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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Sobre o legado de Breuer e Anna O.

 

On the legacy of Breuer and Anna O.

 

 

Fabiano Chagas Rabêlo

Analista Praticante, Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL - Fórum Fortaleza), Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

 

 


RESUMO

Este artigo parte da investigação do laço de trabalho entre Freud e Breuer em torno do caso de Anna O. para se perguntar sobre o legado de Breuer, que situamos em duas modalidades: uma vertente técnica, representada pelos procedimentos do método catártico; outra, dos resultados, caracterizada pelo produto da aplicação dessa técnica. A respeito dos resultados, destacamos o interesse maior de Freud por indicações fragmentadas e laterais que emergem do relato de Breuer do que por sua teorização. Nessa transmissão, equívocos, lacunas e lapsos são de extrema importância. Freud, ao seu turno, não só foi capaz de escutar essas indicações, como também de acolhê-las e elaborá-las a partir de sua práxis.

Palavras-chave: linguagem; afeto; corpo; sexualidade; método catártico.


ABSTRACT

This paper investigates the association between Breuer and Freud around the treatment of Anna O. We situate Breuer's legacy in two modalities: a technical modality, represented by the cathartic method's procedures, and a result's modality, characterized by the product of the application of this technique. Regarding the results, we underline a more intensive interest of Freud for fragmented and lateral indications that emerge from Breuer's text rather than for Breuer's theorization itself. In this transmission, mistakes, gaps and lapses are extremely important. Freud, for his part, was not only able to hear these statements, but also to accept them and elaborate them in his practice.

Keywords: language; affect; body; sexuality; cathartic method.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste trabalho resgataremos o debate entre Breuer e Freud para situar o campo discursivo de onde emerge a proposta do Inconsciente. Almejamos responder as seguintes perguntas: qual o legado de Breuer e qual o uso que Freud faz do saber transmitido por seu interlocutor.

Para desenvolver essas questões, comentaremos alguns capítulos dos "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/1996): os prefácios, a comunicação preliminar e o caso de Anna O. Enfatizaremos, por sua importância, o capítulo dedicado ao caso clínico.

Acreditamos que o que empreendemos aqui não se trata de uma investigação de cunho exclusivamente histórico ou epistemológico. Nosso objetivo primeiro é inquirir as condições que possibilitaram e possibilitam a práxis psicanalítica.

 

"COMUNICAÇÃO PRELIMINAR": UM CAPÍTULO ESCRITO A QUATRO MÃOS

De saída, salientamos a estrutura peculiar dos "Estudos sobrea histeria" (Breuer & Freud, 1895/1996), doravante "Estudos". Trata-se de um livro heterogêneo, polifônico e - ao mesmo tempo - autoral. Sua espinha dorsal é a experiência advinda dos casos clínicos, cuja exposição é acompanhada por uma reflexão teórica e metodológica. Coube a Freud o relato de quase todos os casos clínicos, com exceção de "Anna O.", e o capítulo que encerra o livro. Breuer, por sua vez, redigiu o capítulo dedicado às teorias científicas sobre a histeria e o caso clínico que iremos comentar. Destacamos que esse único relato de atendimento no livro empreendido por Breuer teve um papel de extrema importância para a psicanálise. Por essa razão, seu comentário constituirá o centro de gravidade deste trabalho.

Como ponto de partida, remetemos o leitor ao prefácio da primeira edição (Breuer & Freud, 1895/1996: 24). Nele, os autores afirmam que possuem diferenças de opiniões e interpretações sobre os fenômenos relacionados à histeria, todavia sustentam estarem de acordo acerca dos aspectos fundamentais das teses apresentadas. Perguntamos: quais as teses fundamentais de consenso? Quais os pontos de discordância?

Nesse capítulo de abertura, publicado três anos antes do livro na forma de artigo, percebemos o esforço de Breuer e Freud em sintetizar numa só explicação suas elaborações sobre os fenômenos histéricos. Esse capítulo e o prefácio da primeira edição talvez sejam as únicas partes dos "estudos" escritas realmente em conjunto.

