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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Histeria de conversão: algumas questões sobre o corpo na psicanálise1

 

Conversion hysteria: some questions about the body in psycho-analysis

 

 

Sonia Leite

Psicanalista, Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Professora Visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 


RESUMO

O trabalho resgata a importância histórica da noção de histeria de conversão indicando sua atualidade na clínica. Tomando como referência os textos freudianos, o artigo destaca a noção de solicitação somática como ponto teórico fundamental para compreender o mecanismo de conversão do sofrimento psíquico em sofrimento físico. Destaca, ainda, que tal noção antecipa o conceito freudiano de pulsão de morte.

Palavras-chave: neurose; histeria; conversão; somático; psíquico.


ABSTRACT

This paper recovers the historical significance of the conversion hysteria notion, indicating its present day usefulness in psychoanalytical practice. By using Freudian writings as reference it highlights the notion of somatic compliance as being fundamental in the comprehension of the mechanism of conversion of psychic pain into physical pain. Moreover, it also shows that such notion anticipates the Freudian concept of death instinct.

Keywords: neurosis; hysteria; conversion; somatic; psychic.


 

 

me surpreende que os históricos de casos que escrevo pareçam contos e que, como se poderia dizer, eles se ressintam do ar de seriedade da ciência [...]. Me consolo com a reflexão de que esse resultado se deve a natureza mesma do assunto mais do que de uma predileção minha.
Freud, 1893-1895/2007: 174

 

Retomar os primeiros casos clínicos freudianos e testemunhar o nascimento da psicanálise é, de fato, surpreendente. O que surpreende é a atualidade das questões aí presentes. Atualidade que conduz ao reconhecimento de que no campo psicanalítico não cabe a noção de evolução porque as descobertas que se encontram nas origens dessa disciplina não envelhecem jamais, se tornando cada vez mais complexas com o avanço das pesquisas freudianas e lacanianas.

É exatamente essa a impressão que se tem quando nos debruçamos no estudo dos primeiros casos de histeria, que se apresentam com uma atualidade indiscutível, apesar de comumente ouvirmos que o aparecimento de novos sintomas ultrapassaria em importância as principais problemáticas que a clínica da histeria teria inaugurado. Nada mais equivocado!

A problemática histérica com sua multiplicidade expressiva - crises de angústia, dores, vertigens, desmaios - que emerge no corpo deixa, ainda hoje, atônitos alguns médicos que buscam em vão uma explicação de cunho orgânico. Essa multiplicidade sintomática conduziu a Associação Americana de Psiquiatria a excluir a palavra histeria de sua nomenclatura. Em seu lugar, em 1980, o DSM-III incluiu a expressão desordem de personalidade múltipla que, em 1994, no DSM-IV, foi substituída por distúrbios dissociativos da identidade.

Apesar da etiologia incerta a medicalização tem sido certa. O uso de psicofármacos tem se apresentado, na atualidade, como o caminho mais frequente para as chamadas patologias do espírito e tem na histeria seu enigma fundamental.

Por suas múltiplas formas de expressão a histeria parece se constituir num verdadeiro espelho da cultura, uma tela de projeção em que se fixa a imagem negada daquele que a contempla.

Foram especialmente esses pontos que me conduziram a retomar o estudo da histeria de conversão, paradigma da psicanálise. Afinal o que é a histeria de conversão? E qual o lugar dos sintomas corporais aí presentes? Resgato aqui a expressão freudiana solicitação somática2 como eixo explicativo para o mecanismo da conversão.

 

UM POUCO DE HISTÓRIA

Como afirma Trillat (1991), em sua História da histeria, ao longo dos séculos a histeria é uma problemática que tem sido reivindicada por diferentes poderes, estados e disciplinas, além de ter sido produtora de um imenso universo de conhecimento. O fato é que "o padre, o filósofo e o médico [...] sentiram-se concernidos num momento ou noutro, uns e outros e todos juntos" (Trillat, 1991: 13), por essa questão.

Em sua origem greco-latina a histeria se constituiu como uma questão de e para as mulheres - as parteiras - que, à distância dos homens, acumulavam um saber sobre o parto, a infância, o sexo da mulher e as doenças que a acometiam, especialmente aquela traduzida pela sufocação. Sufocação da matriz, do útero - origem da palavra histeria.

