SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43 número2Sujeito, alienação e desconhecimento: sobre Lacan e o jovem Marx índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro dic. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

O supereu: imperativo de gozo e voz1

 

The superego: imperative of jouissance and voice

 

 

Naiana Moura Lopes CordeiroI; Angélica BastosII

IPsicanalista, psicóloga do Município do Rio de Janeiro e da Polícia Militar do Rio de Janeiro
IIPsicanalista, professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por tema o supereu, conceito que atravessa modificações e deslocamentos na obra de Freud e no ensino de Lacan. Seus objetivos consistem em traçar o percurso que conduz à instância superegoica entendida como voz que proíbe a voz do gozo e apontar, a título de conclusão, consequências da abordagem do supereu como imperativo de gozo para a discussão sobre o mal-estar contemporâneo e para o tratamento psicanalítico. Seu procedimento reside em discutir essa instância, inicialmente identificada ao imperativo categórico, em evidenciar a lei insensata que encerra, distinguindo-a e articulando-a ao ideal, para, então, discernir o imperativo de gozo, assim como a dimensão objetal nele envolvida, dimensão que, com base no ensino lacaniano, define a voz como objeto a.

Palavras-chave: supereu; gozo; objeto a; voz.


ABSTRACT

The subject of this paper is the superego, a concept that crosses changes and displacements in Freud's work and Lacan's teaching. Its objectives are to trace the path that leads to the superego instance, understood as a voice that prohibits the voice of jouissance, and to point out, in conclusion, the consequences of the superego approach as imperative of jouissance to the discussion on contemporary discontent and psychoanalytic treatment. The procedure of this paper is to discuss this instance, first identified with the categorical imperative, clearly showing the senseless law that it encloses, distinguishing it and connecting it to the ideal, to then discern the imperative of jouissance, as well as the object dimension involved in it. Such dimension, based on Lacan's teaching, determines the voice as object a.

Keywords: superego; jouissance; voice; object a.


 

 

INTRODUÇÃO

Desde a narrativa homérica, a voz surge em sua dupla face, encantadora e aterrorizante. Ulisses precisa atar-se ao mastro de sua embarcação para não se deixar enlevar pelo belo canto das sereias, que seduz e arrasta o enfeitiçado para a perda.

Enquanto o bel canto e a ópera dedicaram-se à beleza da voz, colocando-a a serviço do prazer estético, coube a Freud, a partir da incidência da lei moral na consciência humana, tal como destacada por Kant, isolar a dimensão vocal avassaladora do imperativo categórico no supereu. O imperativo categórico envolve um imperativo de gozo, conforme Lacan o aborda como forçagem a uma satisfação impossível. Além disso, ele circunscreve na dimensão do imperativo uma vertente objetal, o objeto vocal, pois a voz encerra um a mais, algo além do que se pode dizer e mais além do que as palavras podem predicar como seus atributos.

O presente artigo traça o caminho que vai da lei ao gozo na teoria da clínica psicanalítica. Neste trajeto, o supereu vai pouco a pouco perdendo campo como uma instância que exige renúncia pulsional e ganhando corpo como imperativo de gozo. Nossos objetivos são, por conseguinte, discutir como o supereu para além da voz que proíbe, a voz da lei, vem a ser a voz do gozo, objetal, e extrair consequências clínicas dessa abordagem do imperativo que comanda o sujeito.

Referenciado por Freud ao declínio do Complexo de Édipo e à proibição, o supereu não se confunde com uma lei sem gozo; ao contrário, veicula o imperativo de gozo, uma lei discordante, que manda gozar: proíbe o gozo e o incita pela via da culpa. Em outros termos, o supereu articula-se inicialmente à noção de voz como lei, voz proibitiva, para apresentar-se como voz imperativa, voz objetal, tal como o apreendemos na experiência psicanalítica.

Sabe-se que a entrada na linguagem produz uma perda de gozo e que a lei delimita um impossível, um limite que não pode ser franqueado. Para os seres falantes, inseridos no campo da linguagem, o supereu comparece como uma tentativa de desconhecer esse impossível, franqueando o limite da lei, ordenando: "é impossível, mas mesmo assim: goze!". Além disso, como veremos a seguir, essa exigência maciça aumenta a culpabilidade não em função do interdito da Lei, mas sim pela exigência do Ideal.

