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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO LIVRE

 

O tratamento do sintoma e a construção do caso na prática coletiva em saúde mental

 

The treatment of the symptom and the case construction in mental health collective practice

 

 

Daniela Costa BursztynI; Ana Cristina FigueiredoII

IPsicanalista; Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Doutoranda em Psicanálise (UERJ); Especialista em Clínica Psicanalítica pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Psicóloga integrante da equipe da Coordenação de Saúde de Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
IIPsicanalista; Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professora Associada do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ; Supervisora de CAPS e rede de Saúde Mental - SMSDC-Rio

 

 


RESUMO

O método de construção do caso vem se revelando um importante instrumento de pesquisa clínica em psicanálise para acompanhar e avaliar um processo de tratamento na prática institucional. A discussão diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial, as demandas e os diversos momentos de um tratamento são elementos da construção do caso que orientam o trabalho em equipe. A partir desses elementos é possível extrair uma lógica singular do sintoma em cada caso, sendo este um modo de o psicanalista fazer diferença no trabalho coletivo.

Palavras-chave: psicanálise; sintoma; construção do caso clínico; saúde mental.


ABSTRACT

The "Clinical Case Construction" method is becoming an important tool for clinical research in psychoanalysis to conduct and evaluate the treatment process in the institutional practice. The diagnostic discussion, the singular expression of symptoms, the transference relationship, the demands and the various moments of the treatment are elements for the case construction which guides the teamwork. From these elements it is possible to extract a singular logic of the symptom in each case, as a means for the psychoanalyst to make a difference in the collective work.

Keywords: psychoanalysis; symptom; case construction; mental health.


 

 

A discussão apresentada neste trabalho aborda o tratamento analítico do sintoma como uma especificidade clínica e como um modo de contribuição da psicanálise ao campo da saúde mental. Podemos considerar como uma especificidade da prática analítica nas instituições a de sustentar a concepção do sintoma como expressão própria de cada sujeito, contribuindo, com efeito, aos campos da psiquiatria e da saúde mental, em especial no que se refere à discussão dos fenômenos psicopatológicos, à função dos diagnósticos no tratamento e às ofertas terapêuticas dos dispositivos da atenção psicossocial.

A ação do psicanalista na prática institucional não se restringe à oferta de tratamento psíquico capaz de acolher a singularidade que cada sintoma desvela, mas se amplia ao privilegiar essa discussão clínica para nortear o trabalho da equipe que se ocupa dos casos nas instituições. Entretanto, não é uma tarefa simples a de identificar como a clínica psicanalítica opera com o sintoma na prática institucional. É necessário investigar propostas e métodos clínicos aplicados ao campo da saúde mental que possibilitam tratar o sintoma em sua dimensão singular, produzindo, ao mesmo tempo, uma transmissão da particularidade de cada caso no trabalho coletivo. Para fundamentar essa investigação, apresentamos o método da construção do caso clínico1 como uma proposta de trabalho e de pesquisa de orientação psicanalítica que visa uma conduta em equipe a partir da transmissão da lógica única e singular do sintoma em cada caso.

 

O SINTOMA COMO ORIENTAÇÃO CLÍNICA NA SAÚDE MENTAL

No atual cenário das pesquisas e métodos clínicos empregados nos campos da psiquiatria e da saúde mental, situamos a construção do caso clínico e sua tarefa de transmitir os princípios éticos e metodológicos da psicanálise. Como sabemos, a orientação da psiquiatria contemporânea, fundamentada no modelo médico-científico, consiste em reduzir a formação dos sintomas aos diversos transtornos que compõem os manuais de classificação diagnóstica. Na busca de uma cientificidade, a psiquiatria, cada vez mais, exclui a particularidade de cada sintoma, já que o discurso da ciência ejeta o sujeito sem levar em conta sua expressão singular e o real em jogo em cada tratamento. Priorizando a pesquisa científica em detrimento da clínica, as pesquisas em psiquiatria se inscrevem em um movimento amplo de objetivação na construção dos fenômenos observados no campo dos transtornos mentais. E os sintomas, que são significativos para identificar um diagnóstico, ficam retidos na objetividade descrita nos manuais, desconsiderando a maneira singular de interrogar o sofrimento psíquico revelado através dos sintomas. Cria-se, assim, uma lógica de intervenções que se afasta dos princípios da clínica psiquiátrica, descartando o sujeito e suas particularidades.