Gostaríamos de tecer um comentário sobre o subtítulo desse capítulo, em alemão: "Vorläufige Mitteilung". "Vorläufig" possui o sentido de "provisório", enquanto a palavra utilizada com mais frequência para traduzi-la, "preliminar", indica o caráter introdutório, antecipatório do texto. Ao situarmos o lugar e a função desse capítulo no livro, podemos tomar os dois sentidos como pertinentes e suplementares. Trata-se de um texto ao mesmo tempo provisório, no sentido de que algumas das ideias apresentadas - como a dos estados hipnoides - serão descontinuadas; e antecipatório, pois, se levarmos a sério a recomendação de Freud no prefácio da segunda edição, os "Estudos" trazem consigo as sementes (Die Keime) do que irá se tornar os pilares da técnica analítica.

Posto isso, indagamos: onde podemos encontrar essas "sementes" e como elas são depuradas no decorrer do livro? Para responder a essa pergunta, a leitura atenta da "comunicação preliminar" constitui um passo valioso, uma vez que encontramos aí uma apresentação resumida, objetiva e intuitiva do método catártico, que se abre, como veremos, para diferentes interpretações e usos.

Nesse capítulo, Breuer e Freud defendem que os fenômenos histéricos são constituídos a partir de um processo de dissociação da consciência desencadeado por um trauma. Afirmam que esse trauma é efeito da ação de afetos represados. Constatam em seguida que os sintomas histéricos são prenhes de sentido e simbolismo, o que os leva a esboçar uma sofisticada relação causal entre o fenômeno patológico e os fatores que o desencadearam.

Ao escreverem que as histéricas sofrem de reminiscências, sustentam que o registro do traumático é resultado de um processo complexo e plástico determinado pelas quantidades de afeto agregadas às representações. Daí o trauma não poder ser caracterizado como resultado direto da ação do ambiente. Ele é, antes de tudo, efeito no psiquismo de uma intensidade de afeto que ultrapassa a capacidade do aparelho psíquico de suportá-la, elaborá-la, ou escoá-la por ab-reação.

Essa capacidade de resiliência psíquica para suportar quantidades de afetos é variável de pessoa para pessoa. Lembramos que, para os autores, as intensidades dos afetos se acumulam através da formação de cadeias entre as representações "dissociadas da consciência". Dessa forma, mesmo quando não manifestas, tais representações demonstram capacidade de organização e articulação entre si.

Temos aí uma lógica temporal diferenciada: a atualidade da lembrança é função da intensidade de afeto atrelado a ela. Assim, as lembranças patogênicas passam a se situar em relação à consciência como um "corpo estranho" - conforme a terminologia sugerida por Breuer -, podendo permanecer em estado latente por um longo período. Apenas em um momento posterior determinado pela dinâmica das forças em jogo tornam-se operantes, impulsionando a produção dos fenômenos histéricos. Logo, o efeito patogênico não é uma característica inerente às lembranças. Essas só adquirem o poder de contribuir para formação de sintomas por se relacionarem dentro de uma cadeia com outros complexos de representações já anteriormente carregados de afeto.

Coube a Freud a iniciativa de formular o conceito de conversão, caracterizado como a transformação do excesso de afeto em sintoma corporal. Essa transformação não é efeito exclusivo de reações biológicas e físicas. Ela pressupõe, como apontamos, a intervenção de cadeias associativas.

Encontramos nesse ponto a principal razão pelo qual os sintomas histéricos colocam o saber médico em questão. A "anatomia" envolvida no sofrimento corporal das histéricas aproxima-se do fantástico quando analisada sob a ótica da fisiologia do final do século XIX. Nos sintomas conversivos não é possível identificar nenhuma lesão, infecção ou anomalia física congênita que justifique os sofrimentos relatados. Seu mecanismo de formação reside na alteração ou inibição da função de órgãos.