 

LEI E GOZO NO SUPEREU FREUDIANO: UMA LEI INSENSATA

Enquanto na primeira tópica o germe do supereu aparece mais frequentemente associado à censura, à consciência moral, a partir de "O ego e o id" (Freud, 1923/1990) depreende-se que o supereu é irredutível à consciência, pois aparece outra vertente dessa instância, com seu vínculo profundo no isso. Em outros termos, não se pode mais pensá-lo como uma instância filiada ao princípio de realidade, que vise somente à adequação aos ideais da cultura, à moralidade, à censura.

Ao definir o supereu, Freud traz essa ideia fundamental: "o supereu, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas" (Freud, 1923/1990: 47). Ele tem uma dupla função: ao mesmo tempo que é fruto da dissolução do Édipo, deve também recalcar esse complexo, o que pode expressar-se pelo singular e impraticável mandamento do supereu com seu caráter compulsivo: deves ser como teu pai e não deves ser como teu pai.

Nesse momento, o supereu é tanto herdeiro do complexo de Édipo, devido à identificação ao pai idealizado, pai que legisla, quanto é herdeiro do isso, por estar ligado ao que há de mais pulsional num sujeito: incesto e parricídio. Vemos a instância superegoica situada no entroncamento de desejo e lei, dando origem a um imperativo insensato, que impele o sujeito a obedecer a ordens sem sentido, dentro de um regime de crueldade.

Freud (1923/1990) aponta que o supereu está vinculado estreitamente ao desfecho do complexo de Édipo; não importa de que forma ele se dê, não se pode aplacar a fúria superegoica. Essa forma de atuação do supereu é resultado do complexo de Édipo e do desamparo original do homem: as duas origens dessa instância.

Ao tratar dos paradoxos da lei moral, a partir do "Mal-estar na civilização" (Freud, 1930 [1929]/1990), Lacan (1959-1960/1988) nos remete ao próprio paradoxo do supereu, que se alimenta da renúncia exigida por ele. Aí se vê que a função do supereu é reforçar as imposições da civilização: sua missão é exigir a renúncia pulsional, renúncia da qual se nutre. Trata-se da renúncia à satisfação ligada à pulsão de morte: a agressividade e a destrutividade. De qualquer forma, Freud ressalta que tanto a realização da agressividade quanto a sua renúncia trazem infelicidade; portanto, reconhece como impossível o mandamento superegoico - renúncia pulsional - que desconsidera a quem o eu também serve: o isso. No texto freudiano desvela-se o supereu defasado com a lei, atuando como limitador da satisfação pulsional, mas baseado profundamente no isso e vinculado à pulsão de morte.

Segundo Freud, o que funda a civilização é uma necessidade não de regular as pulsões sexuais, mas sim de estabelecer uma proteção contra a agressividade do próximo, o gozo. Ou seja, o que se afigura como um mal é o nosso gozo, a agressividade contra o outro, que também se volta contra o próprio sujeito. Vemos que, no seminário da Ética (Lacan, 1959-1960/1988), o gozo é incompatível com a moral. Lacan postula que o gozo é um mal porque implica o mal do outro, é o gozar do corpo do outro, que já antecipa o objeto a como contido no Outro.

E o que me é mais próximo do que esse âmago em mim mesmo que é o de meu gozo, do que não me ouso aproximar? Pois assim que me aproximo - é esse o sentido do Mal-estar na Civilização - surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo, que retorno contra mim, e que vem, no lugar mesmo da Lei esvanecida, dar seu peso ao que me impele de transpor uma certa fronteira no limite da Coisa (Lacan, 1959-1960/1988: 228).

Com a leitura desse texto pode-se tanto enveredar pelo caminho da lei, quanto do gozo. Também podemos pensar, com Freud e Lacan, que na origem do supereu há mais gozo do que lei, já que se vê mais agressividade, fruto da pulsão de morte, do que a autoridade introjetada da figura paterna. Entretanto, vemos que a própria noção de lei também vai se transformando: de uma lei proibitiva, reguladora, para uma lei insensata, entremeada de gozo.

Ainda no texto freudiano de 1929, outro paradoxo se apresenta, aquele entre o individual e o coletivo, como se os ideais da cultura conduzissem ao melhor por limitarem e imporem barreiras ao gozo individual. Podemos pensar que, em primeiro lugar, é próprio do gozo não poder realizar-se, desde que se está inserido na linguagem, e, em segundo lugar, que a cultura, ao erigir ideais impossíveis, leva ao gozo do supereu.