O sintoma transformado em "transtorno mental" caracteriza uma lógica de tratamento que se resume às respostas positivas ou negativas à medicação, produzindo novas e constantes "evidências científicas". Se aplicarmos esse modelo clínico ao campo da saúde mental, perdemos completamente a referência de uma prática clínica orientada pelo sintoma como correlato do sujeito para dar lugar a uma prática estatística de verificação de intervenções e procedimentos. "Orientar-se pelo sintoma" (Bursztyn & Figueiredo, 2010: 29) como marca de um sujeito é um modo de retomar a discussão clínica e diagnóstica no campo da saúde mental sem restringi-la a um conceito ou a um modelo classificatório, mas transmitindo o que há de único em cada caso. Trata-se de sustentar o trabalho coletivo na atenção psicossocial, propondo uma prática clínica mais adequada ao atual paradigma da saúde mental: o trabalho em equipe orientado pela lógica singular do sintoma.

O campo da saúde mental, caracterizado por sua heterogeneidade tanto no que se se relaciona às referências teórico-práticas quanto no conjunto de serviços de atenção e cuidado psicossocial da rede pública, comporta em si uma variedade de saberes que problematiza uma direção comum para o acompanhamento dos casos. Incluindo nesse campo a psiquiatria, destaca-se a importância dos conceitos psicopatológicos na direção do diagnóstico e na localização do pathos do sujeito como balizador do tratamento. Nessa perspectiva, a psicanálise introduz no campo da atenção psicossocial a concepção de diagnóstico e tratamento herdados da chamada "psiquiatria clássica", criando novas exigências para ambos e abrindo uma nova porta para a psicopatologia. Assinalamos aí a importância da prática diagnóstica como modo de localizar uma contribuição específica da psicanálise para a psicopatologia e para a saúde mental, incluindo o sujeito do inconsciente e sua expressão sintomática como a herança da própria psicopatologia. Torna-se necessário, então, indicar uma proposta que possibilite tratar o sintoma em sua dimensão singular e, ao mesmo tempo, contemple a prática clínica de diferentes formações profissionais e referências teóricas, de modo "a não reduzir os instrumentos clínicos da psicanálise a uma banalização de seu uso ou a uma supervalorização de seus conceitos" (Figueiredo, 2004: 77).

Como constituir, então, um solo comum de trabalho para diferentes profissionais que não teriam qualquer compromisso com uma formação em psicanálise, mas poderiam se valer de sua contribuição? Partindo desse questionamento, indicamos a contribuição da psicanálise ao introduzir nesse campo multidisciplinar uma concepção que avança do particular - o diagnóstico - para o singular, retomando o geral - as diretrizes de cuidados da saúde mental - a partir dos efeitos colhidos em cada situação clínica. Desse modo, a ação clínica atua sobre o "geral" indicado por determinadas diretrizes do campo da saúde mental como a reabilitação, a cidadania, a autonomia e a contratualidade no intuito de ampliar as relações sociais dos usuários e fazer proliferar suas possibilidades. O "singular", por sua vez, designa a articulação do "particular" de uma referência das classes diagnósticas com o movimento do sujeito do inconsciente. Eis aí uma primeira diferença marcada pela psicanálise na condução dos casos a partir de sua operação clínica com o sintoma, ao considerar que "o sintoma não vai sem o sujeito, nem o sujeito pode ser pensado sem o seu sintoma. Um constitui o outro, melhor dizendo, um se constitui no outro, o sujeito através do sintoma e vice-versa" (Figueiredo, 2004: 78).