É interessante notar que essa abordagem pressupõe que os sintomas corporais conversivos exercem uma função de equilíbrio na economia psíquica. Se, por um lado, são "corpos estranhos", por outro devem ser entendidos como uma resposta, uma produção psíquica complexa para um processo anterior que gera incessantemente um excesso de energia psíquica. O sintoma corporal vem abrandar uma pressão psíquica - o sofrimento psíquico, a angústia - que demanda um destino para esse quantum de energia excedente.

Por essa via - partindo dos sintomas histéricos e seguindo pela investigação das lembranças investidas de afeto - Breuer e Freud chegam ao reconhecimento da sexualidade como uma das principais fontes de energia para o psiquismo. Podemos notar que Breuer, ainda que admita a importância da sexualidade na produção dos sintomas histéricos, não aceita o passo seguinte trilhado por Freud: o de atribuir à sexualidade um papel central na etiologia da histeria.

Isso pode ser constatado no prefácio da primeira edição, onde os autores reiteram que estão em linhas gerais de acordo com o método de tratamento e o mecanismo de formação dos sintomas histéricos, mas distanciam-se na avaliação das hipóteses formuladas sobre a causa da cisão da consciência e do represamento de afeto.

Abordemos primeiro os pontos de acordo. O método de tratamento apresentado consiste em produzir o escoamento dos afetos represados através da fala com auxílio da hipnose. Dessa forma, as reminiscências são uma a uma esvaziadas de sua carga afetiva. O objetivo final desse processo é o abrandamento do sintoma e, quando possível, sua eliminação. Esse método, em referência à tragédia grega, é denominado catártico; seu princípio, ab-reação - o escoamento dos afetos represados.

Ao seguir esse caminho, Freud e Breuer desenvolvem os rudimentos de uma teoria sobre a linguagem em conjunção com o pensamento e o corpo que aponta para os efeitos de uma realidade psíquica até então ignorada. Pela aplicação dessa técnica, o sintoma adquire o estatuto de portador de uma mensagem cifrada de uma história arraigada no corpo. Cada vez mais essa história se mostra profundamente imbricada com representações vinculadas a essa outra realidade. A reintegração dessa história através do relato de cada paciente é o elemento terapêutico diferenciado trazido pelo método catártico.

Freud identifica aí uma aposta implícita: que "aquilo que foi constituído por uma via possa ser desfeito pelo mesmo caminho" (Freud, 1910/2001: 112). Salientamos nessa explicação o que consideramos o ponto de esteio dessa proposta: a conjunção de processos simbólicos e energéticos dentro de uma perspectiva dinâmica.

A etiologia da histeria, por outro lado, é referida como um campo obscuro e controverso. Como já assinalamos, a controvérsia se faz notar principalmente entre os próprios autores.

A hipótese de Breuer salienta que a causa primeira da histeria pode ser encontrada na interferência de um estado anormal de funcionamento da consciência denominado "hipnoide". Trata-se de uma situação limítrofe entre o sono e a vigília que torna o doente mais suscetível à sobrecarga de afeto. Nessa linha explicativa, o que determina o desencadeamento da histeria é o fator hereditariedade. Em última instância, trata-se de uma predisposição congênita que gera um funcionamento anormal do cérebro e da consciência.

Temos então entre Freud e Breuer uma discussão polarizada em torno de qual fator exerce maior influência na etiologia dos fenômenos histéricos. Trata-se de uma querela entre "determinismo psíquico versus determinismo fisiológico" (Freud, 1914/1999: 48). A depender da escolha que se faça, a hipótese dinâmica esboçada para a formação dos sintomas pode ser valorizada e interpretada de maneiras distintas.

Breuer aceita a tese de que, enquanto um dos componentes da energia psíquica, a sexualidade participa da formação dos sintomas histéricos. Não reconhece, contudo, o alcance ampliado da sexualidade na origem da dissociação psíquica. Essa é a direção para onde Freud é levado pela escuta das histéricas.

