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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO LIVRE

 

Adolescência e uso de drogas à luz da psicanálise: sofrimento e êxtase na passagem1

 

Adolescence and drug use through the lens of psychoanalysis: suffering and ecstasy in the passage

 

 

Manoel Antônio dos SantosI; Elisângela Maria Machado PrattaII

IPsicólogo; mestre e doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP-SP); professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP-RP); Líder do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - NEPPS (FFCLRP/USP/CNPq); Editor da revista Paidéia (Ribeirão Preto)
IIPsicóloga; mestre e doutora pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP-RP); professora da Universidade Camilo Castelo Branco (Descalvado, SP)

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é refletir sobre os condicionantes psíquicos da drogadição na adolescência a partir de uma perspectiva psicanalítica. Partimos da invenção da adolescência como categoria sócio-histórica para em seguida nos determos na compreensão psicanalítica da transição adolescente. Esse percurso teórico pavimenta a abordagem do uso de drogas como fenômeno que serve de rito de passagem do adolescer contemporâneo. Esse fenômeno é modulado pela organização pulsional, que determina como o sujeito irá se apropriar do uso de substâncias psicoativas. Conclui-se que o uso de substâncias pode funcionar como objeto-tampão ativado para dar conta da fragilidade estrutural que envolve os vínculos afetivos na contemporaneidade.

Palavras-chave: adolescência; psicopatologia; droga (abuso); psicanálise.


ABSTRACT

The purpose of this study is to reflect upon the psychological factors of adolescent drug addiction according to a psychoanalytic perspective. First we consider adolescence as a social-historical category and then we discuss the psychoanalytic understanding of the adolescent transition. This theoretical path builds the approach that considers drug use as a phenomenon that serves as a passage ritual to contemporary adolescence. This phenomenon is modulated by the drive organization, which determines how the individual will take ownership of the use of psychoactive substances. We conclude that the substance use may function as a buffer-object, activated to deal with the structural fragility of the contemporary affective bonds.

Keywords: adolescence; psychopathology; drug abuse; psychoanalysis.


 

 

A INVENÇÃO DA ADOLESCÊNCIA

A origem etimológica da palavra adolescência remete ao latim adolescere, que significa brotar, fazer-se grande, crescer para, crescer em idade e força (Heidemann, 2006; Pratta, 2008; Traverso-Yépez & Pinheiro, 2002). Como sugere a raiz etimológica, a adolescência pode ser considerada como um período de transição da infância para a idade adulta, passando de um estado de intensa dependência para uma condição de autonomia pessoal (Pratta, 2008; Pratta & Santos, 2009a, 2009b; Silva & Mattos, 2004) e de uma condição de necessidade de controle externo para o autocontrole (Biasoli-Alves, 2001).

A sociedade contemporânea ocidental estendeu o período da adolescência, que deixa de ser reconhecida apenas como uma preparação para a vida adulta e adquire um sentido em si mesma como um estágio do ciclo vital (Schoen-Ferreira, Aznar-Farias & Silvares, 2010). De acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS (1965), a adolescência é definida como um período biopsicossocial que compreende a segunda década da vida (10 aos 20 anos). Esse também é o critério adotado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2007a) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (Brasil, 2007b). Já do ponto de vista do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Brasil, 2007c), o adolescer se estende dos 12 aos 18 anos.

Comumente, o adolescer é compreendido como "um período de pura mudança e inquietude [...] entre a imaturidade sexual e a maturidade, entre a formação e o pleno florescimento das faculdades mentais, entre a falta e a aquisição de autoridade e poder" (Levi & Schmitt, 1996: 7-8). Portanto, é uma fase de transição marcada pelos impulsos do crescimento corporal, pelas mudanças do desenvolvimento emocional, mental e social, além de ser um período no qual o indivíduo lança mão de intensos esforços para alcançar objetivos referentes às expectativas culturais da sociedade e de seu grupo familiar (Lidchi & Eisentein, 2004). Por essa razão, para responder aos imensos desafios colocados por tais demandas, o adolescente necessita do apoio de seu grupo familiar.

