (2002): resgatando uma figura do direito arcaico romano - Homo Sacer -, Agamben circunscreve a figura do homem sacro, a vida exterminável ou vida nua, a vida que não merece ser vivida, que ocupa uma zona de indiferenciação, fora do espaço jurídico e político e, ao mesmo tempo, funda a possibilidade da cidade dos homens. Condenado por algum delito, o Homo Sacer não pode ser sacrificado, mas quem o matar, a rigor, não pode ser acusado de homicídio. Nesse sentido, como dito em outro trabalho (Fuks, 2004), Agamben é bastante freudiano: toda organização possui um incalculável potencial virtual de crueldade contra o outro a ser reatualizado toda vez que "estrangeiro" e "inimigo" se fundem num conceito único (Freud, 1915/1976).

Agamben (2002) defende a tese de que o processo de inclusão da vida nua na política não é uma exclusividade dos regimes totalitários de exceção, do qual o Terceiro Reich é paradigmático. Está inscrito, também, no conteúdo dos direitos do homem, que incluem até mesmo o nascimento como a categoria que deve ser absorvida pelo espaço político. Uma cumplicidade profunda entre Estados modernos, supostamente democráticos, do Ocidente e a lógica da exclusão é capaz de converter em vida nua um grande segmento da população e cindi-la da vida humana. "Fascismo e Nazismo são, antes de tudo, uma redefinição das relações entre o homem e o cidadão, e por mais que isto possa parecer paradoxal, eles se tornam plenamente inteligíveis somente se situados sobre o pano de fundo biopolítico" (Agamben, 2002: 132).

Ou seja, para o filósofo italiano, discípulo de Foucault, o campo de extermínio é a matriz escondida do espaço político contemporâneo que relaciona, cada vez mais, a vida humana às dimensões biológicas ou orgânicas, a partir do que se define e se expande o deixar morrer a vida nua.

Em "Au-delà" de Freud: "une culture de l'extermination", Jean-Bernard Paturet (2009) aponta para um dos males maiores de nosso tempo: a humanidade vem sendo afetada, cada vez mais, pela herança do extermínio nazista, a "thanatologia". Trata-se de uma herança que ecoa e provoca ressonâncias aparentemente desconectadas de sua origem. Vivemos a era do extermínio "soft", um verdadeiro eugenismo "banalizado": a reprodução perfeita, a favor da esterilização de sujeitos com déficits cognitivos e criminosos. A esterilização de mulheres pobres como forma de lhes roubar o direito de fantasiar é uma das outras invenções sinistras atuais. Será que o controle de natalidade precisa usar os mesmos métodos que usaram os nazistas com judeus, homossexuais e comunistas, antes de resolver exterminá-los? O fato é que o ideal da sociedade perfeita, herança do ideal da "raça pura", retorna, mais vivo do que nunca, sob os auspícios da medicina e da genética. Para Paturet a biogenética já não necessita mais utilizar câmaras de gás para a supressão, pura e simples, de crianças que outrora eram aceitas pela sociedade. Por exemplo: o aborto de bebês com Síndrome de Down. Caminharemos para uma exterminotocracia sob os auspícios da "biologização" da vida?

O nexo entre vida nua e a política contemporânea vem provocando um trauma quase que imperceptível (Peixoto Júnior, 2006) no sujeito pós-moderno, que por sua vez se encontra alheio a estas questões, submergido entre seus intermináveis bens de consumo dos quais é obrigado a gozar. Neste sentido, a biopolítica encontrará, cada vez mais, espaço para reduzir o ser falante à condição de vida nua privando-o da capacidade da fala que aponta para a singularidade de seu desejo. Haja vista o poder da metodologia estatística do DSM e do CID que encarrega a nova psiquiatria de tratar os sofrimentos humanos, exclusivamente, através de medicamentos e descartar totalmente o sentido do sofrimento, o sintoma como produção de linguagem; é a ordem vigente no momento atual.

Um mundo medicalizado e robotizado, produtor, em contrapartida, de uma série de sintomas que acusam insistentemente, a despeito de tudo, a existência de um sujeito faminto do desejo que não pode nomear.

Parodiando Ítalo Calvino (2003), para quem retornar à literatura a cada vez que o reino humano parece condenado ao peso da barbárie é um ato necessário, digo a mim mesma, frente ao estado de coisas atuais, que é preciso retornar a Freud. Começarei pelo texto "Por que a guerra?" (Freud, 1933a/1976), pela resposta à pergunta de Einstein sobre como "salvar o homem da crueldade, a loucura da destrutividade?". Com estilo inconfundível, Freud, longe de considerar, como era de se esperar, que a recusa à barbárie é uma consequência imediata da lógica da razão, postula que o horror à guerra resultaria, provavelmente, da renúncia de incomensuráveis gozos que o homem um dia experimentou. Tal renúncia teria determinado os "fundamentos orgânicos nas modificações de cânones estéticos e éticos" (Freud, 1933a/1976: 197) da humanidade. Indignar-se contra a crueldade, para Freud, é efeito de uma "intolerância constitucional" (Freud, 1933a/1976: 196). Apesar de ser plenamente conhecido o fato de que o constitucional em Freud não é apenas inato, mas fruto do que se inscreve na infância, no contexto em que esta expressão - "intolerância constitucional" - foi enunciada talvez tenha sido apenas um recurso do pai da psicanálise para se referir a uma determinada estratégia de combate à crueldade que só pode emergir no campo da ética.