Hipócrates (século IV a.C) vai consagrar duzentas e cinquenta páginas de suas obras completas às "doenças das mulheres", cuja origem principal é atribuída à mobilidade da matriz, dando continuidade à ideia, que remonta à mais alta Antiguidade, de que o útero é um organismo vivo análogo a um animal dotado de autonomia e de uma possibilidade de deslocamento. Ideia insólita que terá vida longa até o começo da era cristã. A "sufocação da matriz" - a histeria - não é considerada senão um caso particular das doenças das mulheres, afecção que, segundo Hipócrates, ocorre, sobretudo, àquelas que não têm relações sexuais, o que tornaria o útero mais leve e de mais fácil movimento. Esse fato levaria o útero até o fígado, causando a seguir uma sufocação súbita da mulher ao interceptar as vias respiratórias. Para Hipócrates, é por essa razão que o branco dos olhos revira, a mulher fica fria e por vezes lívida, e a saliva flui à boca fazendo-a sucumbir asfixiada se assemelhando aos ataques epilépticos. Descrição precisa daquilo que, muito mais tarde, Charcot vai nomear de ataque histérico completo.

O que vale destacar é a ideia corrente nesse período de que a mulher se distingue do homem por esta característica singular de encerrar em seu ventre um animal que não tem alma. Platão, amigo de Hipócrates, afirma que:

Na seção mais baixa sob o baixo ventre reside a matriz. E aí estamos na animalidade pura [...]. Na mulher, o que se chama de matriz ou útero é como um ser vivo possuído pelo desejo de fazer crianças [...] e que, ao permanecer estéril, se irrita perigosamente, se agita em todos os sentidos, obstrui as passagens de ar, remetendo o corpo às piores angústias (Trillat, 1991: 23).

Somente à época romana, devido aos movimentos de libertação das mulheres e dos escravos, iniciaram-se algumas mudanças nos tratamentos bárbaros dirigidos às histéricas cujo objetivo era fazer descer o útero, que teria se deslocado em direção à cabeça. De um modo ou de outro, a violência tem acompanhado os chamados tratamentos dos sintomas histéricos: extirpação do útero, internações forçadas, ou mesmo a camisa de força química. O que se retrata, através dos tempos, é a intolerância dos discursos instituídos em relação à posição histérica, ou melhor, ao discurso da histérica, como ensina Lacan (19691970/1992), cujo agente é o sujeito dividido marcado pela falta.

A posteridade vai reter da herança médico-filosófica uma importante observação: que a história da histeria é estreitamente ligada à história da epilepsia. Tanto uma quanto a outra se traduzem em manifestações corporais espetaculares que inspiram desde o temor até a compaixão. A violência do ataque deixa o sujeito aturdido e inconsciente em relação ao que passou. Hipócrates, ao localizar a epilepsia no cérebro, destrói as crenças que a rondavam. A histeria teve que esperar alguns séculos para com Charcot e, depois, com Freud ter um destino semelhante.

Um longo caminho ainda seria percorrido durante toda a Idade Média quando milhares de mulheres designadas como bruxas foram queimadas vivas. No século XVII, se estabelecerá uma verdadeira luta pela posse da histeria, campo de batalha entre religiosos e médicos, desencadeando um processo de dessacralização da temática que revela que, através dos tempos, a histeria tem se transvertido tanto numa questão sobrenatural quanto natural (científica).

Tratada por padres, médicos, taumaturgos do mesmo modo que, nas chamadas sociedades tradicionalistas, ela ainda pertence aos xamãs, feiticeiros e curandeiros, a histeria tem se constituído numa espécie de porta-voz daquilo que é o impossível da cultura.

 

CHARCOT: UM MESTRE GENIAL

Ao final do século XIX, Charcot, médico neurologista, e seus alunos ampliam a pesquisa histórica em torno da histeria, mostrando que os casos de convulsões, as epidemias, anestesias que atravessaram os séculos eram fenômenos semelhantes àqueles apresentados pelas loucas acolhidas na Salpêtrière. Ao afirmar a autenticidade e objetividade dos fenômenos histéricos Charcot realiza um gesto libertador em relação à histeria, semelhante àquele realizado por Pinel em relação à doença mental.

