SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número1Língua materna: traumatismo e transmissão índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Câncer infanto-juvenil: o trauma dos irmãos

 

Cancer: a traumatic experience for the siblings

 

 

Ana Valéria Paranhos MiceliI; Silvia Maria Abu-Jamra ZornigII

IPsicóloga do Instituto Nacional de Câncer (INCA); Doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
IIPsicanalista; professora assistente do curso de graduação e pós-graduação do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Coordenadora do curso de Especialização em Psicologia Clínica com Crianças da PUC-Rio

 

 


RESUMO

A partir das contribuições de Freud e Winnicott sobre a concepção de trauma, este trabalho procura refletir sobre o impacto do câncer na estrutura familiar, particularmente nos irmãos da criança doente. O texto parte do pressuposto de que o câncer, enquanto significante associado à morte, irrompe com força traumática na família não só pelas particularidades da doença, mas, sobretudo, pela sensação de desamparo e exclusão vivenciada pelos irmãos ditos "saudáveis". A contribuição winnicottiana sobre a descontinuidade temporal associada à vivência traumática é retomada no texto para ressaltar a importância da escuta analítica da família da criança doente, principalmente dos irmãos que se encontram na infância e que muitas vezes são convocados a ocupar um lugar adulto e maduro, sem possibilidade de elaborar as mudanças radicais do ambiente familiar e a ausência física e muitas vezes afetiva dos pais.

Palavras-chave: trauma; câncer infanto-juvenil; psicanálise; relação fraterna; fratria.


ABSTRACT

The paper aims to discuss the impact of the diagnosis and treatment of cancer within the patient's family structure, particularly analyzing what happens to the patient's siblings. Having as a theoretical background the contributions of Freud and Winnicott, the paper relates the concept of trauma to the experience of helplessness and isolation experienced by the patient's siblings when the family has to deal with the complex issues related to the illness. The importance of an analytical intervention with the family members is emphasized in order to open up a possibility of working through feelings of discontinuity, helplessness and ambivalence.

Keywords: trauma; cancer in children and adolescents; psychoanalysis; fraternal relationship.


 

 

A partir das teorias de Freud e de Winnicott sobre o trauma, nossa proposta é pensar se poderíamos considerar como necessariamente traumática a experiência de crianças ou adolescentes cujo irmão ou irmã menor de idade tem câncer, doença que no imaginário social é fatal, expõe a fragilidade do corpo e a ameaça da morte, remetendo não somente o doente como seus familiares ao desamparo, e que tem grande impacto no funcionamento familiar.

O vocábulo trauma tem origem grega e significa ferida, designando na medicina lesão no organismo causada por fator externo.

Por analogia, no plano da psicopatologia, veio designar os acontecimentos que rompem radicalmente com um estado de coisas do psiquismo, provocando um desarranjo em nossas formas habituais de funcionar e compreender as coisas e impondo o árduo trabalho de construção de uma nova ordenação do mundo. Entre os acontecimentos e esses efeitos se insere a tela das memórias e fantasias (Rudge, 2009:8-9).

Dunker (2006) distingue os traumas por choque, que têm a estrutura temporal de um instante não antecipável, dos traumas por tensão, que têm a estrutura de um momento que se prolonga indefinidamente. Trauma é "evento hiperintenso, que excede a capacidade representacional e que colhe o sujeito antes que este possa tramitá-lo psiquicamente. O caráter disruptivo, desorganizativo ou imprevisível do trauma é uma tônica em Freud" (Dunker, 2006:39).

Figueiredo (2001) diferencia traumatismo constitutivo de traumatismos destruidores ou restritivos da vida psíquica, pois observa na psicanálise uma estreita relação, de um lado, entre as cisões e as experiências traumáticas e, do outro, entre o recalcamento e os impulsos e fantasias conflituosos. O traumático é essencialmente heterogêneo e, portanto, anterior ao conflito, nascendo dos encontros e dos desencontros entre o campo das forças que se opõem e o campo dos sentidos que se contradizem.