O supereu é uma instância distinta da lei reguladora; porém veicula uma lei insana, que não oferece uma medida a esse mesmo gozo. Desta forma, torna-se imprescindível definir como o supereu inclui tanto a voz que proíbe, a voz da lei, como a voz do gozo. Enquanto instância repressora, há presença da lei, referência ao registro simbólico: o supereu se colocaria como um limite ao gozo. Ao pensá-lo como imperativo de gozo, não há mais o lado superegoico proibidor; trata-se do registro real, de uma lei louca, que incita ao gozo.

Lacan (1953-1954/1986) introduz a dimensão de lei insensata para o supereu ao diferenciá-lo do ideal do eu. A lei desconhecida refere-se ao fato de que não há um conjunto dos significantes que possa dar conta de todo o saber. Existe uma falta nesse campo, uma ausência que remete à impossibilidade de completude do campo do saber. Uma vez que a realidade se constitui a partir de um ponto de falta essencial, um outro modo de crença torna-se concebível, colocando-se então como a expressão da estrutura da linguagem e a convocando à assunção do sem sentido do significante. Lacan sustenta que nenhuma crença poderá ser plena e inteira desde que existe o princípio da alienação, segundo o qual nenhum significante é adequado à sua significação. A linguagem não oferece a verdade daquilo que ela representa.

Ao tratar da exigência superegoica em Freud, Lacan (19531954/1986) diz que o supereu efetua uma cisão simbólica, cisão que ocorre nas relações do sujeito com a lei. Isto diferenciaria o que é da ordem do eu, isto é, um registro dual, imaginário, daquilo que é do campo do supereu.

Um enunciado discordante, ignorado na lei, um enunciado promovido ao primeiro plano por um evento traumático, que reduz a lei a uma ponta cujo caráter é inadmissível, inintegrável - eis o que é essa instância cega, repetitiva, que definimos habitualmente pelo termo supereu (Lacan, 1953-1954/1986: 229).

Não se trata mais da lei reguladora, mas de uma lei que repete, insiste, veiculando a lei da pulsão de morte. Desta forma, não podemos pensar que o supereu finca-se somente no simbólico, mas que a cisão inclui o real.

 

O IMPERATIVO DE GOZO

Lacan descreve o supereu como "estrutura obscena e feroz", forma "sob a qual a instância moral se apresenta quando vamos procurá-la em suas raízes" (Lacan, 1959-1960/1988: 16). O supereu veicula uma lei fincada no real; portanto, não mais reguladora. Ou seja, é nesse ponto que eles coincidem, não há junção do supereu com a lei reguladora, mas sim com a lei insensata, fundada com o parricídio e que, ao invés de regular um gozo por sua proibição, incita esse mesmo gozo.

O supereu surge, no entanto, com outra vestimenta, do lado do imperativo categórico. Mas o que esse imperativo determina? É um imperativo que veicula uma lei insana, que se sustenta como exigência e renúncia de gozo. Ou seja, o supereu iria contra a tendência à satisfação do desejo fundamental, mas também o incitaria. O gozo apresenta uma dupla vinculação com a lei, por um lado é a lei que veicula a transgressão e, por outro, é ela que alimenta a culpabilidade incitando ao gozo. Parece-nos que se de um lado temos desejo e lei, reguladores ligados ao declínio do Édipo, de outro lado está o campo do gozo, e nesse ponto situa-se o supereu lacaniano. O supereu aparece tanto na origem da culpabilidade como também na origem da proibição, já que, ao apontar para a interdição do gozo, o traz para a frente da cena. Lacan dirá que se trata de uma experiência moral, que o eu coloca para si uma questão no "lugar dos imperativos frequentemente estranhos, paradoxais, cruéis que lhe são propostos por sua experiência mórbida" (Lacan, 1959-1960/1988: 16).

A articulação lacaniana de "Kant com Sade" nos traz alguns pontos esclarecedores sobre os paradoxos da lei moral e do gozo. Lacan afirma que a Filosofia da alcova, de Sade, completa a Crítica da razão prática kantiana. Segundo a leitura lacaniana de Kant, "nenhum fenômeno pode prevalecer-se de uma relação constante com o prazer. Não se pode enunciar nenhuma lei de tal bem" (Lacan, 1963/1998: 777).