Ao ler as Leçons du mardi, torna-se fácil compreender o impacto que esse brilhante conferencista e escritor causou no, então, neurologista Sigmund Freud quando este recebe uma bolsa de estudos para aprofundar os estudos em Paris. As aulas e apresentações de doentes de Charcot atraíam alunos de todo o mundo e dentre eles o mais importante foi sem dúvida Freud.

Charcot rompe com a tradição da visita médica ao leito dos doentes fazendo-os vir até seu gabinete para examiná-los ou os apresentava a uma audiência mais ampla nas terças-feiras no Hospício da Salpêtrière. Dessa forma constrói um novo sentido para a ideia de clínica, que etimologicamente significa consulta ao leito do paciente. As suas pesquisas com a hipnose desencadearam o interesse científico por essa prática, que durante muito tempo foi relegada ao limbo das apresentações circenses.

Ao descrever a chamada Grande histeria, composta de quatro etapas completas, viabiliza que a histeria ocupe um lugar de interesse médico e científico, retirando-lhe a conotação preconceituosa que o rótulo de "doentes detestáveis" bem expressava. Denunciou, por outro lado, as práticas intervencionistas cirúrgicas, muito comuns nessa época, que extirpavam o órgão - útero e ovários - com a justificativa de cura da doença histérica. Quanto à acusação de que seria de algum modo responsável por essas práticas afirma:

Jamais aconselhei que os ovários fossem extirpados. Não sou tão simplista assim, e penso que se trata de algo muito mais complexo [...]. Essa posição não tem pé nem cabeça. Se fosse assim, seria preciso retirar um pedaço da pele das costas para suprimir as placas histerógenas (Charcot, 1887-1889/2003: 21).

Além disso, com suas apresentações de pacientes apontou a presença da histeria para ambos os sexos, demonstrando que até mesmo "um ferroviário [...] um homem vigoroso!" (Charcot, 1887-1889/2003: 19) pode ser acometido pela doença. Esse fato abriu a discussão sobre a relação entre a referida patologia e a frequência das licenças de trabalho, que ainda hoje desnorteiam alguns médicos.

Apesar de o interesse de Charcot não ser etiológico ou mesmo terapêutico, mas descritivo e nosológico, seu vasto trabalho de pesquisa viabilizou encontrar analogias surpreendentes entre os dois tipos de anestesia ou paralisia - histérico e neurológico -, introduzindo uma diferenciação entre a chamada "lesão anatômica" e a "lesão dinâmica" que abriu o caminho para a elaboração freudiana da causalidade psíquica na histeria.

A genialidade do mestre e seu impacto no percurso freudiano é bem explicitado, em 1885, numa carta que Freud endereça à futura esposa:

As vezes saio de suas aulas como de Notre-Dame, com uma ideia totalmente nova da perfeição. Fico exaurido e depois de estar com ele não tenho nenhum desejo de trabalhar com minhas bobagens [...]. Meu cérebro se satura como se tivesse passado uma noite no teatro. Não sei se essa semente dará frutos, porém o que posso afirmar é que ninguém tinha me afetado de tal maneira (Freud, 1893/2007: 10).

Os frutos sem dúvida foram abundantes e a importância de Charcot para o nascimento da clínica psicanalítica mereceria um trabalho à parte. Destaco alguns pontos fundamentais: a definição de zona histerógena, a classificação cuidadosa dos fenômenos histéricos, permitindo a identificação de uma lei subjacente a sua ocorrência, a dissolução do preconceito que ligava a histeria à feminilidade, a denúncia das práticas violentas como forma de tratamento, o rompimento com a tradição da visita médica ao leito dos doentes fazendo-os vir até seu gabinete para examiná-los e o estabelecimento do uso do hipnotismo como instrumento de pesquisa, que são fatores indiscutíveis que influenciaram Freud a prosseguir em sua própria pesquisa.