Mesmo diante dessas divergências, os autores optam por publicar as duas hipóteses lado a lado, cada um, ao seu modo, buscando conciliar sua opinião com a de seu colaborador. Nas palavras de Freud, esse período é marcado por uma tentativa de conciliação de vida curta.

No decorrer dos "Estudos" é possível acompanhar o equilíbrio desse arranjo se fragilizar: enquanto Freud vai progressivamente dando mais ênfase ao trauma e à sexualidade, Breuer continua a sustentar a primazia dos estados hipnoides e, cada vez mais, mostra-se mais refratário às ideias de Freud. Essas duas hipóteses de trabalho são confrontadas nos casos clínicos expostos no livro.

 

O TRATAMENTO DE ANNA O.

O valor do caso de Anna O. está em seu ineditismo. Encontramos nele a descrição do surgimento das diretrizes técnicas do método catártico.

Freud, referindo-se ao tratamento de Anna O., aponta Breuer como aquele a quem deve ser concedido o mérito de ter trazido a psicanálise à luz. Salienta que ele próprio não teve participação "nesses primeiros momentos iniciais" ("an der ersten Anfängen") da psicanálise (Freud, 1910/2001: 107). Não obstante, no mesmo texto, diz ainda que coube a ele, por sua conta e risco1, levar adiante a investigação principiada por Breuer. Em outra passagem, numa nota de 1923, traz pra si, sem reservas (uneingeschränkt), toda a responsabilidade (Verantwortung) sobre a descoberta do inconsciente.

No prefácio da segunda edição dos "Estudos", em 1908, Breuer afirma laconicamente que não se deve creditar a ele nenhuma contribuição ao desenvolvimento do método catártico posterior à publicação do texto original, em 1895.

O que surgiu no tratamento de Ana O. que levou Freud a sustentar quase 15 anos depois da publicação dos "Estudos" que Breuer havia sido de fato o primeiro psicanalista? E o que leva Breuer, em 1908, a repudiar essa "autoria"?

Em outro escrito, Freud (1914/1999) comenta sua parceria com Breuer e reitera sua responsabilidade diante do surgimento da psicanálise. Declara que Breuer só tomou a iniciativa de publicar o caso de Anna O. por sua influência.

Lembramos que esse tratamento aconteceu entre os anos de 1880 e 1882 e que a primeira formulação do método catártico só aconteceu em 1892. Para contextualizar alguns acontecimentos desse período envolvidos na origem do método catártico, recorremos à narrativa de um dos biógrafos de Freud (Gay, 1989).

No início da década de 1880, após a conclusão do curso de medicina, Freud, por razões financeiras, distancia-se dos estudos de neuroanatomia em laboratório e passa a trabalhar como médico no hospital de Viena. Em consequência dessa mudança de atividade, passa a conviver com os problemas envolvidos no tratamento dos "doentes dos nervos": o diagnóstico diferencial com patologias orgânicas, as fracassadas tentativas de se estabelecer uma etiologia fisiológica, as suspeitas de simulação de sintomas pelos doentes, a descrença sobre a eficiência dos recursos terapêuticos disponíveis etc.

Nessa primeira metade da década de 1880, Freud frequenta a casa de Breuer informalmente e, em algumas dessas visitas, testemunha as primeiras referências sobre o tratamento de Anna O. e o uso da hipnose. Em seus textos, Freud não detalha o conteúdo dessas conversas, todavia elas o influenciaram intensamente.

No primeiro semestre de 1885, Freud obtém uma bolsa de estudos, que utiliza para estagiar em Paris, com Charcot, que também utilizava a hipnose para tratar pacientes histéricos. Nos países de língua alemã, esse procedimento era visto com severa desconfiança.

Concluído o estágio, Freud retorna para Viena, encerra suas atividades no hospital da cidade e passa a atender em seu próprio consultório. Em 1889 vai a Nancy conhecer o trabalho de Bernheim e seus colaboradores, que desenvolviam pesquisas sobre a hipnose relacionando-a à sugestão.