Enquanto Wohl é o bem do princípio do prazer, das Gute corresponde ao bem que é objeto da lei moral. Das Gute "designa uma vontade de abordagem com a lei, uma vontade de submissão incondicional à lei, e que pode ser a lei do gozo, que contém o mal do próximo" (Cottet, 1989: 16). Ao comentar o imperativo kantiano, esse autor diz que uma das exigências da lei moral em Kant é que o dever não se dá por uma "inclinação natural" da ordem do princípio de prazer. A lei moral não se apoia no princípio de prazer, no bem-estar (Whol), é uma lei que se refere e transcende o Bem do sujeito. Portanto, prazer e Bem não coincidem. É desse Bem kantiano que ressoa o imperativo categórico que escutamos dentro de nós.

Retenhamos o paradoxo de que é no momento em que o sujeito já não tem diante de si objeto algum que ele encontra uma lei, a qual não tem outro fenômeno senão alguma coisa já significante, que é obtida de uma voz na consciência e que, ao se articular nela como máxima, propõe ali a ordem de uma razão puramente prática, ou vontade (Lacan, 1963/1998: 778).

A questão de Sade diz respeito ao direito que se tem de gozar do corpo do outro. Ele se pergunta: até onde se pode ir? Até o limite dos direitos humanos. Para Sade, a liberdade de desejar pode se exercer sobre o corpo do outro, uma vez que "o homem é livre". Portanto, a vontade moral kantiana é a mesma vontade de gozo de Sade. Vontade apática que não obedece a nada além da lei universal da natureza, ou seja, o gozo. As puras vontades de cumprir a lei universal em Kant e Sade são equiparadas, já que fazer o bem pelo bem é a mesma coisa do que fazer o mal pelo mal. Desta forma, Lacan aproxima Kant de Sade, pois em ambos trata-se de um problema ético relativo ao gozo. Ao se sacrificar um gozo, o supereu exige mais gozo; seguir o caminho do gozo é algo que se faz através da transgressão da lei, conforme Lacan (1959-1960/1988) sustenta no seminário da Ética. A lei moral apresentada por Lacan, ao mesmo tempo que proibiria o gozo também o incitaria, apresentando-se como "lei insensata". Se a lei moral de Kant, por um lado, comporta a anulação de todo gozo, por outro lado, em seu "caráter mudo, cego, absoluto" (Miller, 2000: 94), é idêntica a das Ding.

Portanto, a estrutura do sujeito sadiano é o avesso da do sujeito kantiano; desta forma, se pode dizer, com Lacan, que Sade é a verdade de Kant. O supereu age como imperativo desregulado de gozo, "não considera nem os interesses do sujeito nem o prazer" (Cottet, 1989: 35), dirige-se para o lado do objeto. Deste modo, trata-se de um supereu vinculado à pulsão de morte, uma vez que a máxima universal veiculada pela lei moral se apresenta como exigência de gozo.

Lacan vai ao mito da horda primeva de "Totem e tabu" (Freud, 1913/1990) - que Freud retomou no "Mal-estar na civilização" (Freud, 1930 [1929]/1990) - para elaborar a interdição do gozo. O início da civilização funda-se no momento em que a fratria, a vida comunal "sob a forma de grupos de irmãos", substitui a situação anterior em que a vontade do pai, do chefe, era arbitrária e absoluta. Na horda primeva, havia um pai violento e ciumento que guardava todas as mulheres para si e expulsava seus filhos conforme estes cresciam. Um dia, os irmãos expulsos se reuniram, mataram e devoraram o pai. Colocaram fim à horda patriarcal e fundaram uma comunidade de irmãos. No ato de devorar o pai, eles identificam-se a ele. Mas esses filhos também nutriam sentimentos afetuosos pelo pai; a ambivalência afetiva estava presente. Livraram-se do pai, o ódio ao pai foi satisfeito, mas o amor persistiu e daí veio o remorso pelo ato.

Segundo Freud (1913/1990), o sentimento de culpa que surgiu coincidia com o remorso sentido por todo o grupo e foram lançadas as bases para o sentimento inconsciente de culpa. Os filhos dão seguimento à proibição paterna, anulando seu próprio ato, que fracassou, já que nenhum irmão assumiu o lugar do pai. Proibiram a morte do totem, o substituto do pai, e abriram mão das mulheres livres do pai.

Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esses tabus tornava-se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava (Freud, 1913/1990: 147).