 

ANGÚSTIA E TRAUMA PSÍQUICO EM FREUD

Freud (1893/1974) começa a teorizar sobre o trauma nos estudos sobre a histeria, que seria causada por trauma psíquico, então descrito como qualquer experiência que evocasse afetos aflitivos (susto, angústia, vergonha, dor), e cuja lembrança permaneceria em ação muito tempo depois. Posteriormente, Freud (1896/1976) associa o trauma psíquico à sedução, sofrida pela criança, de um adulto perverso, em geral o pai, que só se revelaria traumática a posteriori, na puberdade, quando a maturação biológica introduziria a sexualidade e a sedução adquiriria sentido sexual, promovendo o desejo sexual. Freud (1898/1976) abandona esta teoria quando descobre a existência do complexo de Édipo e passa a correlacionar os sintomas neuróticos com o conflito psíquico que remete a uma sexualidade infantil (normal e universal) e aos desejos a ela relacionados, expressos como fantasias. Na compreensão freudiana do trauma psíquico, além da sexualidade infantil e das pulsões, os estudos sobre a angústia que se seguiram também foram muito importantes.

Em conferência em 1917 (1916-1917/1976), Freud distingue as neuroses espontâneas (histeria, neurose obsessiva e fobia) das neuroses traumáticas de pós-guerra, resultantes de uma fixação no momento do acidente traumático, reeditado nos sonhos e ressurgido na forma de ataques que transportam repetidamente o sujeito para a situação do trauma, sintoma hoje chamado flashback. A etiologia sexual estaria ausente nestas neuroses, já que seriam desencadeadas por um perigo externo, não por perigo pulsional (Rudge, 2009).

A teoria dos sonhos como realização alucinatória de desejo sob a dominância do princípio de prazer era desafiada pelos sonhos traumáticos da neurose traumática e Freud (1920/1976), então, relaciona estes à existência, na mente, de uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer. Assim, nem sempre haveria a busca pelo prazer e a evitação do desprazer, pois haveria algo no psiquismo para além do princípio de prazer. A neurose traumática seria consequência de uma grande ruptura no escudo protetor, quando o princípio de prazer é posto momentaneamente fora de ação e o aparelho mental precisa dominar o excesso de estímulo, mas teria sido facilitada por um conflito no eu. Freud supõe a existência da atividade de dois impulsos, os sexuais, que ele chamava pulsão de vida, e os destrutivos, que ele chamava pulsão de morte. Para Figueiredo (2001), com essa teoria Freud situa a experiência do trauma no centro e na base do processo de constituição do psiquismo.

O trauma não pode ser caracterizado só pelo acontecimento, pois o significado deste para o sujeito depende da sua singular organização psíquica. A compulsão à repetição das vivências dolorosas ocorre nas neuroses traumáticas e também na vida de qualquer pessoa, em determinadas épocas, podendo ter duas faces: manter a experiência traumática como algo impossível de ser esgotado ou modificado, ou funcionar como um instrumento para a integração das experiências traumáticas aos domínios do princípio de prazer, tornando-as menos disruptivas. Sonhar com o fato doloroso também pode ter duas faces: a de atualizar a angústia como no fato original e a de integrar gradativamente o vivido, submetendo-o ao princípio de prazer (Rudge, 2009).

Posteriormente, Freud (1925-1926/1976) não se preocupará mais em distinguir angústia neurótica (devida a perigos internos, produto da transformação da libido) de angústia realística (devida a perigos reais), mas introduzirá uma nova distinção, entre angústia automática, que seria a reação direta a um trauma, e angústia como um sinal do perigo de abordagem deste trauma, ambas produto do desamparo mental da criança que é um símile natural de seu desamparo biológico. O ato do nascimento é a primeira situação de perigo vivida, a primeira experiência de angústia, e a convulsão econômica que ele produz torna-se o protótipo da reação de angústia que será reproduzida direta e automaticamente sempre que uma situação traumática, um estado de desamparo, de ameaça de aniquilamento se repetir. Freud diz ser provável que as causas imediatas dos recalques primitivos (recalque originário) sejam quantitativas, tais como uma força excessiva de excitação e o rompimento do escudo protetor contra os estímulos. A angústia automática seria uma forma inadequada de reação, pois a situação de perigo já ocorreu. Para Rudge (2009), Freud dá ao trauma um caráter estruturante quando o coloca como equivalente ao recalque originário fundador do inconsciente.