A partir dessa especificidade de orientação clínica, a psicanálise propõe implicar o diagnóstico e o tratamento como elementos indissociáveis e intercambiáveis e a noção de tratamento como um processo em que se define o diagnóstico e não apenas o contrário. Essa relação estreita do sujeito com o sintoma, seja o sintoma neurótico ou as produções psicóticas, demarca uma diferença radical no que se refere à concepção funcionalista-organicista da psiquiatria atual, que se propõe separar esses dois termos e, portanto, distinguir ao máximo o diagnóstico do tratamento, tanto no método quanto na dinâmica. Se na orientação psicanalítica o sintoma não vai sem o sujeito, e esse sujeito é o do inconsciente, o sintoma é, então, concebido como uma formação (neurose) ou uma exposição (psicose) do inconsciente "a céu aberto"2. Diante disto, um estudo de caso não pode se restringir a um relato compilado de acontecimentos e procedimentos dispostos em uma sequência com critérios preestabelecidos a serem preenchidos, como no caso da anamnese, que resulta na súmula psicopatológica padronizada. A diferença marcada pela ação clínica da psicanálise é configurada, portanto, pelo esforço diagnóstico deslocado desse modo de "assepsia" para trazer à cena o sujeito e suas produções pela via do discurso, onde podemos localizar seu sintoma ou seu delírio. Nessa direção, indicamos a contribuição da psicanálise para o campo da saúde mental a partir do método da "construção do caso clínico" como um importante instrumento para o trabalho coletivo que possibilita extrair uma lógica singular do sintoma em cada caso que seja transmissível na sua coerência subjetiva, sem perder a perspectiva clínica do diagnóstico, àqueles profissionais não referidos aos fundamentos da psicanálise.

 

O SINTOMA E A CONSTRUÇÃO DO CASO CLÍNICO

O método de construção do caso clínico vem se revelando um importante instrumento de pesquisa clínica em psicanálise que permite acompanhar e avaliar um processo de tratamento através da construção de elementos que norteiam a prática de profissionais de formações diversas (Figueiredo, 2001, 2004; Viganò, 1999, 2010). A discussão diagnóstica, a expressão singular dos sintomas, a relação transferencial, as demandas e os diversos momentos de um tratamento são elementos da construção do caso que orientam o trabalho em equipe a partir de um "saber fazer" com a lógica do sintoma em cada caso e não apenas a partir do saber dedutivo das classificações diagnósticas.

A construção do caso clínico "é uma construção democrática na qual cada um dos protagonistas do caso (os técnicos, os familiares e as instituições envolvidas) traz a sua contribuição" (Viganò, 2010: s/p) através de suas narrativas sobre o caso. Trata-se de reunir as narrativas dessa rede social que acompanham um caso para encontrar o seu "ponto cego", ou seja, o ponto comum extraído das narrativas que aponta para a "falta de saber" que constitui o lugar do sujeito e do sintoma que o sustenta.

O método consiste em discutir um caso apresentado através de um registro escrito por um dos participantes. Segundo a proposta de Viganò (2010) em seu artigo "A construção do caso clínico", a construção deve compreender três etapas: a narrativa (do sujeito, da família, da instituição); as escansões do tratamento e o cotejamento entre o diagnóstico do DSM IV ou CID-10 e o psicanalítico. Desse modo, é possível realizar uma avaliação do acompanhamento de uma equipe após a discussão de cada caso. Essa avaliação é produzida, por sua vez, a partir da compilação de dois elementos: a sinopse da história concreta do sujeito (escansões da posição discursiva, acontecimentos, recursos financeiros, etc) e o prognóstico dos possíveis projetos de vida, com as hipóteses correspondentes aos mesmos itens. O princípio é o de cotejar as posições subjetivas nas passagens de discurso realizadas na história do paciente com os acontecimentos ocorridos no período de tratamento sob transferência, de onde se extraem as inferências que orientam as intervenções de uma equipe.

O arranjo desses elementos na construção dos casos propicia um trabalho de escrita que expõe as passagens e as conexões em que ocorreu uma mudança, uma transformação subjetiva no tratamento e, portanto, da relação do sujeito com o seu sintoma. Nessa direção, a construção do caso produz uma escrita capaz de demonstrar a lógica de um caso, considerando a particularidade do sintoma no processo de um tratamento e o modo como o real é implicado na formação de um sintoma particular.

Na Conferência introdutória sobre psicanálise intitulada "Os caminhos para a formação dos sintomas", Freud (1916-1917/1996: 361) adverte que "devemos lembrar que os mesmos processos pertencentes ao inconsciente têm seu desempenho na formação dos sintomas, tal qual o fazem na formação dos sonhos". Essa referência freudiana nos possibilita situar a montagem de significações representadas pelo sintoma a partir de uma equivalência com os mecanismos psíquicos que constituem os sonhos.

