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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

RESENHA

 

Nomadismo contemporâneo

 

Contemporary nomadism

 

 

Cynthia De Paoli

Psicanalista, Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID)

 

 

RESENHA DE:

Augé, M. (2009). Pour une anthopologie de la mobilité. Paris: Editions Payot & Rivages. 96 páginas.

Hoje e sempre, os psicanalistas se deparam com desafios em seu fazer, novas formas subjetivas que provocam uma postura interrogativa frente a um impasse clínico. Observamos os sintomas que se apresentam em nossa prática: são eles novos ou antigos? A transferência acontece da mesma forma ou contém alterações? Como, através da interpretação, produzir um desejo de saber, fazendo com que o analisando abra mão do imperativo de gozo? Os fundamentos da psicanálise são constantemente revisitados e repensados quanto à sua atualidade.

O olhar aguçado de Marc Augé, antropólogo, traz grandes contribuições ao estudo e compreensão da subjetividade do homem contemporâneo. Este livro, publicado em 2009, é, na verdade, um desdobramento de um tema desenvolvido anteriormente.

Em Non-lieux - introduction à une anthropologie de la surmodernité (Augé, 1992), ele investigara as relações do homem com sua cidade considerando arquitetura e engenharia como manifestações de uma cultura, indícios da vida subjetiva de um grupo social. Em 1992, Augé ressalta algo de novo na paisagem: a presença cada vez mais frequente de espaços físicos de uso público - aeroportos, hotéis, estádios, etc - que são destituídos de qualquer atributo ou característica especifica que permita associá-los a algum lugar geográfico. Estes espaços são padronizados quanto à aparência e funcionamento em todo o mundo, quer estejam situados no extremo Oriente ou nos Estados Unidos. Melhor dizendo, não portam qualquer identidade com os lugares em que se encontram, não pertencendo a lugar algum e a todos os lugares ao mesmo tempo. São espaços a-simbólicos, "não-lugares".

Augé observa que os mesmos arquitetos, assim como Calatrava ou Frank Geary, são contratados e têm sua concepção arquitetônica difundida em diferentes países de culturas distintas, buscando exprimir um conceito único sobre arte, indicando o que é bom gosto, vanguarda, direção a seguir.

Também as empresas de serviços, bancos, produtos e grifes seriam os mesmos em diferentes lugares e, onipresentes, sinalizariam ao transeunte, de forma inequívoca, quais deveriam ser os objetos de desejo, o que consumir.

Os espaços a-simbólicos também existiriam no ambiente doméstico e teriam sido gerados pelo desenvolvimento dos meios de comunicação. O uso da internet em navegação nonstop, assim como da televisão, introduz uma codificação de valores exterior e alheia àquelas do seio familiar, produzindo efeitos sobre o sujeito.

Em Pour une anthropologie de la mobilité, Augé (2009) investiga os laços dos cidadãos com sua cidade, a constituição das identidades culturais. Ele conclui que o sentimento de pertencimento ao espaço geográfico de origem, ou seja, a cidadania, se diluiu enquanto valor, parecendo não ter mais tanta importância para o homem ocidental. Ele aponta para o fato de que existe um deslocamento acentuado de pessoas pelo mundo, de forma geral, e uma frequência nos movimentos migratórios maior que antigamente.

Estes deslocamentos podem ser determinados tanto por um novo emprego quanto simplesmente pela busca de um estilo de vida diferente. Entretanto, o que parece estar subjacente é a busca do movimento em si, quer seja no encalço de oportunidades, quer seja motivado por lazer, aventura, emoção, etc. Ele afirma que a circulação crescente de pessoas pelo mundo parece mostrar que este se apequenou. Outro fator que teria contribuído para tal comportamento teria sido o desenvolvimento da rede rodoviária ultramoderna que, interligando cidades e países, reduzindo distâncias, proporciona uma experiência que altera a percepção da relação espaço-tempo.

Os grandes centros urbanos também se desenvolveram e ampliaram, se expandindo a ponto de configurar uma megacidade. A extensão dos domínios urbanos para as margens dos rios, estradas e vias de circulação foi chamada de urbanização do mundo por Augé.

A megacidade aqui descrita parece apontar para uma diluição do sentido tradicional de "fronteira", fazendo pressupor a existência de menor diversidade cultural e, consequentemente, mais harmonia entre os habitantes destas cidades. Paradoxalmente ao que se esperaria obter, isso não se deu. Ao imaginarmos que a ampliação das cidades levaria a uma maior integração dos moradores da periferia, nos enganamos: o que aconteceu foi uma nova forma de ocupação do espaço urbano e o surgimento de bolsões de pobreza dispersos pela cidade.