De que forma seria possível, tempo em que a crueldade se tornou banal, à psicanálise sustentar tal estratégia em nosso século? Para tentar responder volto às últimas linhas do artigo "Da guerra e da morte", à proposta de Freud (1915/1976) em alterar, em base aos efeitos da Primeira Guerra, o velho ditado latino "Se queres preservar a paz, prepara-te para a guerra" da seguinte forma: "Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte" (Freud, 1915/1976: 301). O que Freud tinha claro ao formular esta inversão? O fato de que a "cultura de morte" de seu tempo havia ultrapassado o trans-histórico da guerra, ao ponto de fazer retornar o gozo da crueldade anterior a qualquer forma de socialização. Ouçamos suas palavras: "Nós descendemos de uma linha infinitamente grande de assassinos que tinham no sangue o gozo do assassinato, como talvez ainda nós mesmos o tenhamos" (Freud, 1915/1976: 301).

Feito este desvio, chego à "Conferência 31" (Freud, 1933b/1976), escrita no mesmo ano da carta a Einstein, onde está uma das mais claras, e talvez a única, formulações relativas à ética da psicanálise. Freud enuncia o conhecido adágio Wo es war, soll ich werden - "Onde isso estava, devo advir". Nesta ocasião, consciente dos limites da psicanálise, admite que os propósitos terapêuticos de sua disciplina se assemelham a uma obra da cultura, não diferente da drenagem de um rio caudaloso: à psicanálise caberia "fortalecer o eu, fazê-lo mais independente do supereu, [...] de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do isso. Onde isso estava, devo advir" (Freud, 1933b/1976: 74). O filósofo Zizek (2010), a partir da interpretação feita por Lacan deste moto - "o inconsciente não é apenas o terreno exclusivo das pulsões mas o lugar onde uma verdade traumática fala abertamente" -, traduz este mesmo mote da seguinte forma: "Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade", uma "verdade insuportável com a qual devo aprender a viver" (Zizek, 2010: 9).

Posto isto, me sinto em condições de fazer minha própria leitura do enunciado freudiano, "Se queres viver, prepara-te para a morte"; a saber: "Se queres preservar a vida, aproxima-te da crueldade que te habita e com a qual deves aprender a viver". Maneira de fazer com que o excesso de crueldade passe à palavra que diga não ao insuportável.

Maria, uma menina de 9 anos medicada com Ritalina devido a transtornos de hiperatividade, é acometida de terrores noturnos um dia depois do massacre no bairro de Realengo. Acorda no meio da noite aos prantos mas não quer contar para a mãe sobre a causa de seu choro e nem sobre o que sonhou. No dia seguinte, vai para a escola e duas horas depois a mãe recebe um telefonema da professora pedindo para ir buscar a filha. A menina começou a chorar sem parar depois que alguns alunos começaram a falar do massacre. A professora, a mesma que havia pedido à mãe alguns meses antes que levasse a menina para uma análise devido a dificuldades que apresentava para com os coleguinhas, diz à mãe que "achava que as crianças estavam com medo que outro maluco viesse atacá-las na escola e que Maria estava muito assustada". Conta também que tentara convencer a menina de que naquela escola ela estava bem protegida, que tinham muitos seguranças, etc. Na saída da escola a menina se recusa a dizer o porquê de estar chorando à mãe. À noite um novo ataque de angústia acorda a menina que não quer contar o que sonhou mas diz à mãe que quer se encontrar com Tati, sua analista. Ao acordar a mãe telefona para a analista que imediatamente se dispõe a receber Maria. Ao chegar ao consultório a menina se agarra à analista chorando convulsivamente. Timidamente ela diz: "você viu na televisão o que aconteceu naquela escola? Tenho muito medo". A analista, angustiada pelo sofrimento da menina, responde: "não tenha medo, já passou. Na sua escola isto não tem possibilidade de acontecer, tem segurança, não entra qualquer um, etc". A menina responde zangada: "você não está entendendo: estou com medo de ser como o assassino. Tive um sonho que estava com uma faca matando o pessoal da minha turma". A analista, então, percebe que, diferente das outras crianças, a menina se identificou com o assassino e não com as crianças que morreram. Mas esta percepção não a livrou da angústia e diz para a menina que "todos nós, inclusive ela própria, às vezes sentimos muita raiva de alguém e temos vontade de sair matando". E em uma tentativa de desidentificar a criança do assassino fala para ela que "o assassino era maluco e que ela apenas havia sonhado ou pensado, que não havia hipótese de ela fazer uma coisa desta". A sábia menina pergunta: "como é que eu posso ter certeza disto?". A analista percebe sua própria resistência em ouvir a paciente e se cala. Fez-se um grande silêncio e, passados alguns minutos, a menina pergunta: "do que é que vamos brincar hoje?". E a analista responde: "de maldade!". Maria começou então a guerrear e a encenar cenas de crueldade contra a analista que, retomando o lugar de depositário do objeto a, leva a menina a legendar o real através da brincadeira. O jogo de erotização da crueldade encenado na sessão fez com que Maria passasse a dormir tranquila.

Trouxe esta vinheta clínica para dizer que minha confiança no futuro da psicanálise consiste em saber que há uma coisa que desde a sua fundação só ela, com seus meios específicos, pode fazer: reenviar o sujeito ao eco de sua própria voz para fazer emergir, como diziam os gregos, a vida que caberia ao estar-no-mundo humano, ou seja, a vida qualificada pela linguagem. Esta virtude da experiência germinal da psicanálise, o ponto zero a que retornamos em nosso cotidiano para que algo se inscreva, é a segunda proposta que tenho a fazer aos que exercem a psicanálise nos tempos atuais.

 

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Recebido em 15 de julho de 2011
Aceito para publicação em 27 de setembro de 2011

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