A partir do momento em que o pai é morto, funda-se uma sociedade de irmãos, para quem o gozo fica proibido, ou melhor, perdido. Não se pode mais gozar, o pai morto leva o gozo consigo. Ressaltamos que, com o assassinato do pai, sua morte não só indica o caminho do gozo, mas também, ao invés de liberá-lo, pelo contrário, reforçou sua interdição. Por que esse ato não liberou o gozo, já que era o pai que o impedia? Como ocorreu a culpabilidade dos filhos e a interdição do gozo, se não havia lei? Vidal (2005) nos auxilia a responder essa pergunta: "Negativizado (morto, espedaçado, devorado), abstraído da concretude empírica, o pai adentra o plano do símbolo e da crença, que J. Lacan cognominará Nome-do-Pai. Só depois do parricídio terá havido pai, antes havia um orangotango" (Vidal, 2005: 17).

Vemos que, seguindo Freud, não é o amor ao pai que gera a culpa pelo assassinato. O pai se faz amar porque castra, porque limita o gozo. Lacan afirma que "tudo isto culmina na ideia do assassinato, ou seja, o pai original é aquele que os filhos mataram, e depois disso é do amor por esse pai morto que procede uma certa ordem" (Lacan, 1969-1970/1992: 94). Contrapõe os dois mitos, de Édipo e de "Totem e tabu" para alertar sobre sua aparente contradição: "Há então esse mito de Édipo, tomado de Sófocles. E também, a conversa fiada de que lhes falava há pouco, o assassinato do pai da horda primitiva. É bastante curioso que seu resultado seja exatamente o contrário" (Lacan, 1969-1970/1992: 107). Num mito matava-se o pai para dormir com a mãe e no outro é o assassinato do pai que interdita o gozo.

O pai de "Totem e tabu", segundo Lacan, faz uma correção ao mito de Édipo. Lacan afirma que "não é a partir de uma tentativa de explicar o que quer dizer dormir com a mãe que o assassinato do pai se introduz na doutrina freudiana. Muito pelo contrário, é a partir da morte do pai que se edifica a interdição desse gozo como primária" (Lacan, 1969-1970/1992: 113). Mesmo para Édipo o gozo já estava proibido. Parece que nesse mito é o assassinato do pai que vai dar a Édipo a possibilidade de gozar (da mãe). Mas se goza graças ao assassinato? "A morte do pai [...] não me parece [...] talhada para nos libertar" (Lacan, 1969-1970/1992: 112). É a partir desta discussão que Lacan (1969-1970/1992) pode afirmar que o pai morto não é simbólico, ele corresponde ao gozo. Vai possuir para sempre o gozo que falta. Portanto, o impossível se situa do lado do pai gozador, que goza de todas as mulheres (impossível, já que todas não existe).

No mito edípico, primeiro vem a lei, que proíbe o incesto, e com o assassinato do pai acede-se ao gozo. Na versão de Édipo, a lei e a eficácia do pai simbólico precedem o gozo. Em "Totem e tabu", isto é, na estrutura, o gozo precede a lei, enquanto no mito de Édipo vem a lei antes do gozo. O pai comparece em sua ambiguidade, como Urvater, o pai que gozava, mas que só existe como mito e como pai regulador, que interdita o gozo perdido com o parricídio. Portanto, sustentar a necessidade de um pai edípico que legislaria e regularia o gozo já aponta para uma impossibilidade, uma vez que o gozo está perdido com o pai morto.

Não é o outro que nos impede de gozar, esse impedimento é fruto da estrutura, da constituição do ser falante na linguagem. Esse furo aberto pelo ato original marca a humanização e envolve uma perda de gozo da qual Freud tentou dar conta através do complexo de Édipo.

Portanto, a lei pode ser compreendida como uma coerção interna ao gozo e não externa. Quando o sujeito acredita ter franqueado alguns ideais da cultura, da sociedade, que supostamente o impediam de gozar, ele se vê constrangido por um poderoso supereu. Supomos que a atuação do supereu vai de encontro à lei do pai, uma vez que o supereu é o que da lei não tem lei.

A interiorização da Lei, não cessamos de dizê-lo, nada tem a ver com a Lei. Ainda que fosse preciso saber por quê. É possível que o supereu sirva de apoio à nossa consciência moral, mas todos sabem muito bem que ele nada tem a ver com ela no que se refere às suas exigências mais obrigatórias. O que ele exige nada tem a ver com o que teríamos o direito de constituir como a regra universal de nossa ação, é o bê-á-bá da verdade analítica (Lacan, 1959-1960/1988: 371-372).