Estes seriam o resultado do deslocamento das empresas em busca de mercado: ao serem fundadas, estas companhias trariam novos moradores e desenvolvimento; contudo, ao partirem, deixariam espaços vazios pela cidade que viriam a se degradar com o tempo, tornando-se espaços de ninguém. Concluindo, a própria dinâmica da sociedade determinaria uma instabilidade das comunidades no seio da cidade. Não houve então eliminação ou transposição das barreiras culturais, pois a presença das áreas de exclusão são marcas da intolerância e do conflito social.

Se a vitalidade de uma cidade é avaliada pelo fluxo de moradores que por ela circula, se estabelecendo ali ou a deixando, o estabelecimento dos laços dos moradores com sua cidade parece ser um valor secundário.

Esta diluição da importância da identidade cultural é acompanhada de um deslocamento migratório que Augé chamará de "novo nomadismo". Ele sustenta que os antigos nômades tinham a noção de território, exibindo um movimento de ir e vir, enquanto os nômades contemporâneos mostrariam uma ausência de raízes frente à sua cidade de origem.

Augé cria um novo termo - mundialização - como nomeação da forma atual de o homem se defrontar com a relação espaço-tempo. Este conceito ultrapassa a compreensão do mundo globalizado, incluindo uma perspectiva planetária referida à ecologia e à sociedade.

Se a globalização está referida às questões advindas do mercado liberal, preocupando-se com as desigualdades sociais e com o desemprego, a mundialização amplia este espaço, vindo a ocupar-se da potencialidade do homem em destruir as condições de sobrevivência no planeta.

Pergunto-me se é possível falar em polis, no sentido grego, ainda hoje. As megacidades de que nos fala Augé se distanciam do sentido original concebido pelos gregos que valorizava o sentimento de pertencimento a um grupo e a uma região geográfica definida. As estruturas físicas das polis gregas tinham ao centro uma ágora, espaço que funcionava não só para que os dirigentes se dirigissem aos cidadãos, mas também como uma ouvidoria, que teria como incumbência ouvir queixas, resolver pendengas e outras questões.

O desenvolvimento da tecnologia imprimiu velocidade à comunicação gerando consequências. O homem do século XXI substituiu os diálogos face a face pelas conexões em rede. Dirigir a palavra ao outro foi substituído pelo envio da mensagem no iphone, trazendo ao sujeito a falsa impressão de relacionamento e proximidade.

O homem contemporâneo cada vez mais se isola em sua "bolha", tomando a imagem da tela do computador como a experiência em si. O acesso imediato à informação e o translado ao mundo virtual fazem com o sujeito se confunda frente à realidade em si, criando certa passividade e inércia frente à vivencia própria, ao "estar no mundo". O desdobramento desta confusão está na adoção de verdades parciais editadas pelo canal de TV, pela política do site, pelo editor da matéria, etc, implicando no engano de tomar como pessoal uma forma de pensar e agir pré-fabricada. Melhor dizendo, o sujeito deixa de ser sujeito de seu desejo para colocar-se alienado no significante do outro.

Se a mídia diz ao homem o que ele deve desejar ou possuir, apresentando objetos de desejo que se pretendem universais, também a indústria do turismo opera neste sentido, transformando o conhecimento e a experiência intercultural em mais um produto do mundo capitalista. As pessoas passam a consumir "turismo" muitas vezes como um direito e como um dever frente ao imperativo de gozo.

O turismo de massa e sua intensificação configuram para Augé uma dessacralização do mundo: valores históricos e simbólicos de determinado grupo são minimizados e/ou eliminados. Seria uma experiência geográfica despojada de seu valor particular na qual não se experimentaria o estrangeiro enquanto indicador da diferença cultural pelas mais diversas razões: quer seja pelo imediatismo e rapidez da experiência em si, quer seja pela incapacidade de introspecção do visitante, seu desinteresse nos aspectos históricos, políticos e filosóficos do que contempla.

Talvez possamos culpar a busca pelo lucro econômico e a demanda crescente de passageiros como justificativa para isso. As agências de turismo buscam adequar-se construindo itinerários padrão e uma programação minimalista das visitas, limitando o tempo de contemplação e, por conseguinte, qualquer produção subjetiva frente aos ícones culturais. Melhor dizendo, em favor do capital os sítios arqueológicos, monumentos históricos, templos sagrados perderiam seu valor simbólico para se tornarem objetos de consumo, o "must see" dos guias de turismo, assim como os "must have" ditado pelas revistas de moda.