Talvez essa influência tão determinante justifique por que Freud adiou por tanto tempo - sete anos - uma publicação, aparentemente solicitada pelo mestre, no ano de 1886, versando sobre um estudo comparativo das paralisias orgânicas e histéricas. Publicação que revelaria os aspectos discordantes da posição freudiana em relação àquela, defendida por Charcot, de lesão funcional subjacente aos distúrbios histéricos. O fato é que esse artigo, publicado em 1893, se constituiu num verdadeiro divisor de águas entre os escritos neurológicos e psicológicos de Freud. Momento decisivo expresso na afirmação de que:

a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois nas suas paralisias e em outras manifestações a histeria se comporta como se a anatomia não existisse [...]. A histeria ignora a distribuição dos nervos [...] toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a roupa (Freud, 1893-1895/2007: 206).

Conclui, considerando que a lesão nas histerias diz respeito à incapacidade do órgão ou função em exame de ter acesso às associações do ego consciente.

A experiência da histeria no século XIX está intimamente ligada a uma clínica do olhar. Charcot foi considerado um mestre visual, o que lhe permitiu ver e ordenar os fenômenos criando as condições de delimitação dessa problemática comparativamente com outras patologias. Sua preocupação com a observação era tão grande que criou um laboratório fotográfico no hospício. O fato é que, com Charcot, a cena histérica ganha estatuto de interesse investigativo viabilizando as descobertas freudianas.

 

O CORPO NA HISTERIA

Meu interesse pelo tema da histeria de conversão se inscreve num conjunto mais amplo de interrogações sobre o estatuto do corpo na psicanálise e suas interfaces com o campo médico. O reconhecimento da hegemonia do discurso médico no campo social, em sua lógica organicista, aliada à expansão da demanda social por medicamentos para aplacar as diferentes formas de sofrimento, confronta o psicanalista com a premência do estudo das diferentes etiologias no campo psicopatológico e com a importância do diagnóstico diferencial, temas, exatamente, relegados pela atual Classificação Internacional de Doenças (CID-10).

A histeria de conversão é paradigmática nesse campo de investigação. Dito de outro modo: é diante da impossibilidade de o discurso médico responder aos sintomas somáticos da histeria de conversão que emerge o desejo de saber em Freud, dando origem à psicanálise. Considero que é a retomada dessa discussão inicial que pode viabilizar um trabalho de distinção com outras formas de sofrimento que têm no corpo o personagem principal.

Nos primeiros trabalhos freudianos a expressão histeria de conversão não é utilizada porque o mecanismo da conversão caracterizava, até então, a histeria em geral. É o que se verifica nos "Estudos sobre a histeria" (Freud, 1893-1895/2007) e, especialmente, na apresentação do caso Elisabeth quando Freud descreve o mecanismo subjacente à conversão. É somente, em 1909 (2007), na "Análise de uma fobia em um menino de cinco anos" que Freud vai designar uma pura histeria de conversão sem qualquer angústia diferenciando-a da histeria de angústia propriamente dita e da fobia.

Os "Estudos sobre a histeria", que foram escritos e publicados no período entre 1893-1895 (2007), compõem-se de cinco casos clínicos, quatro escritos por Freud e um por Breuer. O último e mais longo de todos - o caso Elisabeth - é dividido por Freud em três etapas e concluído através de uma discussão sobre o mecanismo da conversão.

Nesse trabalho, afirma que é comum se verificar na pré-história da histeria um período de cuidados e de atenção às pessoas doentes - espécie de submissão à demanda do Outro - por um longo período de tempo, o que justificaria a supressão das próprias emoções do sujeito. Em outras palavras, um fluxo de ideias é excluído em favor dos deveres morais dirigidos ao outro amado. Afirma que o mecanismo defensivo aí presente consiste no fato de que um grupo de representações tende a perder sua força quando se lhe retira a moção afetiva correspondente. É essa moção de afeto que é escoada para o corpo na forma dos verdadeiros ataques histéricos, ou projetada para fora constituindo as alucinações ou delírios histéricos. É esse quantum de excitação que, na histeria de angústia, é sentido no corpo como angústia, desprazer experimentado na forma flutuante, ou localizado em determinados objetos, como é o caso das fobias. Freud chama a atenção para o fato de que a conversão é o mecanismo mais eficaz para eliminar a angústia, oriunda das representações em conflito, justificando a chamada la belle indifference des hystériques.