Esses acontecimentos da segunda metade de 1880 preparam a retomada do debate entre Freud e Breuer em torno do caso de Anna O. A partir de 1890, Freud incentiva Breuer a organizar, elaborar e registrar os comentários sobre esse caso, ao passo que ele próprio já problematiza os tratamentos que conduz.

Ao recordar esse período, diz que só se tornou médico a contragosto ("Ich bin nur ungern Ärzt geworden") e enumera os motivos que o levaram a se interessar pelo tratamento das histéricas: a vontade de ajudar os doentes nervosos ou, pelo menos, entender ("verstehen") alguma coisa das condições, dos estados ("Zustände") dessas pessoas (Freud, 1914/1999: 46).

Em um artigo contemporâneo à parceria com Breuer em torno do caso de Anna O., Freud (1890/1997) indica os motivos que o levaram a se interessar pela aplicação terapêutica da hipnose. Para ele, a palavra ("Wort") influencia e modifica o corpo. Esse fato, tão explorado por diversas práticas terapêuticas da antiguidade, é menosprezado pela medicina do século XIX que, arraigada no paradigma das ciências naturais, privilegia intervenções físicas e químicas na cura de doenças. Essa escolha da medicina encontra um limite nos tratamentos das chamadas doenças ou males dos nervos.

Argumenta que muitas das queixas descritas pelos "doentes dos nervos" não se deixam explicar por lesões ou disfunções fisiológicas, muito embora sua etiologia seja situada como uma alteração global do funcionamento do sistema nervoso central. Defende que essas queixas colocam em primeiro plano a influência da vida psíquica (anímica) no corpo, que padece sob efeito da palavra.

O afeto, para Freud, está no centro dessa polêmica. Ele pode ser definido como todas as alterações do corpo que ocorrem por influência de mudanças nos estados da alma. Em suma, o afeto é resultado daquilo que da alma afeta o corpo.

Propõe daí uma forma cientificamente orientada de tratamento das doenças nervosas, que denomina tratamento anímico ou psíquico. Para ele, essa modalidade de tratamento encontra na palavra o seu principal instrumento (das wesentliche Handwerkszeug) de intervenção. Defende que "as palavras de nosso discurso diurno não são outra coisa senão magia esmaecida" (abgeblasster Zauber) (Freud, 1890/1997: 17). Em seguida, identifica nesses efeitos "mágicos" da palavra a fonte dos recursos de que grupos, seitas e religiões se utilizam para produzir curas e mudanças subjetivas. Declara que essas práticas fazem uso de "muitas forças pulsionais genuinamente humanas" (mehrere echt menschliche Triebkräfte); e continua: "onde forças tão poderosas atuam em conjunto, não é de se espantar se, em algumas situações, o objetivo (almejado) for realmente alcançado" (Freud, 1890/1997: 24).

Freud, a partir de Bernheim, defende que o efeito de sugestão pode ocorrer com ou sem hipnose. No primeiro caso (hipnose com sugestão), situa a sugestão na fala do hipnotizador e estabelece uma instigante comparação: entre hipnotizado e hipnotizador é forjada uma relação (Rapport) similar à da criança diante dos cuidados da mãe que a alimenta ou diante dos pais amados (geliebten Eltern). Defende que há na hipnose a manifestação de uma força psíquica até então não pressentida que produz efeitos corporais incontestáveis. Diz ainda que uma submissão (Unterwerfung) semelhante à engendrada pela sugestão sob hipnose também pode ser encontrada nas relações amorosas (Liebesverhältnissen).

Podemos dizer que o enigma surgido da investigação dos efeitos da palavra no corpo aproxima Freud do uso terapêutico da hipnose e da sugestão. Esse interesse, por sua vez, só se justifica quando o relacionamos ao impacto duradouro que o relato do tratamento de Anna O. exerceu sobre ele a partir do início dos anos 1880. Também é lícito sustentar que, já nessas primeiras elaborações, uma intuição sobre a sexualidade infantil se faz notar.