Para Freud (1925-1926/1976), uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A angústia como sinal é produzida pelo eu logo que uma situação de perigo ameace ocorrer, isto é, a angústia é um sinal do perigo da abordagem desse trauma, do perigo da repetição de um momento traumático. Assim, a angústia é vista agora não mais como consequência, mas sim como motor do recalque: angústia de castração, força motora dos mecanismos defensivos que conduzem à neurose. Os sintomas são criados de modo a evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração da angústia. O perigo do desamparo psíquico é adequado ao período da vida do indivíduo, com seu determinante apropriado de angústia, e Freud revê todas as separações sofridas pelo indivíduo sob a ótica da angústia de castração, que é o medo de sermos separados de um objeto altamente valioso, sendo esta separação o grande perigo temido.

Em sua "Conferência XXXII", Freud (1932-1933/1976) reafirmará que a magnitude da soma de excitação transforma uma impressão em momento traumático, paralisa a função do princípio de prazer e confere à situação de perigo a sua importância. Apenas os recalques posteriores mostram o mecanismo no qual a angústia é despertada como sinal de uma situação de perigo prévio. Os recalques primeiros e originais surgem diretamente de momentos traumáticos, quando o eu enfrenta uma exigência libidinal muito grande, e outras angústias poderão surgir a partir do modelo do nascimento. Além da castração, o temor da perda de amor é um motivo para o recalque. Estes fatores determinantes de angústia (como o angustiante sentimento de tensão ao qual é exposto o filho que não tem mais certeza de que a mãe satisfará suas necessidades, por ausência ou retirada de amor) no fundo repetem a situação de angústia original, ocorrida no nascimento, que também representou uma separação da mãe. Assim, também na neurose de angústia o surgimento de angústia é uma reação a uma situação traumática e não libido transformada, como ele acreditara anteriormente.

Freud (1939/1975) fornece a fórmula para o desenvolvimento de uma neurose: trauma na infância - defesa (reação ao trauma) - latência - desencadeamento de doença neurótica - retorno parcial do recalcado. A angústia de castração é a única força motora dos mecanismos defensivos que conduzem à neurose. Os traumas são ou experiências corporais ou percepções sensórias (de algo visto e ouvido) experimentadas na infância, de natureza sexual e agressiva, que desencadeiam imediatamente uma neurose infantil. Geralmente há um período de latência até a puberdade quando as pulsões podem retomar a luta em que foram derrotadas pela defesa, ou porque a defesa se tornou um estorvo. A neurose adulta, então, se torna manifesta como um efeito retardado do trauma. As fixações no trauma podem ter efeitos positivos (quando levam à compulsão à repetição, pois são esforços de recordar a experiência esquecida ou torná-la real, repetindo-a) e negativos (como reações defensivas que procuram evitar que os traumas esquecidos sejam recordados ou repetidos). Os sintomas de neurose são conciliações em que ambas as tendências procedentes do trauma se reúnem, sendo ora uma ora outra preponderante. Todos estes fenômenos, tanto os sintomas quanto as restrições ao eu e as modificações estáveis de caráter, possuem uma qualidade compulsiva.

Desta forma, Freud deixa claro que o trauma, de origem sexual, tem papel estruturante na constituição do sujeito.

 

WINNICOTT E O PAPEL ESTRUTURANTE DO AMBIENTE

Winnicott não despreza os conflitos internos trazidos pela psicologia freudiana no aparecimento de futuros transtornos, mas introduz o fator ambiental, em especial o cuidado materno, como o fator decisivo no desenvolvimento emocional da criança. Seu enfoque não é na economia do aparelho psíquico, nem nos enigmas sexuais, nem na aquisição da linguagem (visão lacaniana), mas sim na qualidade das relações estabelecidas, especialmente na relação primária entre a mãe e o bebê, nos cuidados maternos, pois é somente através destes e do espaço transicional, que é uma realidade compartilhada entre a mãe e o bebê, que ele poderá desenvolver-se e relacionar-se com a mãe e com o mundo.

Ao dizer que as situações traumáticas estão sempre ligadas a perdas (dos objetos amorosos, de si próprio, de ideais, de amor do supereu) e que a angústia é desencadeada pelo desamparo, Freud também confere importância à relação entre a mãe e a criança na constituição do psiquismo desta. Já Winnicott abordará o trauma sob uma ótica não sexual e associado a uma falha nos cuidados maternos.