Essa passagem contribui para esclarecer o paradoxo sobre a função do supereu. Lacan o diferencia da consciência moral, que exerceria a função proibitiva e reguladora. No caso do supereu, trata-se de outro tipo de exigências, que não visam à boa adequação do sujeito às regras da civilização. Vemos que lei e desejo encontram-se num campo, e já se vislumbra o supereu mais como parceiro do gozo do que da lei. É nesse emaranhado de desejo e lei que aparece o supereu como aquele que empuxa ao gozo, exigindo loucamente que se goze daquilo que é proibido desde sempre.

Entretanto, Lacan não vai apresentar o gozo somente como impossibilidade. Há algo do gozo que se realiza, que se esgota nas entrelinhas, conforme vemos em 1962-1963 (2005), quando trata da angústia:

é ao querer fazer esse gozo entrar no lugar do Outro, como lugar do significante, que o sujeito se precipita, antecipa-se como desejante. Se há nisso uma precipitação, uma antecipação, não é no sentido de que esse processo dê saltos, ande mais depressa do que suas próprias etapas, mas no sentido de que ele aborda, aquém de sua realização, a hiância do desejo ao gozo. É aí que se situa a angústia (Lacan, 1962-1963/2005: 193).

No extrato acima, destaca-se um gozo diferente daquele da transgressão do seminário da Ética (Lacan, 1959-1960/1988). Há um gozo possível, ainda que limitado pelo significante, nessa via do desejo ao gozo. Nesse momento, Lacan vai tratar do objeto a, objeto resto, que se separa do Outro e é o resto da divisão que está na origem do sujeito, representado como objeto não especularizável, que não entra na unificação da imagem do corpo: esse resto que será tomado por Lacan para tratar dos objetos palea (Miller, 2005), objetos caducos, pedaços de corpo, dejetos, em cuja série localiza-se o supereu: voz e resto, voz e causa.

O supereu é definido como objeto voz, "Digamos, então, que o supereu participa da função desse objeto causa [...] Eu poderia até fazê-lo entrar na série dos objetos que teremos que dispor diante de vocês" (Lacan, 1962-1963/2005: 119). Logo, se o supereu é uma apresentação do objeto a, ele se apresenta como objeto causa, voz. "Ao lembrar-lhes sua ligação evidente com a forma de objeto a que é a voz, indiquei-lhes que não pode haver concepção analítica válida do supereu que se esqueça de que, por sua fase mais profunda, essa é uma das formas do objeto a" (Lacan, 1962-1963/2005: 321).

 

A VOZ ENQUANTO OBJETO

No conto A pequena sereia, Andersen (1837/1995) compõe um quadro sobre a voz: a perda do objeto vocal enquanto condição de acesso à corporeidade, a autonomização da voz como objeto parcial, assim como sua incorporação. Apaixonada por um homem, a pequena sereia anseia por um corpo de mulher. Entra em negociação com o Outro que, encarnado em uma bruxa que almeja a bela voz da sereia, oferece-lhe um corpo feminino em troca da voz, objeto destacável. A sereia consente em perder a voz, que se incorpora na figura da bruxa.

Subtraída de uma parte de si, a sereia se torna humana, conquista o corpo e fica submetida à fratura que se impõe a quem se inscreve na linguagem: a divisão entre a realidade corporal, realidade constituída, e a voz. Toda voz permanece exterior ao corpo e só lhe pertence de forma instável e revogável. Essa fratura se experimenta com a própria voz no exercício da fala, que divide o sujeito entre emissor e receptor, entre enunciado e enunciação, revelando uma dimensão desconhecida, especialmente quando se ouve com a mediação de um aparelho, cuja perfeição técnica não é capaz de erradicar a estranheza que a voz encerra em sua vertente objetal. O sujeito se reconhece no enunciado, mas algo de si lhe escapa, foi ele quem disse aquilo, mas em seu timbre, em sua entonação emerge algo que ele não reconhece como sua voz e que resiste à apreensão como parte de si mesmo.

No desencontro amoroso, a pequena sereia fica destituída justo do objeto parcial que sustentava seu ingresso na fantasia do homem amado: a voz. As palavras, o canto, a música, bem como a beleza da voz, funcionam como vestimentas que se prestam a velar a natureza de amputação terrificante do objeto vocal, ponto cego que corresponde a uma mancha na invocação.