Freud comenta os motivos que o levaram a estreitar os laços de trabalho com Breuer a partir de 1890. Diz ter chegado à conclusão de que, através do método de Breuer, poderia obter uma via de investigação mais eficaz do que se aplicasse técnicas diretivas baseadas em proibições por sugestão ("ablenkende suggestive Verbot"). Constata que com o método catártico seria possível alcançar a satisfação de seu desejo de saber ("Befriedigung der Wissbegierde") (Freud, 1914/1999: 47).

É possível encontrar no próprio Freud (1905/1997) mais indicações sobre a razão de sua preferência pelo método catártico. Utilizando-se de uma comparação feita por Leonardo da Vinci entre o fazer do artista na pintura e na escultura, Freud estabelece uma analogia para delimitar a diferença entre o tratamento analítico e as psicoterapias que operam por sugestão. Enquanto na sugestão e na pintura há o acréscimo de novos elementos (significação e tinta) no que já existe (o sintoma e a tela), no tratamento analítico e na escultura retira-se parte dos elementos já presentes (na pedra e no sintoma) para engendrar uma mudança de estado (a escultura, a cura).

É lícito afirmar daí que é nessa postura de abstinência, ainda que incipiente, em ocupar o lugar de mestre e adicionar significações ao sintoma que Freud identifica no método de Breuer a oportunidade de avançar na investigação do sofrimento das histéricas.

Devemos salientar ainda que o valor do tratamento de Anna O. não se limita à formulação do método catártico. Talvez mais importante seja a transmissão no relato de Breuer daquilo que se produziu a partir da aplicação desse método.

Nesse ponto, remetemos o leitor mais uma vez à "História do movimento psicanalítico", onde Freud (1914/1999) lança uma hipótese para a recusa de Breuer da primazia da sexualidade na etiologia da histeria, relacionando-a com o fim abrupto do tratamento de Anna O. Referindo-se ao conceito de transferência, escreve que Breuer, após avançar na investigação dos sintomas de sua paciente, deve ter sido confrontado com fortes indícios da participação de componentes sexuais no seu adoecimento e tratamento.

Freud pondera que seu interlocutor não disse ou escreveu nada que pudesse embasar tal suposição. Sua afirmação constitui uma hipótese para explicar a recusa de Breuer em reconhecer a fartura de referências à sexualidade presentes no caso de Anna O. Não obstante, defende que é possível respaldar seu argumento a partir de inferências, todas elas pertinentes e plausíveis, deduzidas de diversas declarações do próprio Breuer.

Breuer até constata que há um interesse especial de Anna O. destinado à sua figura, mas recusa reconhecer que esse interesse possui uma raiz sexual. Para ele, nesse caso, "o elemento sexual era surpreendentemente (erstaunlich) não-desenvolvido (Unentwickelt)" (Breuer & Freud, 1895/1996: 42).

Para Freud (1914/1999), as evidências da presença de componentes sexuais no adoecimento de Anna O., quando sua aceitação se impôs em razão de sua intensidade e urgência, devem ter sido avaliadas por Breuer como obstáculos ao tratamento. Sugere com isso que o término do tratamento ocorreu em função de um "acontecimento funesto" (untoward event).

Por meio da publicação de uma carta endereçada em 1932 a Stefan Zweig (citado por Gay, 1989: 77), sabemos que o acontecimento funesto mencionado por Freud não se tratou apenas de uma suposição lógica. Nessa carta, Freud descreve com mais detalhes o desfecho da participação de Breuer no tratamento de Anna O.

Após um período de remissão dos sintomas, Breuer é chamado às pressas para cuidar de uma nova crise. Ao chegar à casa de Anna O., encontra-a contorcendo-se de dor - à semelhança de um trabalho de parto - enquanto anuncia a chegada do "filho do doutor B.". Face a essa cena, Breuer opta por encaminhar sua paciente aos cuidados de outro profissional.