Para Winnicott (1949/2000; 1950/2000), a saúde mental do indivíduo é fundada pela mãe devotada que se adapta ativamente ao bebê. Isto requer que ela esteja relaxada e compreenda o modo de vida individual do bebê e sua capacidade de identificar-se. Primeiramente o bebê precisa de uma adaptação perfeita (o ambiente lhe exige o mínimo de adaptação) e, posteriormente, de uma desadaptação bem dosada.

Winnicott (1949/2000) não pensa na angústia como determinada por um trauma do nascimento, mas sim aplicável quando o indivíduo tem alguma experiência física (como excitação, raiva, medo) que ele não pode nem evitar nem entender, ou seja, ele desconhece (no sentido do inconsciente recalcado, que o bebê ainda não tem ao nascer). Ao conhecer o que ocorre, não sentirá mais angústia e sim excitação, medo, raiva.

Para Winnicott (1949/2000), a experiência do nascimento pode ser normal (suave, não chega a ser trauma), traumática comum (algo passou do limite) e traumática extrema. O feto já está preparado, antes do parto, para uma certa intrusão ambiental, uma interferência no "continuar a ser" pessoal, para esta fase temporária de reação que é o processo do nascimento. Somente quando a experiência pessoal do nascimento é significativa, traumática, ela afetará o desenvolvimento do eu e será mantida na memória. O trauma é representado pela necessidade de reagir (à intrusão vinda do ambiente); a reação, neste estágio do desenvolvimento, significa perda de identidade e extrema insegurança, e o excesso de reações provoca uma ameaça de aniquilamento.

Winnicott (1960/1983) esclarece que neste estágio inicial só há duas alternativas possíveis: ser (o "potencial herdado" está se tornando uma "continuidade do ser") e aniquilamento (reagir interrompe o ser pessoal e o aniquila); por isto o ambiente precisa reduzir ao mínimo as irritações que levem o lactente a reagir e também propiciar condições favoráveis para que o lactente estabeleça uma continuidade da existência e desenvolva modos de absorver estas irritações na área da onipotência.

Segundo Winnicott (1945/2000), existem três processos que se desenvolvem bem cedo: integração, personalização e, posterior a estes, a realização do tempo, do espaço e de outros aspectos da realidade. Posteriormente, o autor (Winnicott, 1963/2007), afirmará que o amadurecimento do bebê reúne processos inatos e um ambiente facilitador, indo da dependência absoluta (quando não separa eu do não-eu) para a quase absoluta, depois para a dependência relativa, rumo à independência humana. O desenvolvimento emocional satisfatório permite a integração do eu, a personalização e o estabelecimento das relações objetais. Para o autor (Winnicott, 1965/2007), o fracasso do objeto (em desempenhar sua função) relativo à dependência provoca ódio no indivíduo, o que levará à desidealização do objeto e ao trauma, que, portanto, envolve fatores externos.

Segundo Winnicott (1952/2000; 1965/2007), o trauma ocorre quando há perda de confiança e seu significado varia de acordo com o estágio do desenvolvimento emocional da criança. No início da vida, no estágio de dependência quase absoluta, quando a mãe fornece oportunidade de o bebê ter uma experiência de onipotência, o trauma é devido a uma falha nas técnicas do cuidado (sustentação [holding] e manejo [handling]) e se relaciona com a ameaça de aniquilamento, traduzida pelas angústias impensáveis (ou agonias primitivas, sendo a mais antiga a de sentir-se segurado de um modo inseguro): cair para sempre, desintegração, despersonalização, desorientação, que são angústias primitivas que bebês bem cuidados não experienciam na realidade antes de estarem aparelhados (através do autocuidado, que se torna possível por meio da maternagem introjetada) para lidar com o fracasso do ambiente. O trauma implica em um colapso (das defesas) na área da confiabilidade no meio, resultando no fracasso total ou relativo no estabelecimento da estrutura de personalidade e organização do eu (psicose). O cuidado suficientemente bom neutraliza a perseguição externa (estado paranoide que ocorre logo após a primeira integração) e previne os sentimentos de desintegração e de perda de contato entre a psique e o soma.