Freud coloca em destaque que o processo de recalque na histeria de conversão se conclui na formação do sintoma e não necessita prosseguir indefinidamente como na histeria de angústia (Freud, 1915b/2007: 151). Afirma que o mecanismo da regressão aí presente justificaria a eficácia do processo, mas adia sua discussão para mais adiante, provavelmente no artigo metapsicológico extraviado que seria dedicado à histeria de conversão.

Nos "Estudos", a questão freudiana é a delimitação do fator quantitativo aí presente, ou seja, o reconhecimento de que haveria um "grau máximo de tensão emotiva que o organismo poderia tolerar...". E a hipótese de que "quando essa quantidade é aumentada pela somação, até um ponto além da tolerância do indivíduo, dar-se-ia o ímpeto à conversão" (Freud, 1893-1895/2007: 187).

Freud ressalta a relação simbólica entre os sintomas somáticos e as ideias ou representações que sofrem o recalque como, por exemplo, as terríveis dores de cabeça de Fräu Cäcilie associadas ao olhar penetrante da avó que, no dizer da paciente, iam direto para o seu cérebro. A palavra não dita, ou mal-dita, se fixa se inscrevendo no corpo como símbolo mnêmico. Como indica Freud, há "uma reanimação das sensações a que a expressão linguística deve sua justificação" e "a histeria restabeleceria para suas inervações mais intensas o sentido originário das palavras" (Freud, 1893-1895/2007: 193).

Prossegue considerando que acha incorreto dizer que essas sensações são criadas mediante a simbolização, mas que algo aí se alimenta junto com o uso linguístico de uma fonte comum (Freud, 1893-1895/2007: 193). Destaca que os movimentos clônicos de agitar-se e do debater-se, que é a parte puramente motora do ataque histérico, seguem sendo durante toda a vida a forma de reação para a excitação máxima (Freud, 1893-1895/2007: 216) e ocupam o lugar de uma lembrança originária.

Encontra-se, aqui, uma das distinções possíveis entre os sintomas de conversão e os chamados fenômenos psicossomáticos, ou seja, nos primeiros verifica-se a presença de uma ligação simbólica entre a representação recalcada e a parte do corpo adoecida. Nesses casos há, de fato, um significado psíquico inconsciente, sexual, originário. Com relação aos fenômenos psicossomáticos, o corpo denunciaria a ausência do trabalho de simbolização. Como indica Lacan (1963-1964/1988), nesses casos o corpo estaria marcado por um significante único, inviabilizando-se a constituição de uma cadeia significante, um desdobramento no campo do sentido e, consequentemente, da verdade inconsciente para o sujeito.

Não seria correto, portanto, incluir os fenômenos psicossomáticos na categoria de sintomas. O sintoma é uma forma de gozo que se exila no deserto do corpo (Soller, 1983) ou, como nos ensina Freud, uma forma de ganho secundário, inscrito na dimensão de uma fala inconsciente. Os fenômenos psicossomáticos, por outro lado, implicam num fechamento do gozo num ponto do corpo, evocando a possibilidade de situá-los do lado das neuroses atuais, como indica Trillat (1991). Freud considera as neuroses atuais como o núcleo das psiconeuroses - "o grão de areia no centro da pérola" (Freud, 1912/2007: 257) -, o que abre um importante campo de pesquisa para a clínica psicanalítica. Sugiro, aqui, que tal grão de areia ganha expressão clínica exatamente no termo freudiano solicitação somática.

 

SOLICITAÇÃO SOMÁTICA: SOBRE O "EMPUXO" AO ORGÂNICO

Freud denomina de solicitação somática a propensão de algumas pessoas a transformar a dor psíquica em dor física, indicando, ainda, que a presença de doenças físicas anteriores à conversão favoreceria a localização do sintoma em uma determinada área do corpo (Freud, 1893-1895/2007). A presença de doenças físicas facilita a descarga do afeto "porque satisfaz", como indica, "o princípio de menor resistência" (Freud, 1893-1895/2007: 219), favorecendo um escoamento direto da excitação psíquica.

Mas como entender a noção freudiana de solicitação somática que serve como destino para esse a-mais de excitação presente na histeria de conversão?