A análise dos sonhos desenvolvida por Freud (1900/1996) em "A interpretação dos sonhos" aborda as diversas cadeias associativas que se entrecruzam em um ponto em que "cada um dos elementos do conteúdo manifesto do sonho é sobredeterminado, representado diversas vezes nos pensamentos latentes do sonho" (Freud, 1900/1996: 289). Freud, assim, conceitua a sobredeterminação (Überdeterminierung) como efeito do trabalho da condensação que não se traduz apenas no nível dos elementos isolados do sonho, mas que possibilita a análise do conteúdo manifesto do sonho a partir de duas séries de ideias latentes diferenciadas (Laplanche & Pontalis, 1998). O conceito de sobredeterminação, portanto, não implica a independência ou o paralelismo de diversas significações de um mesmo fenômeno; por isso aprimora a concepção de que não haverá para os fenômenos dos sonhos e dos sintomas uma significação única a percorrer exaustivamente. Como exemplo, Freud compara o sonho a certas linguagens arcaicas, em que uma palavra ou frase comportam aparentemente numerosas interpretações. Tal como o sonho, o relato do sintoma é caracterizado por deslizamentos e sobreposições de sentidos e nunca é um sinal unívoco de um conteúdo inconsciente.

Dos estudos sobre "A interpretação dos sonhos" extraímos outra referência importante para essa discussão a partir do que Freud nomeia e conceitua como o umbigo do sonho:

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta ao nosso conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido (Freud, 1900/1996: 556).

Com essa passagem, consideramos o umbigo do sonho como um "ponto obscuro", alcançado pela interpretação dos sonhos, no qual todas as associações se concentram, limitando a possibilidade de novas associações. Os variados sentidos produzidos no relato de um sonho chegam a um ponto limite, a um impossível de decifrar cuja ausência de significação indicaria o que Freud define como sendo de causalidade sexual. A partir dessa concepção, entende-se que a interpretação dos sonhos ou dos sintomas nunca esgotará a causa desses fenômenos psíquicos. Nessa perspectiva, retornaremos com Lacan ao sintoma freudiano discutindo a concepção de sintoma como um "nó" composto de significações que constituem um ponto cego, um ponto ilegível, opaco e vazio de significação que caracteriza a "realidade sexual do inconsciente" (Lacan, 1975/1998: 20). Essa referência nos permite retomar o que Freud conceitua como sobredeterminação (Überdeterminierung), aproximando-a da proposição lacaniana de que o sintoma guarda algo da verdade de um sujeito que jamais poderá ser totalmente revelado.

O mais importante a concluir com a apresentação das "Conferências introdutórias" consiste na concepção freudiana do sintoma como uma rede de significações em torno de um "ponto cego" que assinala um impossível de decifrar. Nesse sentido, Lacan afirma que "a verdade não tem outra forma além do sintoma" (Lacan, 1966-1967: aula 18, 10/05/67), enfatizando a concepção do sintoma enquanto forma cujo conteúdo pode ser preenchido de modo variado, tal como define a verdade, designado mais propriamente no nível de sua operação do que de seu conteúdo. É, portanto, tomando o sintoma em sua dimensão de verdade que apreendemos a operação analítica com o sintoma como sendo capaz de produzir uma descoberta em torno desse "emaranhado" de significações que conduza a um saber fazer com o sintoma, sem acabar com seu ponto de obscuridade.

Ainda da conferência "Os caminhos para a formação dos sintomas" extraímos referências relevantes sobre o estatuto freudiano do sintoma, tomado em sua relação com os mecanismos de repetição e satisfação pulsional. Freud afirma que "os sintomas neuróticos são resultados de um conflito, e que este surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido" (Freud, 1916-1917/1996: 361), demonstrando que, apesar do sofrimento psíquico causado pelo sintoma, este também encontra uma forma de satisfação que justifica a resistência em eliminá-lo. No entanto, Freud já alertava que eliminar um sintoma não significava curar a doença, pois "a única coisa tangível que resta da doença, depois de eliminados os sintomas, é a capacidade de formar novos sintomas" (Freud, 1916-1917/1996: 361).