O autor continua dizendo que a função materna é também a de desiludir o bebê, de introduzir o princípio de realidade, e este seria um aspecto normal do trauma, quando a necessária desadaptação materna "traumatizaria" o bebê, que passaria da dependência absoluta para a relativa. Porém, pela capacidade cuidadora da mãe de sentir o filho e introduzir esta realidade paulatinamente, o resultado não é como o do trauma, pois a criança aqui já é capaz de acreditar em um ambiente que primeiro se ajusta a ela, mas depois fracassa. O ódio reativo da criança divide o objeto idealizado, mas a reação apropriada de raiva indica que o fracasso ambiental não sobrepujou a capacidade do indivíduo de lidar com a questão, donde não é trauma.

Winnicott (1967/1975) esclarece bem a sua noção de trauma como ruptura na continuidade da vida, na continuidade do ser. A duração da existência da mãe permanece certo tempo até que, por sua ausência, a imago dela se esmaeça, e com ela cesse a capacidade do bebê de utilizar o símbolo da união. A aflição do bebê é corrigida se a mãe retornar logo, mas, se demorar, o bebê sofrerá um trauma, que implica nesta ruptura na continuidade da vida, "de modo que as defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da 'angústia impensável' ou contra o retorno do agudo estado confusional próprio da desintegração da estrutura nascente do eu" (Winnicott, 1967/1975: 135-136). Entretanto, a maioria dos bebês não experimenta esta quantidade de privação e, na maioria das vezes, o que existe é somente uma ameaça de separação e um mimar da mãe que cura o bebê, reparando a estrutura do eu, restabelecendo sua capacidade de usar um símbolo de união. Posteriormente, o bebê vem permitir esta separação e se beneficiar dela, posto que esta separação não é de fato uma separação, mas uma forma de união. O espaço potencial (originalmente um objeto) existente entre o indivíduo e o ambiente é uma realidade compartilhada que acontece somente quando o bebê desenvolveu, na época da dependência máxima, uma confiança em relação a este ambiente. É neste espaço que se localiza o brincar criativo e a experiência cultural.

Segundo Winnicott (1965/2007), quando a criança já está integrada, mais ela pode ser ferida e sofrer, como ocorre neste estágio do desenvolvimento no qual ela já se relaciona com pessoas totais e se dá o complexo de Édipo. Um trauma nesta fase, revelado na análise, é o da criança que, após a morte do pai, encontra uma mãe irritável e melancólica no lugar daquela que lhe proporcionava felicidade. Afinal, diz o autor, "o trauma é a destruição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão súbita ou imprevisível de fatos reais e pela geração de ódio no indivíduo, ódio do objeto bom experienciado não como ódio, mas delirantemente, como sendo odiado" (Winnicott, 1965/2007: 114).

Winnicott (1956/2005; 1958/2005) associa a tendência antissocial ao trauma, que vê como privação, desapossamento e não simples carência, de algo que a criança tinha e lhe foi retirado. A doença não resulta da perda, mas da ocorrência desta em um estágio do desenvolvimento emocional em que a criança ainda não era capaz de uma reação madura a esta perda, donde não é possível lamentar a perda e sentir o luto. E tudo aquilo relativo à privação e angústia de separação deve basear-se em uma compreensão da psicologia do luto.

Segundo Winnicott (1954/2000), na posição depressiva a reação à perda é a de dor ou tristeza, mas será a de depressão se ocorrer uma falha nesta posição. Se a posição depressiva for solidamente estabelecida, serão introjetadas memórias de boas experiências e de objetos amados que permitirão que o sujeito prossiga na vida mesmo sem um apoio ambiental. O luto significa que o objeto perdido foi magicamente introjetado e está lá sujeito ao ódio.

Para Freud (1925-1926/1976), dor e luto seriam reações reais à perda do objeto, à angústia, que seria o perigo que esta perda acarreta e, por deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto. Também o medo da morte é análogo ao medo da castração, pois a situação à qual o eu está reagindo é a de ser abandonado pelo supereu protetor - os poderes do destino -, de modo que ele não dispõe mais de qualquer salvaguarda contra todos os perigos que o cercam.

Segundo Winnicott (1958/2005), para a elaboração do processo de luto supõe-se certo grau de maturidade, um ambiente que permaneça sustentador durante o tempo da elaboração e que "o indivíduo esteja livre da espécie de atitude que torna a tristeza impossível" (Winnicott, 1958/2005:150). Entretanto, os indivíduos que adquiriram a capacidade de luto podem ser impedidos de elaborá-lo por carência de compreensão intelectual, como ocorre quando existe uma conspiração de silêncio em torno de uma morte.