Apesar das inúmeras transformações pelas quais a instituição familiar tem passado nas últimas décadas, constata-se que a família perdura como elemento fundamental para a formação do indivíduo e da sociedade e, apesar das crises e mudanças vivenciadas ao longo de sua evolução, a organização familiar apresenta uma intensa capacidade de sobrevivência e adaptação aos movimentos históricos e sociais, o que demonstra sua plasticidade e complexidade (Goldani, 2002). Nesse contexto de crises, rupturas e mudanças vivenciadas pela família, foi possível, no final do século XIX e início do século XX, a cristalização do conceito de adolescência enquanto uma etapa diferenciada do processo evolutivo do homem (Grossman, 1998). Isso porque, segundo Passerini (1996), a década da virada do século ofereceu as condições determinantes para a invenção da adolescência, principalmente no que diz respeito às mudanças na estrutura familiar e nas relações entre seus membros.

Entretanto, o conceito de adolescência como período evolutivo só começa a se organizar entre as duas grandes guerras (Outeiral, 2001), sendo que a sua delimitação enquanto fase do desenvolvimento somente foi possível após a Segunda Guerra Mundial, o que estimulou, a partir dos anos 1950, um caloroso debate sobre o termo, seus conteúdos e suas implicações. A adolescência, então, passa a ter um status legal e social diferenciado, sendo necessário criar para ela disciplina, regulamentação e proteção, uma vez que os adolescentes desse período formavam um grupo muito diversificado, marcado por gostos e valores contraditórios, bem como por intensos conflitos internos (Passerini, 1996). No âmbito mundial essas ideias são divulgadas e incorporadas, considerando-se, é claro, as diferenças culturais.

Discutir a adolescência ainda hoje é tarefa bastante complexa, visto que esta é considerada como um fenômeno moderno, ou seja, uma metáfora da modernidade (Chagas, 2002; Moura, 2005), podendo ser abordada como uma construção social e cultural considerada de diferentes formas ao longo do processo histórico. Em diferentes contextos, a adolescência costuma ser investida de símbolos e valores específicos condizentes com cada período histórico. O presente estudo atém-se à abordagem que valoriza o pathos psíquico.

 

ADOLESCÊNCIA NA PERSPECTIVA DO PATHOS PSÍQUICO

A adolescência tem sido caracterizada pelos estudos como uma fase crucial no processo de desenvolvimento do indivíduo, uma vez que, nesta etapa, culmina todo o seu processo de maturação biopsicossocial, ocorrendo a aquisição da imagem corporal definitiva bem como a estruturação final da personalidade (Drummond & Drummond Filho, 1998; Levisky, 1998; Marturano, Elias & Campos, 2004; Osório, 1996). Sendo assim, pode-se dizer que o adolescente busca respostas às questões que lhe foram passadas, não sendo um simples produto de seu meio, mas um sujeito ativo que reage ao que lhe é proposto ou até imposto, buscando respostas próprias que façam sentido e que possibilitem sua inserção social (Matheus, 2003).

Tal etapa tem despertado o interesse de pesquisadores da área psicológica e de áreas afins em função de suas peculiaridades, muitas das quais estão associadas a conquistas e/ou riscos, à prevalência crescente de gravidez não planejada, dos acidentes, da violência, do uso de drogas e de outros problemas de saúde mental (Guimarães, Vieira & Palmeira, 2003). Também contribui para aumentar o interesse por essa etapa do ciclo vital o número de indivíduos inseridos nessa faixa etária em nível mundial, principalmente a partir dos anos 1980, quando é possível identificar uma explosão da taxa de natalidade que resultou em um aumento significativo da população juvenil na virada do século, movimento denominado de "onda jovem" (Baeninger, 1999; Matheus, 2003). Entre as diversas vertentes teóricas que abordam a questão da adolescência, buscando compreendê-la no contexto atual, destaca-se a psicanálise. A associação entre adolescência e crise vital ganhou um novo contorno teórico a partir das reflexões psicanalíticas iniciadas com Freud, no início do século XX, que ganharam espaço ao longo do período posterior a partir das produções dos psicanalistas contemporâneos (Oliveira, 2006).

A adolescência constitui-se, então, como uma vivência liminar e fundamental para a constituição da identidade do sujeito, sendo permeada por mudanças, remodelamentos subjetivos, reinvestimentos pulsionais, retificações e ressignificações de diversas ordens. É o momento em que o adolescente necessita

reeditar sentimentos e vínculos primários em relação às figuras parentais, revisando, assim, seus objetos internos e sua identidade. Para os pais, trata-se também de um processo angustiante e confuso, já que necessariamente irão se deparar com questões referentes à separação, diferenciação, finitude, alterações de lugares e papéis na dinâmica familiar, além de inevitáveis frustrações decorrentes do crescimento e das escolhas dos filhos (Jordão, 2008: 125).