A partir de sua experiência, Freud se questiona sobre o caráter irredutível do sintoma que faz obstáculo ao tratamento e, com isso, avança em sua teoria abordando a expressão singular dos sintomas até o final de sua obra. Em "Inibição, sintoma e angústia", o autor considera que o sintoma é "o substituto de uma satisfação pulsional que não teve lugar, é o resultado da moção pulsional tocada pelo recalcamento" (Freud, 1926/1996: 95), assinalando a impossibilidade de sua eliminação ou cura por atuar como substituto de uma satisfação pulsional recalcada, que na teoria freudiana sempre se manifestará em busca de prazer. Mais adiante, no artigo "Análise terminável e interminável" (Freud, 1937/1996: 223), notamos as últimas indagações de Freud a respeito dos obstáculos encontrados ao longo de uma análise que se relacionam aos caminhos percorridos pela pulsão em busca de satisfação, o que caracteriza o aspecto incurável do sintoma. Ao relacionar o mecanismo da repetição com uma vertente do sintoma que faz resistência à decifração, Freud pôde observar a expressão particular de satisfação pulsional de cada sujeito, tomando a concepção do sintoma não como algo a ser curado, mas como detentor de algo incurável.

Se entendermos a clínica psicanalítica como um campo definido pelo sintoma, concebemos o sintoma não como sinal de doença, mas como expressão dos mecanismos de satisfação/insatisfação através da atividade de recordação ou da repetição na transferência. O par satisfação/insatisfação implicado pela pulsão de morte é chamado de "gozo" por Lacan, sendo este apresentado como a solução dada pelo sujeito à impossibilidade traumática de dizer de modo completo sobre seu estado de satisfação. Desta impossibilidade resulta um objeto perdido destacado do corpo: o objeto de desejo, aquele que marca essencialmente o desejo de um sujeito o qual o sintoma anuncia e denuncia como faltante de significação e como causa do desejo. O sintoma é, portanto, a reparação "ideal" do trauma, disto que se torna insuportável em função dos limites semânticos da linguagem, de um "dizer impossível de dizer" senão na forma da emergência do desejo. E são as reviravoltas da repetição no processo de um tratamento que permitem localizar essa vertente real do sintoma que resiste à decifração e que expressa um modo particular de gozo, um modo de satisfação próprio a cada um. No final de seu ensino, Lacan apresenta a concepção de sinthoma para designar uma maneira singular que cada um inventa para lidar com o real, ou seja, um "saber fazer aí" com esse impossível de dizer que revela um real em jogo para todo sujeito.

Aprendemos com Freud a considerar o sintoma como uma manifestação subjetiva, com Lacan avançamos nesta concepção a partir de uma elaboração teórica precisa que distingue o sintoma "patológico" do qual se queixa o sujeito neurótico e o sinthoma3 como solução inventada pelo sujeito para lidar com o irredutível do real do sintoma. Trata-se de uma nova proposta para a clínica do sintoma cuja direção visa localizar no sujeito o seu ponto de incurável e uma nova solução frente ao manejo do gozo. Orientar-se pelo sintoma seria, então, um modo de lidar com o sintoma; não tentando dele se desembaraçar, mas identificando-o como sua maneira de gozar. Essa passagem na teoria lacaniana é fundamental para o trabalho de construção dos casos e para uma formalização lógica do sintoma em cada caso que seja transmissível ao campo da saúde mental. Diante desta concepção, a clínica psicanalítica não opera com o sintoma como algo a ser abolido, atenuado ou até mesmo curado, mas com um sintoma a ser assumido, inventado ou até mesmo "construído".

Nessa perspectiva, a construção do caso permite localizar as escansões e as transformações das organizações subjetivas do gozo, demonstrando, por exemplo, as passagens em que o sujeito passa a utilizar o sintoma como suplência a partir da construção de novos arranjos sintomáticos. No entanto, propomos com esse trabalho de construção do caso tornar o mais evidente possível o modo como extraímos a lógica do sintoma em cada caso sem, necessariamente, entrar nos meandros da teoria analítica, mas, através desse método clínico, transmitir ao campo da saúde mental e a um público mais amplo a singularidade de cada sintoma. Localizar o sintoma e questionar o destino dado a este na construção de cada caso é, portanto, um desafio lançado ao psicanalista, que ao fazer valer o sujeito no sintoma recolhe, ainda, os efeitos de sua prática no trabalho com os demais dispositivos clínicos presentes no campo da saúde mental.