Qualquer introspecção frente a uma obra é desencorajada pela exiguidade do tempo de observação permitido pelo guia de turismo. Até o mais motivado visitante é atravessado por uma voz de ordem que interfere em sua capacidade imaginativa que buscaria recompor um tempo que o antecedeu. Assim, as interrogações filosóficas cedem lugar às gift shops e aos souvenirs. Haveria para o homem de hoje uma diferença na experiência sensível vivida com o original e vivida com a réplica?

Os livros destinados a orientar o turista também determinam qual experiência "vale a viagem", imprimindo ao visitante um juízo uniformizado, antecipando o que é relevante a ser observado, assim como os espaços que nada lhe acrescentariam (?) e que deveriam se constituir apenas "pontos de passagem" nas rotas de deslocamento! As informações superficialmente apresentadas transformam ícones culturais em mais uma vitrine de consumo. O singular da vivência multicultural não se adéqua ao imediatismo do capital.

Para Rodolphe Christin (2010), o mundo que percebemos sofre uma produção que busca se impor sobre nossa percepção de mundo. Esta produção do mundo incidiria sobre o imaginário, dando forma aos espaços, encontros, descobertas, etc tornando-os rentáveis.

Christin (2010) afirma que, no mundo pré-fabricado, o viajante que busca turismo de aventura deveria se frustrar. Ao contrário da aventura, o que se tem é a experiência planejada, a intensidade emocional controlada, evitando que o turista se acidente ou corra algum risco. Logo, a experiência não é livre e espontânea, ela é manipulada, restrita, canalizada. Ora, nada mais oposto à aventura do que a aventura organizada! Se o viajante foi seduzido pelo desejo de aventura, o que recebe é a ilusão de aventura. O problema se torna maior ao percebermos que o sujeito é indiferente ao que recebe: uma experiência controlada que substituiu a vivência real. É a domesticação do mundo, segundo Christin, em prol do lucro.

A nova forma de nomadismo que nos relata Augé é também fruto de uma política de dominação pelo capital em que os sujeitos são objetos de gozo servindo aos interesses econômicos. A busca pela homogeneização e pela exclusão do diferente visa eliminar os traços particulares de cada povo, sua história e tradição, tornando os homens mais passíveis de manipulação. Tudo se justifica em prol da conscientização pela responsabilidade que lhe cabe na preservação do planeta, pelo avanço da ciência, pela democracia no acesso à informação, o que implica que a comunicação envolva uma compreensão globalizada (!).

O distanciamento ou indiferença em relação à história de seu país ou de sua família reflete uma ex-territorialidade do homem contemporâneo, apontando que tradição e nome de família são valores em desuso.

A alienação de si mesmo frente aos conceitos globalizados nos impede de emitir um juízo crítico, calando questões que sempre intrigaram o homem e produziram respostas particulares, interrogações dirigidas ao inconsciente, ao que nos rege, nossa versão paterna.

A antropologia traz luz a aspectos que talvez nos tenham passado despercebidos, contribuindo para a compreensão dos impasses com que nos deparamos na clínica: a intensificação da busca pelo gozo, a diminuição da capacidade de articulação no discurso do analisando, a melancolia, a compulsão desenfreada que surge na adição nas mais diversas formas: álcool, drogas, trabalho, sexo, etc. Todos estes sintomas apontam para um empobrecimento da atividade simbólica.

O inconsciente que se faz presente na psicopatologia cotidiana, no vazio do sentido, no equívoco significante, enfim, em toda a diversidade que nos interroga fazendo surgir o sujeito em seu devir, é indesejado e desestimulado, não havendo espaço para dúvidas no mundo globalizado.

Ao invés da sociedade do espetáculo, assim denominada por Guy Debord (1997), que apontava a imposição da imagem e a prevalência do narcisismo nos tempos modernos, Augé aponta um homem que vive sob a égide do movimento, deslocamento no espaço desarticulado de seu tempo. Para Augé (2009: 87; tradução nossa): "Pensar a mobilidade no espaço, mas ser incapaz de concebê-la na sua relação com o tempo, esta é finalmente a característica do pensamento contemporâneo presa de uma aceleração que o sidera e o paralisa".

O espaço a-simbólico de que fala Augé é um constructo antropológico e espacial que nos serve principalmente na clínica da compulsão, na qual o movimento, em aceleração, coloca o sujeito "fora" do que é ou do que pensa, descarregando suas intensidades sem propósito algum, em frenética repetição.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Christin, R. (2010). Manager le monde. In: Divertir pour dominer - La culture de masse contre les peuples (pp. 200-205). Montreuil: Éditions L'Échappée.         [ Links ]

Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]