O objeto era tomado pelos pós-freudianos, sobretudo, na vertente dos objetos anal e oral, como objetos parciais, anteriores ao objeto genital no desenvolvimento da libido. Foi a experiência clínica que impôs a necessidade de prolongar a lista de objetos. Lacan pretende completar a lista freudiana de objetos - a partir de sua correlação com um tipo de angústia - e acrescenta aos objetos oral, anal e fálico o olhar e a voz.

A delimitação do objeto olhar provém da clínica da psicose, nas experiências dos delírios de observação, enquanto o objeto vocal foi extraído do automatismo mental de De Clérambault. São vozes que não podem ser registradas, imateriais, que ninguém ouve a não ser o sujeito, para quem são perfeitamente reais e cuja ausência de materialidade sonora não impede que produzam seus efeitos. Miller (1989) sustenta que a voz para Lacan tem uma função essencial por mostrar que a cadeia significante não somente pode ser falada, mas lida ou escrita, e que não é fruto de nenhum órgão dos sentidos.

A voz, objeto sem transparência, portanto, é tomada num movimento circular fechado do desejo, o movimento da pulsão invocante. Ela é um resto, "pedaço de real fora de sentido" (Žizek, 1996: 132), que sobra uma vez que se efetuou a operação retroativa do ponto de capiton, que estabiliza o sentido.

O seminário A angústia (Lacan, 1962-1963/2005) trata desse objeto voz. O trabalho de Theodor Reik (1946/1962), que aborda um instrumento usado nos rituais religiosos judaicos, o Chofar, é tomado para discernir as relações de desejo e angústia no nível do objeto voz/ouvido. O Chofar é um chifre de carneiro que, ao ser soprado, emite um som. De que objeto se trata nesse exemplo do Chofar? "Daquilo a que chamamos voz. Nós o conhecemos bem, acreditamos conhecê-lo bem, a pretexto de conhecermos seus dejetos, as folhas mortas, sob a forma das vozes perdidas da psicose, e seu caráter parasitário, sob a forma dos imperativos interrompidos do supereu" (Lacan, 1962-1963/2005: 275).

A voz em Lacan não se define pela entonação, não é a palavra e muito menos é o falar. Ela é vazia de sentido. Uma vez que a voz é o que comanda silenciosamente e sem nada dizer, não se pode considerar somente a assimilação freudiana do supereu ao imperativo moral kantiano. É necessário, além dessa aproximação, relacionar o supereu à voz como objeto a, como indica Lacan. O Chofar nos exemplifica essa fala que não é música e que arranca nossos ouvidos da harmonia a que estão habituados. O supereu como voz incide mais como imperativo de gozo do que como imperativo moral.

Lacan (1962-1963/2005) estabelece diferenças entre a fonetização e o que sustenta o objeto a para ilustrar a característica destacável da voz. Enquanto a fonetização está no campo da metáfora e da metonímia, das substituições, a dimensão vocal surge quando algo desse sistema de oposições passa para uma emissão. Portanto, conclui que a voz aparece como potencialmente separável nesse instrumento - o Chofar -, o que ilustra uma característica do objeto a, o fato de ser destacável.

A emancipação da voz em relação ao enquadre dado pela imagem do corpo e pelas vestimentas dos sons e dos sentidos é vivida como horror próprio ao grito, ao urro e aos grunhidos, através dos quais se vislumbra sua dimensão de objeto mais-gozar, vale dizer, não de aces-so ao gozo perdido, mas de resto e tentativa de recuperação de gozo. Os praticantes do canto vivenciam o quanto a voz permanece exterior e rebelde ao domínio das funções fonatórias e auditivas. Quando não é correlata a um corpo, transforma-se no que Lacan chamou de "vozes perdidas das psicoses", em exterioridade, retornando de fora, mas aquém da extração, em estado de presença audível e íntima.

 

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Vivemos atualmente uma espécie de falência dos ideais paternos2, que não têm mais tanto poder de direção. Foram substituídos por normas e metas a que se aspira e o empuxo ao gozo se faz presente, como se fosse possível ignorar sua impossibilidade. Assiste-se, nos discursos vigentes, a uma tentativa de resgate dos ideais. Esse tipo de discurso veicula a crença de que na obra de Freud o ideal estaria em primeiro plano, mas que, ao contrário, atualmente, o ideal não regularia mais o gozo. Acreditamos que, frente ao momento em que vivemos, a questão do supereu e seu imperativo de gozo torna-se central. Nessa direção entende-se que:

Portanto, em todos os domínios da vida, dos hábitos alimentares ao comportamento sexual e ao sucesso profissional, existem cada vez menos interditos e cada vez mais ideais, normas a seguir. Mas o Interdito da Lei assim suspendido retorna sob a forma feroz do supereu que esmaga o sujeito sob a culpabilidade uma vez que suas ações estão em falta em relação a essas normas e ideais (Žižek, 1996: 162; tradução nossa).