 

A CONSTRUÇÃO DO CASO E A PRÁTICA COLETIVA EM SAÚDE MENTAL

Para concluir, retomamos a discussão sobre a construção do caso clínico como proposta para a prática coletiva em saúde mental, assinalando a complexidade do trabalho em equipe nos serviços de atenção psicossocial e o modo como as equipes se estruturam como um aspecto decisivo para o destino desse trabalho clínico. Destacam-se, então, duas lógicas ou modalidades de organização das equipes que podem melhor situar tal problemática: a formação hierárquica e a formação igualitária (Figueiredo, 1997). Se as equipes são formadas mais na lógica hierárquica de funções e saberes, tendem a burocratizar a clínica, a verticalizar o poder e o saber e a cristalizar as práticas. Se são mais igualitárias, tendem a horizontalizar o poder, a misturar as funções escapando das especialidades, mas caindo na falta de especificidade e confundindo as funções a ponto de perder a referência da clínica e imobilizar o trabalho conjunto.

Diante disto, convém retornar ao termo lacaniano que define a relação de trabalho nos cartéis - a "transferência de trabalho" - como referência valiosa para orientar o trabalho com as equipes de saúde mental. Este termo designa a possibilidade de dissolver os efeitos narcísicos imaginários que inevitavelmente ocorrem, seja na confusão de papéis (modelo igualitário), ou na fixação de papéis (modelo hierárquico). No que se refere ao trabalho da equipe com cada sujeito, assinalamos a importância de transmitir a tarefa de "seguir seu estilo para a partir daí lhe indagar o que é pertinente a seu sintoma" (Figueiredo, 2004: 82), fazendo-o tomar minimamente a responsabilidade por seus atos, ainda que não tenha responsabilidade "plena", conforme o sentido jurídico. É preciso, portanto, separar esse campo de responsabilidades, pois na maioria das vezes os sujeitos se apresentam tutelados e desresponsabilizados, o que os leva à imobilidade, à falta de solução e à confirmação da doença. Outra orientação importante para conduzir o trabalho das equipes no campo da saúde mental é indicada pelo autor Alfredo Zenoni (2000) através do termo "aprendizes da clínica", que sintetiza a posição da equipe em formular as boas questões, verificar os efeitos de suas intervenções, tomar novas decisões ou dar novo rumo a cada caso a partir das indicações do sujeito que, convém lembrar, não são tão óbvias ou intencionais, mas estão dadas de algum modo no seu sintoma, em suas diferentes manifestações.

A partir desse ponto, podemos destacar a contribuição da construção do caso clínico como proposta aplicável ao campo saúde mental na medida em que permite recolher da experiência do sujeito e de seu sintoma os elementos com os quais se fará a construção do caso, entendendo que ela é sempre pontual e visa dar direções para determinada intervenção ou ação da equipe, sendo passível de revisão na medida dos acontecimentos. Assim, a construção do caso pode conter elementos discursivos de familiares, de outros envolvidos, mas não pode perder seu fio condutor que é a referência ao sujeito em questão.

Desse modo, concluímos que o que caracteriza a construção do caso na equipe de saúde mental, e diverge do trabalho mais específico do psicanalista, é exatamente o fato de a equipe ser heterogênea em sua composição - diferentes profissionais e referências teórico-técnicas, diferentes níveis de formação. A ação do psicanalista nesse trabalho "coletivo" direciona a discussão do caso a partir da posição assumida por uma equipe como "aprendizes da clínica", possibilitando colher das produções do sujeito os indicadores para seu tratamento e da singularidade de seus sintomas uma orientação clínica para o trabalho em equipe.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Referência ao método clínico desenvolvido pelo psiquiatra e psicanalista Carlo Viganò na Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão.

2 Expressão designada por Jacques Lacan (1955-1956/2002) em O seminário, livro 3: as psicoses.

3 Referência à teoria topológica apresentada por Jacques Lacan (1975-1976/2007) em seu Seminário, livro 23: Sinthome.

 

 

Recebido em 16 de maio de 2011
Aceito para publicação em 21 de abril de 2012