Na adolescência, segundo Freud, o drama edipiano também é retomado, após permanecer por um longo período em estado latente. Essa retomada traz à tona os possíveis conflitos e situações relacionadas ao Édipo, ao recalque, à castração, à identificação, às escolhas objetais e às instâncias ideais. Em nome da primazia da genitalidade, o sujeito adolescente é confrontado pelo desafio de vencer as demandas incestuosas, encaminhando-se para novas escolhas de objeto fora do círculo familiar, buscando se libertar da autoridade dos pais para vivenciar novas formas de relações (Freud, 1905/2007).

Portanto, ocorre uma reedição do conflito edipiano, o qual se lhe apresenta, nesse momento, como muito mais ameaçador devido à possibilidade da vivência genital (Levisky, 1998). Essa nova experiência com o Édipo corresponde a um encontro em relação ao qual o indivíduo não pode faltar, sendo esse elemento formador de um dos grandes conflitos do adolescente (Kalina & Grynberg, 2002). A adolescência rompe a harmonia afetiva estabelecida após a integração do Édipo, sendo o psiquismo invadido por novas pulsões e desejos, os quais, na verdade, já estavam presentes desde o nascimento, mas são reativados e ocupam um lugar em um corpo agora maduro e genitalizado (Clerget, 2004).

 

ADOLESCÊNCIA E USO DE DROGAS: VIDA E MORTE, PRAZER E SOFRIMENTO

Vimos que viver e atravessar a etapa evolutiva da adolescência é uma experiência vital que, inevitavelmente, envolve sofrimento psíquico. O modo de "ser" do adolescente é doloroso. "Ele poderá procurar evitar a dor refugiando-se na negação e na sublimação, ou em alguns casos, encontrá-la sendo atraído por ela, vivendo-a como diversidade e singularidade" (Ferrari, 1996: 34). A adolescência é um período permeado de contradições, frequentemente confuso e marcado por ambivalências e fricções com o meio familiar e social (Aberastury & Knobel, 1992). Por essa razão, nesse processo evolutivo primordial existe tanto uma desestruturação quanto uma reorganização estrutural da personalidade e da identidade em busca de sua configuração adulta. Devido a essa marca de instabilidade, esse processo está diretamente associado a perturbações biológicas, sociais e psicológicas (Clerget, 2004).

A construção da subjetividade está articulada aos laços sociais possíveis em dados grupos sociais, sendo a adolescência um processo subjetivo tecido na modernidade para suprir as falhas inerentes à estrutura social em atribuir ao adolescente um lugar em harmonia com sua condição de ser desejante (Rosa, 2002). Portanto, a entrada na cena social provoca a emergência de processos psíquicos próprios da adolescência. No decorrer desse processo, os momentos de instabilidade e de crise, marcas do período, diminuem à medida que o indivíduo encontra uma maior clareza e aceitação de si mesmo, podendo elaborar o luto por suas perdas e sentir-se aceito no contexto em que está inserido (Levisky, 1998).

Para o adolescente, correr riscos é uma maneira de reconhecer o poder que ele exerce sobre o seu novo e desconhecido corpo (Clerget, 2004; Muza, 2000), além de satisfazer uma necessidade de desenvolvimento da autonomia, do domínio de si e da individualização. Nesse processo, a busca de novas atividades e iniciativas, embora seja atributo positivo, pode levar a resultados negativos. Além disso, a adoção de comportamentos de risco, baseada nas características anteriormente mencionadas, associada ao egocentrismo exagerado, pode incrementar sentimentos de onipotência e invulnerabilidade pessoal (Muza, 2000).

Entre os comportamentos de risco observados na adolescência tem chamado a atenção dos pesquisadores a questão do consumo de drogas que, além de apresentar altas prevalências, tem sido cada vez mais precoce (Pratta, 2003; Pratta & Santos, 2006, 2009a, 2009b). Por viverem a instabilidade de um corpo e mente em constante transformação, o que provoca maior ou menor sofrimento psíquico, os adolescentes constituem um grupo de risco em relação ao consumo de drogas (Rebolledo, Medina & Pillon, 2004; Suárez & Galera, 2004; Tavares, Béria & Lima, 2001). A vulnerabilidade característica dessa etapa pode ser agravada pelo próprio sentimento de onipotência presente na adolescência, uma vez que o adolescente sente-se indestrutível e imune a qualquer problema de saúde vivenciado pelas outras pessoas (Facundo & Castillo, 2005).