Uma primeira e importante referência ao tema encontra-se no artigo sobre o caso Dora (Freud, 1901/2007). Freud indica que o sintoma histérico não se produz sem a presença dessa solicitação somática oferecida por um processo no interior de um órgão do corpo, apontando, assim, a influência mútua entre o somático e o psíquico. Também destaca a presença de um ganho primário no mecanismo da conversão ao se apresentar como uma solução mais econômica, à medida que poupa o sujeito de um trabalho psíquico.

Encontram-se, ainda, duas outras referências à expressão solicitação somática: uma no artigo "A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão" (Freud, 1910/2007) e outra em "Contribuições para um debate sobre o onanismo" (Freud, 1912/2007).

No primeiro trabalho, Freud enfatiza que sempre que um órgão que serve a uma pulsão tem sua erogeneidade incrementada, há uma perturbação da função desse mesmo órgão, tratando-se aqui da parte constitucional da disposição para o adoecer. No segundo, contrapondo-se à tentativa de Stekel de ampliar em demasia o que denomina de psicogenia das doenças, reafirma a antiga distinção entre neuroses atuais e psiconeuroses. Destaca que são as neuroses atuais que fornecem a solicitação somática que fundamenta as psiconeuroses, ou seja, trata-se de uma quantidade de excitação que é selecionada e revestida psiquicamente, ou seja, representada, constituindo o núcleo do sintoma histérico. Em outras palavras, afirma que a neurose de angústia é o equivalente somático da histeria.

As neuroses de angústia, segundo Freud, apresentam duas formas de emergência: como ataques de angústia e como um estado crônico, mais brando e com aparecimento flutuante. A descrição freudiana dessa modalidade neurótica se assemelha bastante ao que é denominado pela psiquiatria contemporânea de transtornos de ansiedade, que envolvem os ataques de pânico e a ansiedade generalizada.

Freud supunha que essa afecção - a neurose de angústia - seria causada por certas técnicas de contracepção, como, por exemplo, o coitus interruptus. Ele destaca que tudo depende simplesmente do receio de, ao utilizar essa técnica sexual, o sujeito privar o parceiro de satisfação sexual. Vai observar, também, que devido a esse receio a neurose de angústia é acompanhada por um decréscimo da libido sexual, ou seja, do desejo psíquico. Estabelece, então, que o mecanismo da neurose de angústia deva ser procurado no que denomina uma deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica.

Temos, assim, nas neuroses de angústia, um processo quase que exclusivamente somático, pois uma excitação libidinal é provocada, mas não é satisfeita, nem empregada. Não ocorre o circuito pulsional com a descarga correspondente, mas, pode-se dizer, um curto-circuito. A transformação direta da libido em angústia, referida por Freud, assinala o fracasso do trabalho psíquico de ligar as representações psíquicas ao excesso da excitação. No caso da histeria de conversão, há uma eficácia na evitação da angústia exatamente pela conversão da libido numa parte do corpo simbolicamente delimitada.

Lacan (1962-1963/2005), no seu seminário sobre a angústia, reinterpretará as palavras freudianas da seguinte maneira: na neurose de angústia, a angústia aparece na medida em que o orgasmo se desliga do campo da demanda ao Outro. Considera que Freud, ao situar no coitus interruptus a fonte da angústia, colocou em destaque que este afeto é promovido em sua função essencial justamente ali onde a intensificação orgástica é desvinculada do exercício do instrumento fálico. Ou seja, o sujeito pode chegar à ejaculação, mas é uma ejaculação do lado de fora, e a angústia é provocada pelo fato de o instrumento fálico, ou melhor, o significante fálico ser posto fora de jogo no gozo. Já na histeria de conversão uma parte do corpo, ao agregar um excedente de excitação ou libido, torna-se uma verdadeira zona histerogênica, como nomeou Charcot, fazendo de uma área do corpo o lugar de articulação entre o gozo e o desejo.

Prossigo com o tema da solicitação somática. Em 1914 (2007), Freud retoma a discussão à luz do narcisismo e da teoria da libido. Seguindo uma indicação de Ferenczi sobre a influência da enfermidade orgânica na distribuição da libido, considera que a pessoa afligida por uma dor orgânica e por sensações penosas suspende seu interesse pelas coisas do mundo, deixa de amar retirando seu interesse libidinal pelos objetos. Como não lembrar que é exatamente depois de uma decepção amorosa que Fraülein Elisabeth passa a sofrer mais intensamente de suas dores nas pernas? Fato que permite a conclusão de que o mecanismo da conversão satisfaz a libido do eu.