Freud, ao invés de avaliar tal acontecimento como um estorvo para o trabalho terapêutico, retira daí uma convicção: os sentimentos de carinho e ódio presentes no tratamento de neuróticos constituem "a prova mais inabalável" (der unerchütterlicheste Beweis) (Freud, 1914/1999: 50) da intensa participação de forças pulsionais de origem sexual na produção dos sintomas neuróticos. Conclui daí que tais forças devem ser levadas em consideração no manejo do tratamento.

Dito isso, afirma que Breuer foi o primeiro a demonstrar, por meio de uma atitude de repúdio e indignação, o valor de sua tese da primazia do fator sexual na produção das neuroses. De acordo com Freud, a mesma atitude de repúdio que se encontra na origem da dissociação psíquica nos neuróticos também está presente naqueles que são responsáveis em conduzir o tratamento desses pacientes.

Dessa forma, o primeiro tratamento em psicanálise foi adiado por causa do recalque daquele que poderia vir a ocupar o lugar de analista. Breuer só se envolve no tratamento de Anna O. na medida em que vi-gora a sua ignorância sobre o fato de que está respondendo a um investimento de ordem sexual. Essa ignorância é ameaçada pela emergência de um saber. Paradoxalmente, esse saber surgido da boca de Anna O., ainda que repudiado por Breuer, é transmitido em seu próprio relato.

Com isso, o recuo diante do tratamento de Anna O. e os hiatos na apresentação de Breuer - as parcas referências sobre a conclusão do tratamento, principalmente quando colocamos em contraste com a riqueza de detalhes do caso - funcionam como um elo nessa transmissão.

Freud também aponta os lapsos como outro caminho de acesso a esse saber. Cita uma declaração informal que escutou de Breuer a respeito de outra paciente doente dos nervos. Ao se referir à origem de seu mal, Breuer afirma que, nesses casos, "trata-se sempre (immer) de segredos da alcova" (Geheimnisse des Alkovens). Freud, surpreso, pergunta o que ele queria dizer com isso. Breuer reitera que está se referindo aos segredos "da cama de casal" (des Ehesbett) (Freud, 1914/1999: 50).

Sobre esse ponto, Freud relata que Breuer não foi o único, em um momento de "descuido", a emitir testemunho desse saber. Charcot e Chrobak, ginecologista da universidade de Viena, agiram de forma semelhante. Charcot diz a respeito de um caso clínico relatado por um colaborador: "Mas, nesses casos, é sempre a coisa genital, sempre... sempre... sempre" (Freud, 1914/1999: 51).

Destacamos a presença da palavra "sempre" tanto na fala de Breuer (immer) como na de Charcot (toujours). Nesse último, o efeito de ênfase e generalização próprio desse advérbio é acentuado pela repetição.

Ainda acerca dessas declarações, Freud tece o seguinte comentário: "Todos os três homens me transmitiram uma compreensão (Einsicht), que eles próprios, a rigor, não possuíam" (Freud, 1914/1999: 50). Quando confrontados por Freud alguns anos depois, tanto Charcot quanto Breuer negaram a autoria do que fora dito.

Embora essas declarações tenham sido testemunhadas por Freud mais ou menos na mesma época, a relação entre elas enquanto corroborando a tese da primazia da sexualidade só foi explicitada em 1914, quase 20 anos depois de publicados os "Estudos". Freud identifica nesse episódio um "esquecimento" de sua parte. Algo operou para além de sua apreensão consciente dos fatos.

Seguindo esse mesmo mote, é interessante notar os avanços que Breuer opera na medida em que age "sem pensar". Remetemos o leitor à descrição do caminho através do qual Breuer produz a fórmula do método catártico. Diz que não se trata de uma invenção sua. Isto é, não houve a princípio uma hipótese de sua autoria que foi colocada à prova em uma situação prática controlada. Sua participação como "inventor" se deu na medida em que consentiu em acompanhar com sua escuta o movimento espontâneo da fala de Anna O. Com o desenrolar dos acontecimentos, chega à descrição de uma técnica terapêutica. Ele próprio se diz surpreso ("überrascht") com o produto do que chama de sequência de resoluções espontâneas ("Reihe spontaner Erledigungen") (Breuer & Freud, 1895/1996: 66).