 

O TRAUMA DO IRMÃO DA CRIANÇA COM CÂNCER

Pensamos que o medo da morte e o tabu que a envolve em nossa sociedade ocidental contemporânea levam à conspiração do silêncio não somente em torno de uma morte, mas também em torno de sua ameaça. E o câncer, doença temida como mortal, se por um lado retira o véu encobridor da possibilidade da morte, por outro reforça o silêncio sobre a morte e sobre a doença, sobretudo quando há crianças envolvidas.

Especialmente no caso do adoecimento de crianças/adolescentes, estes requerem total atenção dos pais durante o longo período de tempo do tratamento, que ao filho doente se dedicarão muitas vezes em detrimento dos demais filhos. Não se trata apenas de ausência física, mas de pais angustiados, transtornados, confrontados com a ameaça da morte, com a ferida narcísica de ter o filho doente a frustrar seus ideais, com a intrusão do sistema hospitalar a determinar os cuidados com o filho doente, com a demanda de reorganizar a vida (familiar, profissional, social) e com as exigências de cuidar bem também de si e dos demais membros da família.

Por vezes, as mães entregam seus filhos ainda bem pequenos, ou mesmo lactentes, a familiares ou vizinhos para acompanharem o filho doente em consultas, exames e internações. Quando mais crescidas, as crianças são levadas, pelas contingências, a se tornarem mais independentes, esperando-se que sejam menos querelantes e mais "boazinhas", compreensivas com aquilo que lhes é dado saber: o irmão está doente, por isto tantas mudanças e privações acontecem.

A despeito das divergências entre Freud e Winnicott, parece que para ambos o trauma tem um caráter de surpresa, seja de origem sexual ou de privação de cuidados, trazendo algo inesperado e incompreensível para a criança, que se encontrava despreparada para o evento e ainda não era capaz de uma reação madura ao mesmo. Acreditamos, como Winnicott, que, mesmo em fase de desenvolvimento em que já seja possível a elaboração de um luto, esta não é possível se houver uma incompreensão a respeito da perda sofrida, como ocorre nas conspirações de silêncio.

Como conversar com a criança doente sobre a doença? E com os demais filhos? Como abordar um tema que tange a um assunto-tabu como a morte? E como um pai ou uma mãe pode explicar aquilo que desconhece em si, aquilo que não quer conhecer? Ou estas crianças são privadas de informações claras e verdadeiras sobre os acontecimentos, ou são confrontadas com a impotência parental frente à doença e à morte, sendo entregues aos perigos da vida, à própria sorte.

O foco está na criança doente e no que é necessário para tratá-la. Ao considerarem os irmãos que não têm câncer como saudáveis, tanto a família como a equipe de saúde não percebem que eles também necessitam de ajuda para elaborar a ausência física e emocional dos pais e para elaborar sentimentos que podem ser despertados, tais como angústia, medo, inveja, raiva, ciúme, culpa, ressentimento e remorso, como também as fantasias de contribuição para o adoecimento do irmão e/ou para o afastamento dos pais.

Nestas situações em que nem a criança pode compreender o que se passa nem tem reconhecida a magnitude da experiência afetiva daquilo que ela vive, há uma quebra de confiança no ambiente, uma perda não elaborada, inelutável, traumática, cujo significado e cujos efeitos vão variar de acordo com o estágio do desenvolvimento emocional da criança. Porém pensamos que também os adolescentes que passam por delicado momento de reorganização das experiências infantis podem ser traumatizados.

Para Mendlowicz (2006), também os fatores atuais não são inócuos, pois incidem sobre a esfera psíquica e estão vinculados à noção de trauma. As depressões podem ser provocadas por acontecimentos traumáticos recentes, por "pequenas" tragédias como as súbitas perdas de laços significativos. O objeto perdido não era só um objeto-causa de desejo, mas também um objeto que conferia importância ao sujeito e sustentava a sua autoestima, daí haver uma reverberação na estrutura narcísica quando ocorre uma perda objetal significativa. A autora considera o trauma, como sugeriu Abraham, como uma injúria narcísica grave, porém acredita que "tal injúria pode ser causada, pelo menos parcialmente, por um trauma recente, provocando uma ruptura no eu, que perde o sentido de si próprio e do mundo em que vive" (Mendlowicz, 2006: 56), sendo invadido pelo vazio e pelo desamparo, perdendo a valorização de si próprio. A fragilidade narcísica favorece a entrada triunfal da pulsão de morte, que tanto pode atacar o eu (supereu sádico), culpando o sujeito, ou pode desvitalizar o sujeito, tornando-o apático.