Ao refletirmos sobre o uso de substâncias psicoativas à luz da teoria psicanalítica, nota-se que os autores tendem a apresentar a drogadição como um sintoma (Plastino, 2000), que revelaria problemas na organização pulsional do sujeito. Estes determinantes dão o colorido às motivações específicas de cada indivíduo para o uso de drogas, combinadas com um conjunto de fatores diretamente relacionados às diversas facetas da vida social. Atento à esfera intrapsíquica, Freud (1930/2007) enfatiza a função dos tóxicos como um lenitivo que propicia alento frente ao mal-estar vinculado às renúncias de gratificação pulsional impostas pela civilização, alívio de um sofrimento suscitado pelo peso da realidade como obstáculo à busca do prazer.

A drogadição, tomada como um sintoma psíquico, coloca o indivíduo frente à necessidade de compreender que significados essa formação sintomática embute, ou seja, o que ele busca revelar por meio do sintoma. Nessa linha de pensamento, considerando que os estudos epidemiológicos apontam que a maioria dos indivíduos começa a fazer uso de substâncias psicoativas na adolescência e que esse uso entre adolescentes tem sido cada vez mais intenso e precoce, é importante identificar os significados do sintoma, principalmente nessa fase do ciclo vital.

O uso e abuso da droga estão, em um primeiro momento, diretamente relacionados à busca da maximização do prazer, que é inerente ao psiquismo. O ser humano, ao longo de sua existência, procura, de um lado, encontrar situações que lhe propiciem prazer e, de outro, que irão diminuir ou até mesmo eliminar certas condições que possam causar dor ou sofrimento. Olievenstein et al. (1990) ressaltam que na toxicomania existe a realidade do prazer vinculada ao objeto-droga, que é da ordem do não-dito. Segundo Gurfinkel (1995), isso ocorre tanto pela ausência de processos representativos quanto pelo silêncio/tabu que cerca esse tipo de obtenção de prazer.

Quando o indivíduo encontra o objeto-droga, estabelece com ele, inicialmente, uma fase de lua de mel, a qual possibilita adquirir um registro psíquico dessa vivência prazerosa, que proporciona novas buscas do objeto. Isso porque, segundo Del Nero (2002), a droga traz um efeito letárgico, ou seja, provoca uma apatia que faz com que a pessoa, pelo menos por certo tempo, sinta a ilusão de que a ansiedade foi eliminada e, com isso, nesse curto período de tempo, ela pode reencontrar sua autoestima perdida, apresentando uma sensação de plenitude, equilíbrio e força. Segundo Gurfinkel (1995), como a noção de prazer ocupa um lugar central no pensamento freudiano, a relação entre o uso de drogas e a busca do prazer não escapou a Freud, apesar de ele não ter se dedicado extensamente a essa questão. No texto "O mal-estar da civilização", Freud (1930/2007) discute os diversos métodos de que o ser humano lança mão para obter prazer e evitar o desprazer, ou seja, para alcançar a felicidade. Nessa direção, Freud considera a intoxicação como um dos métodos possíveis de autoengano:

Não creio que alguém tenha compreendido o seu mecanismo, mas é evidente que existem certas substâncias estranhas ao organismo cuja presença no sangue ou nos tecidos nos proporciona diretamente sensações prazerosas, modificando ainda as condições de nossa sensibilidade de maneira tal que nos impedem de perceber estímulos desagradáveis (Freud, 1930/2007: 77-78).

Na concepção psicanalítica, destaca-se, ainda, que o sujeito é pensado como intrinsecamente social e que possui uma afetividade constitutiva que gera conflitos, mas que o torna um ser gregário (Plastino, 2000). Nesse contexto, destaca-se a ambivalência afetiva originária pela qual cada sujeito nutre, com relação aos outros, poderosos e ambivalentes sentimentos de amor e de ódio. Essa ambivalência possibilita a reflexão sobre o parricídio originário, levando Freud à discussão sobre a origem da vida social. Portanto, a psicanálise contribui para o entendimento dos fenômenos sociais (Mountian, 2002). A aceitação da lei social não está ligada apenas ao medo que impulsiona o sujeito a aceitar essa condição, limitando a expressão de sua agressividade inerente. Para Freud, existe outro elemento afetivo em destaque, caracterizado como Eros, que é considerado como expressão da luta da espécie humana pela vida.