A partir daí, podemos melhor caracterizar a apropriação que Freud faz de Breuer. Seu interesse recai menos nas formulações teóricas que Breuer forjou do que nas indicações laterais e fragmentadas que emergem de sua exposição. Do lado de Breuer, percebemos a adoção de uma atitude de reserva diante das hipóteses freudianas que extrapolam o campo da neurologia, justamente aquelas hipóteses que radicalizam o potencial subversivo de seu próprio método.

Para desenvolver esse argumento, partimos de um comentário sobre o emprego do termo "Inconsciente" (Unbewusst) (Breuer & Freud, 1895/1996: 65) no caso de Anna O., grafado aqui entre parênteses e substantivado. Breuer utiliza esse termo em destaque, indicando através desse recurso que essa terminologia é estranha ao seu modo de pensar.

É patente sua preferência pela expressão "segundo estado de consciência". Para ele, não há comunicação entre as duas partes da consciência. Quando muito, há obliteração de uma pela outra. O corolário desse argumento é a designação da consciência como sede dos processos psíquicos normais, contrapondo-a ao "segundo estado", cujo funcionamento "assemelha-se ao sonho" (Breuer & Freud, 1895/1996: 64). Associa esse "estado anormal" à emergência dos fenômenos alucinatórios, dos hiatos de memória, além das inibições e ações involuntárias do aparelho motor. Não hesita em usar as palavras "alienação" e "psicose" para se referir aos doentes sob efeito desse estado alterado da consciência.

Nessa explicação é possível identificar o patológico e a normalidade coabitando a mesma estrutura psíquica sem, contudo, se atravessarem. Disso resulta uma descrição repleta de oximoros. É importante notar que, nessa aproximação segmentada e dualista dos opostos, Breuer lança mão de uma analogia com eventos psíquicos da vida normal - o sonho, os lapsos de memória e as parapraxias - para explicitar o funcionamento do segundo estado de consciência.

Temos aí uma indicação que não passou despercebida a Freud. É através da investigação dos fenômenos relacionados ao segundo estado de consciência e da imbricação do patológico com a normalidade que desenvolve a hipótese do Inconsciente.

 

CONCLUSÃO

O método catártico representa uma contingência que antecedeu e preparou o surgimento da psicanálise. Seu diferencial reside na valorização da linguagem e da história individual no relato de cada paciente. Além disso, quando comparado com outras práticas em voga no fim do século XIX, esse procedimento adota uma postura de maior abstinência quando se trata de adicionar significações ao sintoma. A partir da aplicação dessa técnica, pela investigação de fenômenos situados na conjunção entre representação, afeto e corpo, resultaram indicações sobre a existência de outra realidade, a psíquica.

Apesar de sua descoberta, Breuer não é capaz de sustentar a emergência daquilo que se perfila como o ponto de esteio da passagem para o discurso analítico: o lugar de semblante de objeto causa do desejo. A recusa desse lugar é solidária à refutação da etiologia sexual da histeria, o que gera na sua escrita uma tensão entre o saber que seu método aponta e o conhecimento científico a que ele se refere. Atravessado por essa tensão, seu relato veicula um saber que é transmitido pelo dizer, na enunciação, e que, em boa parte, ele próprio desconhece. Nessa transmissão, equívocos, lacunas e lapsos são de extrema importância. Freud, ao seu turno, não só foi capaz de escutar essas indicações, como também de acolhê-las e elaborá-las a partir de sua práxis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Gay, P. (1989). Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Literalmente: com os próprios punhos (auf eigene Faust) (Freud, 1910/2001: 120).

 

 

Recebido em 30 de dezembro de 2010
Aceito para publicação em 12 de agosto de 2011

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