Ao dizer que os ideais da cultura não trazem nenhuma paz, pelo contrário, produzem efeitos nefastos, por exigirem ainda mais renúncia pulsional - é Freud quem nos guia -, Žižek (1996) salienta que o ideal é um mal, os ideais levam ao pior. Além disso, mesmo em Freud, o pai que regularia e faria cumprir esses ideais sempre é falho. Desta forma, o apelo a um pai pode levar ao pior, por nos remeter ao pai da horda, gozador.

A concepção de supereu como imperativo de gozo se coaduna com essa discussão tão atual da falência dos ideais e do pai. Acreditamos que o supereu não se encontra mais ausente ou mais enfraquecido a partir deste suposto esvaziamento dos ideais; pelo contrário, sua força e sua exigência de gozo encontram-se muito ativas.

Não pensamos que se está num mundo de perversos, em que se goza ou se faz gozar sem limites; pelo contrário, acreditamos que a injunção ao gozo não tem como efeito que o gozo esteja desenfreado. Supomos, no entanto, que os sujeitos sofram os efeitos dessa exigência maciça, que tem como resposta, em alguns casos, a angústia e em outra o mais-gozar como tentativa e repetição de recuperação de gozo.

Não pretendemos, tampouco, propor a restauração de ideais. O ideal sempre tem uma contrapartida, a exigência de renúncia pulsional, e não é esse o caminho de uma análise. O supereu aparece como uma cultura da pulsão de morte, encastelado no próprio eu, voltando-se contra este. Além disso, abster-se de satisfação pulsional não acalma o supereu; ele torna-se mais poderoso, alimentando-se da renúncia pulsional. Cabe à psicanálise promover o tratamento do supereu, em sua dimensão imperativa de gozo e objeto vocal; nessa direção, seu dispositivo reserva um lugar para outra dimensão da voz: a do analista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Andersen, H. C. (1837/1995). Histórias maravilhosas de Andersen. São Paulo: Companhia das Letrinhas.         [ Links ]

Cottet, S. (1989). O paradoxo do gozo. Salvador: Fator.         [ Links ]

Freud, S. (1913/1990). Totem e tabu. Obras completas, ESB, v. XIII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1923/1990). O eu e o isso. Obras completas, ESB, v. XIX. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1930 [1929]/1990). O mal-estar na civilização. Obras completas, ESB, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lacan, J. (1953-1954/1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lacan, J. (1959-1960/1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lacan, J. (1962-1963/2005). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lacan, J. (1963/1998). Kant com Sade. In: Escritos (pp. 776-803). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Lacan, J. (1969-1970/1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Miller, J.-A. (1989). Jacques Lacan et la voix. La voix: actes du colloque d'Ivry, 175-184.         [ Links ]

Miller, J.-A. (2000). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, 26/27, 87-105.         [ Links ]

Miller, J.-A. (2005). Introdução à leitura do seminário da angústia. Opção Lacaniana, 43, 7-91.         [ Links ]

Reik, T. (1946/1962). Ritual, four psychoanalytic studies. New York: Grove Press.         [ Links ]

Vidal, P. (2005). Freud e a nostalgia do pai. In: Bernardes, A. S. (Org.). 10 x Freud (pp. 15-43). Rio de Janeiro: Azougue Editorial / Niterói, RJ: LAPSO.         [ Links ]

Žizek, S. (1996). Essai sur Schelling - Le reste qui n'éclôt jamais. Paris: L'Harmattan.         [ Links ]

 

NOTAS

1 O presente artigo constitui um desdobramento parcial, acrescido de novos desenvolvimentos, da dissertação de mestrado de Naiana Cordeiro, intitulada "A gula do supereu: imperativo de gozo e objeto voz", defendida no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro em fevereiro de 2007.
2 Esta discussão abreviada, de nossa autoria, sobre os ideais encontra-se no trabalho: Notícias de uma clínica particular: onde está o (P)ai (M)ilitar? (2006). Latusa Digital, n. 25.

 

 

Recebido em 29 de outubro de 2010
Aceito para publicação em 25 de outubro de 2011

Creative Commons License