Seguindo o fio da argumentação freudiana, infere-se que a inserção social do sujeito supõe a aceitação da alteridade, ou seja, a compreensão da existência do outro como diferente de si. Isso funciona como um limite para a onipotência narcisista, o que depende do posicionamento assumido pela mãe em relação ao filho em seu processo de amadurecimento. A alteridade é, portanto, uma necessidade tanto para a sociedade e a vida social quanto para cada indivíduo e o desenvolvimento individual.

Quem faz uso de substâncias psicoativas se insere entre as personalidades incapazes de perceber o "outro como outro" e de reconhecer "a si próprio" (Kalina, Kovadloff, Roig, Serran & Cesaram, 1999). É um sujeito que, em seu processo de constituição subjetiva, não logrou um processo bem-sucedido de castração. Por isso fica fixado em seu desejo de onipotência narcisista e busca na droga reeditar a experiência fugaz e compulsoriamente renovada dessa fantasia onipotente (Plastino, 2000), uma vez que, por não ter sido submetido à castração simbólica, a ameaça concreta da castração para ele é constante e real.

Nessa vertente, o indivíduo sente necessidade de reviver constantemente as fantasias de onipotência como um elemento que lhe possibilita encontrar alívio da angústia que o assola. Tais fantasias sustentam seu consumo compulsivo de drogas, já que o impulso para o uso não é detido nem mesmo pela evidência de seus efeitos destrutivos (Plastino, 2000). O toxicômano lança mão do mecanismo da denegação, por meio do qual os efeitos mortíferos da droga, embora racionalmente conhecidos, são ignorados. Para o referido autor, a sustentação do ideal onipotente é paga pelo sujeito com a dependência, a degradação física e psicológica e, não raro, a morte.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo fornece algumas pistas e indicações que sugerem possíveis frentes de pesquisa psicanalítica relevantes para o avanço do conhecimento no campo da drogadição na adolescência. A partir do diálogo com a literatura foi possível destacar que, no contexto contemporâneo, o uso de drogas pode ser pensado como uma expressão de linguagem do adolescer, que dentro de certos limites funciona como uma fonte de socialização. Quando se manifesta de forma abusiva, esse uso configura um problema que pode repercutir em todo o processo posterior de vida do jovem (Schenker & Minayo, 2003). Além disso, quando o uso compulsivo de substâncias psicoativas ocorre, ele tem um impacto não apenas individual, mas sobre o ciclo vital da família, podendo levar ao congelamento da passagem de uma fase evolutiva para outra (Brasil, 2004).

Da interlocução com a psicanálise foi possível deduzir que o uso abusivo de substâncias psicoativas na contemporaneidade pode funcionar como um objeto-tampão, ativado para dar conta da questão da organização pulsional do sujeito e da fragilidade estrutural dos vínculos afetivos, além de traduzir, sintomaticamente, o mal-estar de um determinado contexto familiar que está estruturado e vem funcionando de maneira tóxica. Em função desse quadro, nas últimas décadas foram desenvolvidos vários estudos procurando compreender a estrutura, a dinâmica e a influência da família no fenômeno da farmacodependência (Rezende, 1997). Isso porque o contexto familiar fornece modelos que influenciam diretamente os padrões de conduta dos indivíduos, principalmente se estes estiverem em processo de desenvolvimento, tentando definir os contornos de sua identidade e organizar seu sistema de crenças e valores (Avi & Santos, 2000), como ocorre no período de travessia da adolescência.

Além disso, nessa etapa de transição do ciclo vital, a família continua funcionando como o eixo de referências simbólicas para o indivíduo em desenvolvimento, já que representa o lugar em que se busca encontrar proteção, segurança e afeto. Para que essa função de promover condições favoráveis ao desenvolvimento humano seja desempenhada a contento, é necessário que a organização familiar abra espaço para esse outro que está se consolidando (Sarti, 2004). Nessa vertente, a literatura tem apontado a importância de compreender a dinâmica familiar na manifestação de diversas psicopatologias, o que implica também na necessidade de analisar a história de vida familiar no caso de famílias que vivenciam a questão da drogadição entre seus membros adolescentes.

 

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NOTAS

1 Este trabalho foi baseado na tese de doutorado intitulada Mães de adolescentes usuários de substâncias psicoativas: história de vida e dinâmica familiar, apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, em 2010. Os autores agradecem ao Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - NEPPS (FFCLRP/USP/ CNPq), à Secretaria Municipal de Saúde e ao Programa de Saúde da Família do município de Descalvado (SP, Brasil).

 

 

Recebido em 17 de outubro de 2011
Aceito para publicação em 23 de abril de 2012