A questão da presença do mecanismo da regressão na histeria de conversão foi trabalhada num interessante artigo de Ferenczi denominado "Fenômenos de materialização histérica", de 19193. Afirma que a conversão no corpo consiste essencialmente em realizar um desejo, como por mágica, a partir da matéria de que o sujeito dispõe em seu corpo e dar a ela uma representação plástica primitiva como um artista que modela um material como quer, ou como os ocultistas que, ao simples pedido de um médium, representam a "vinda" ou a "materialização" de certos objetos. Denomina de regressão tópica o fato de que diante de uma impossibilidade de representação psíquica a excitação excessiva precisa ser liberada pela descarga motora.

Segue afirmando que no plano temporal essa regressão tópica corresponde a uma etapa precoce quando o organismo - ainda incapaz de proceder a modificações da realidade - se caracterizava por uma tendência primitiva de modificação do próprio corpo (autoplástico). Momento em que o psíquico não se distingue do físico. Trata-se de uma etapa, como afirma o autor, em que o desejo se satisfaz pela via reflexa. Dessa forma indica que:

Na histeria, todos esses mecanismos fisiológicos se põem à disposição de moções de desejos inconscientes e, por um reviramento completo do curso normal da excitação, um processo puramente psíquico pode assim se exprimir numa modificação fisiológica do corpo (Ferenczi, 1919: 137).

Fala sobre a constituição de um verdadeiro idioma histérico, de um jargão simbólico que aí se constitui, feito de alucinações e de materializações corporais, ou seja, os sintomas histéricos submetem inteiramente ao princípio de prazer os órgãos de importância vital sem nenhuma consideração pelas suas próprias funções utilitárias.

Essa articulação primária do físico com o psíquico pode ser resgatada através das noções de erogeneidade e zona erógena presentes nos trabalhos freudianos.

No já referido artigo sobre o narcisismo, Freud (1914/2007) descreve a erogeneidade como uma propriedade geral de todos os órgãos do corpo, fenômeno que não se confunde com a noção de zona erógena. Na primeira trata-se de algo quantitativo que pode aumentar ou diminuir e que parece se aproximar da noção de fonte das pulsões sexuais. A ideia de fonte, articulada às noções de objeto, alvo e pressão, constitui um dos quatro elementos da pulsão (Freud, 1915a/2007), o que leva Lacan a considerar a ideia de um circuito no campo das pulsões sexuais, circuito que vai delimitar o corpo em zonas erógenas. Como o nome indica, tratar-se-ia de uma área do corpo que se constitui em função da representação psíquica, isto é, do processo de simbolização que ocorre a partir do encontro com o desejo do Outro (Lacan, 1963-1964/1988).

Uma primeira discussão sobre a questão das fontes das pulsões encontra-se no artigo "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/2007). Apesar de Freud sempre apontar para a natureza enigmática dessas fontes indicando que o estudo das mesmas extrapolaria o campo da psicanálise, considera que talvez "nada de considerável importância ocorra no organismo sem contribuir com algum componente para a excitação da pulsão sexual" (Freud, 1905/2007: 186) e que a qualidade do estímulo é que é, sem dúvida, decisiva, ainda que o fator da intensidade (no caso da dor) não seja de todo indiferente.

As chamadas pulsões parciais derivam diretamente dessas fontes internas ou são composições de elementos oriundos tanto dessas fontes como das zonas erógenas. Por outro lado, sugerindo que se suspenda temporariamente a ideia de fonte da pulsão sexual, aponta para a presença do que denomina de influência mútua entre o sexual e o orgânico propriamente dito. Vai afirmar que "uma boa parte da sintomatologia das neuroses que deriva de perturbações dos processos sexuais se exterioriza em perturbações de outras funções não sexuais, do corpo". Tal fato "representa a contraparte das influências que presidem a produção da excitação sexual" (Freud, 1905/2007: 187).