Pelo filho doente os pais farão arranjos os mais diversos nas suas vidas e na dinâmica familiar e ficarão menos acessíveis aos demais filhos e menos atentos às necessidades destes. De um momento para o outro, não conseguirão mais demonstrar a mesma alegria com os feitos destes filhos, nem a mesma preocupação com suas inquietações, dificuldades, seus machucados físicos e emocionais: tudo se tornará menor e se esmaecerá frente à grandeza da angústia que vivem. Para os filhos, o mundo revirado, perdas, desvalorizações e incertezas. São comuns as regressões a estágios anteriores do desenvolvimento e o aparecimento de inseguranças e medos diversos, sintomas psicossomáticos, dificuldades escolares e nas relações familiares e sociais.

Rudge (2009) ressalta que cada trauma é único e tem caráter contingente, pois cada sujeito terá uma experiência singular da perda sofrida. Nesta perspectiva, cada criança reagirá de modo particular à experiência de ser e de ter sido irmão de uma criança com câncer. Todavia, mesmo sem generalizar os efeitos traumáticos que uma doença como o câncer pode produzir não só nos pacientes, mas também em seus familiares, parece fundamental ressaltar a importância de intervenções direcionadas principalmente às crianças que não são o foco principal das estratégias médicas e institucionais, mas que necessitam um espaço de elaboração e fala que dê contorno e sustentação a seus afetos e possa diminuir o potencial traumático da exposição a uma doença terminal e/ou crônica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Dunker, C. I. L. (2006). A função terapêutica do real: entre trauma e fantasia. In: Rudge, A. M. (Org.). Traumas (pp. 39-49). São Paulo: Escuta.

Figueiredo, L. C. (2001). Modernidade, trauma e dissociação: a questão do sentido hoje. In: Bezerra Jr., B. & Plastino, C. A. (Orgs.). Corpo, afeto e linguagem: a questão do sentido hoje (pp. 219-243). Rio de Janeiro: Contracapa.         [ Links ]

Freud, S. (1893/1974). Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar. Obras completas, ESB, v. II. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1896/1976). A hereditariedade e a etiologia das neuroses. Obras completas, ESB, v. III. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1898/1976). A sexualidade na etiologia das neuroses. Obras completas, ESB, v. III. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1916-1917/1976). Conferência XVIII. Fixação nos traumas - o inconsciente. Obras completas, ESB, v. XVI. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1920/1976). Além do princípio de prazer. Obras completas, ESB, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1925-1926/1976). Inibições, sintomas e ansiedade. Obras completas, ESB, v. XX. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1932-1933/1978). Conferência XXXII. Ansiedade e vida instintual. Obras completas, ESB, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1939/1975). Moisés e o monoteísmo. Obras completas, ESB, v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Mendlowicz, E. (2006). Trauma e depressão. In: Rudge, A. M. (Org.). Traumas (pp. 51-60). São Paulo: Escuta.

Rudge, A. M. (2009). Trauma. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1945/2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In: Da pediatria à psicanálise (pp. 218-232). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1949/2000). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In: Da pediatria à psicanálise (pp. 254-276). Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1950/2000). A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional. In: Da pediatria à psicanálise (pp. 288-304). Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1952/2000). Ansiedade associada à insegurança. In: Da pediatria à psicanálise (pp. 63-167). Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1954/2000). A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. In: Da pediatria à psicanálise (pp. 355-373). Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1956/2005). A tendência antissocial. In: Privação e delinquência (pp. 135-147). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1958/2005). A psicologia da separação. In: Privação e delinquência (pp. 149-162). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1960/1983). Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: O ambiente e os processos de maturação (pp. 38-54). Porto Alegre: Artmed.

Winnicott, D. W. (1963/2007). O medo do colapso (breakdown). In: Winnicott, C. (Org.). Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 70-76). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1965/2007). O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In: Winnicott, C. (Org.). Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 102-115). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1967/1975). A localização da experiência cultural. In: O brincar e a realidade (pp. 133-143). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em 13 de agosto de 2011
Aceito para publicação em 23 de março de 2012