A ideia de uma solicitação somática relacionada à noção de fonte das pulsões sexuais parece se esclarecer efetivamente com a introdução do conceito de pulsão de morte (Freud, 1920/2007), mais especificamente no artigo de 1924a (2007) "O problema econômico do masoquismo". Nesse importante trabalho, após estabelecer as diferenças entre o Princípio do Nirvana, articulado à pulsão de morte, e o Princípio de Prazer, base da pulsão de vida, Freud distingue três tipos de masoquismo: o erógeno, o feminino e o moral. É o primeiro - o masoquismo erógeno - aquele que se encontra no fundamento dos outros dois, atribuindo-lhes bases biológicas e constitucionais.

Considera que a presença de prazer no sofrimento deve-se, exatamente, à existência de uma erogeneidade primária dos órgãos atribuída às fontes da sexualidade infantil, espécie de mecanismo fisiológico infantil em que coexistem libido e tensão dolorosa - base onde se erige o masoquismo erógeno.

A libido tem a missão de tornar inócua uma parte da pulsão de morte desviando-a para fora, ou seja, para os objetos do mundo externo, através do aparelho muscular, e colocando-a diretamente a serviço da função sexual. Esse é o sadismo propriamente dito. A outra parte não compartilha desse destino, permanecendo dentro do organismo, onde se prende libidinalmente - aqui aparece um indicativo da noção de narcisismo originário, ou eu-ideal, que será elucidado no esquema óptico, introduzido por Lacan (1954-1955/1997) para descrever a constituição do sujeito.

Depois que uma parte da pulsão de morte foi projetada para fora sobre os objetos, permanece como seu resíduo o genuíno masoquismo erógeno, que tem um aspecto componente da libido e outro que segue tendo como objeto o próprio sujeito, ou seja, seu corpo. Apesar de reconhecer uma ausência de compreensão fisiológica de como ocorre a sujeição da pulsão de morte, Freud afirma que normalmente não temos que lidar com uma presença pura da pulsão de vida e da pulsão de morte, mas de uma fusão das duas em proporções variáveis em cada caso particular. No entanto, não deixa de prever que, em função de uma série de fatores, a uma fusão das pulsões pode corresponder uma desfusão delas, fato que se expressaria em diferentes formas patológicas. Trata-se, aqui, de variações nos processos de simbolização que viabilizariam diferentes modalidades de defesa para o sujeito em sofrimento.

Podemos supor que na histeria de conversão a chamada solicitação somática indica o caminho de volta da libido a esse masoquismo erógeno que é facilitado tanto pela presença de uma doença orgânica prévia, quanto pelo fato de essa parte do corpo estar carregada de sentido simbólico, como no caso das dores na perna de Elisabeth, área em que o pai convalescente descansava as próprias pernas. Esse processo é chamado por Freud de masoquismo secundário, testemunhando em seu retorno a articulação tão fundamental entre pulsão de vida e pulsão de morte, fato que talvez sirva de referência para pensarmos outras situações clínicas em que essa articulação não se viabilize tão eficazmente.

Concluindo, levanto a hipótese de que a eficácia do sintoma corporal, referida por Freud já em seus primeiros trabalhos, indica a presença radical de um empuxo ao orgânico (solicitação somática) que, na tentativa de excluir o trabalho psíquico, coloca em destaque essa tendência primária - além do princípio de prazer - que a ideia lacaniana de gozo irá circunscrever. Como afirma Lacan (1967/2003: 357), "é pelo gozo que a verdade vem resistir ao saber. É isso que a psicanálise descobre naquilo a que se chama sintoma".

 

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NOTAS

1 Trabalho apresentado no II Encontro Nacional e II Colóquio Internacional do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise Histeria, obsessões e fobia: a neurose em análise, em outubro de 2010, no Rio de Janeiro.

2 Freud utiliza a expressão alemã somatisches Entgegenkommen traduzida por facilitación somática, solicitación somática, compiancenza somática e somatic compliance. Em português temos duas traduções: complacência somática, submissão somática. O termo solicitação somática aqui utilizado é uma tradução livre do espanhol em função da sua articulação com as ideias de atração, indução e incitação, que considero que melhor se coadunam com a perspectiva freudiana.

3 Esse texto foi indicado por Freud no artigo, de 1924b (2007), "A perda da realidade na neurose e na psicose".

 

 

Recebido em 03 de maio de 2011
Aceito para publicação em 11 de outubro de 2011