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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre o inquietante de ser portador de HIV/Aids

 

Reflections on the uneasiness of living with HIV/Aids

 

 

Alessandro Melo BacchiniI; Lúcia Helena da Silva AlvesII; Paulo Roberto CeccarelliIII; Ana Cleide Guedes MoreiraIV

IPsicólogo pela Universidade da Amazônia; Especialista em Psicologia Hospitalar e da Saúde pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Saúde (IEPS); Mestre em Psicologia Clínica e Social pela Universidade Federal do Pará; Membro do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental, Belém-PA
IIMestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Psicóloga do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB); Membro do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental, Belém-PA
IIIPsicólogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor por Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro fundador da Rede Internacional em Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA); Pesquisador do CNPq
IVMestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Hospital Universitário João de Barros Barreto, Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará; Pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero; Chercheur Associé à l'Université Paris 7 Denis-Diderot

 

 

 


RESUMO

O HIV/Aids para o indivíduo parece ser representado como um estrangeiro inimigo que invade o organismo e produz efeitos da ordem do que é inquietante por reaver complexos infantis de castração, pois muitas são as novas imposições a partir desse diagnóstico: perda de peso, fragilidade imunológica, impossibilidades à relação sexual e a própria possibilidade iminente de morte. Além disso, o HIV/Aids parece trazer consigo o agravante do sexual - bem como suas representações no imaginário cultural -, pois esta é ainda hoje é uma das principais vias de contágio. É acerca desse indivíduo que se propõe pensar uma interlocução entre o diagnóstico de Aids e o sentimento de estranheza na teoria freudiana.

Palavras-chave: HIV/Aids; psicanálise; inquietante; sexual.


ABSTRACT

For the individual HIV/Aids appears to be represented as an foreigner that invades the body and produces effects on the order of what is unsettling, since it recovers childhood's castration complex. There are many new impositions from this diagnosis: weight loss, a weakened immune system, impossibilities to intercourse and the very real possibility of imminent death. Furthermore, HIV/Aids seem to carry the additional burden of a sexual element - and its representations in cultural imaginary - because today this is still a major route of infection. It is regarding this individual that we propose a dialogue between the Aids diagnosis and the feeling of weirdness in Freudian theory.

Keywords: HIV/Aids; psychoanalysis; disquieting; sexual.


 

 

INTRODUÇÃO

O profissional de psicologia deve estar familiarizado com os obstáculos que se mostram em sua prática, seja ela no setting clássico da clínica, ou então nos diversos lugares que têm demandado a inserção desse profissional. Obstáculos que, transformados em questionamentos, muito contribuem para a ampliação dos saberes. Dos novos campos de prática aos quais nos referimos, a experiência no hospital foi o que motivou a presente pesquisa.

A escuta no ambiente hospitalar é circunscrita a um público específico, a saber: a do paciente com HIV/Aids e suas representações imaginárias. Sobre este ponto, deve-se tomar a evolução histórica do HIV/Aids, que revela incertezas desde o período inicial de isolamento do vírus responsável até os dias atuais. Muito já se avançou, mas ainda há bastante a se percorrer no sentido do tratamento e dos cuidados destinados ao grande número de pessoas que vivem com a enfermidade.

Nesses termos, em que os diversos campos de saber ainda lutam para dar conta dessa doença, a Aids para o indivíduo parece ser representada como um inimigo estrangeiro que invade o organismo e produz efeitos da ordem do que é inquietante, por reaver complexos infantis de castração, já que são muitas as novas imposições a partir desse diagnóstico: perda de peso, fragilidade imunológica, impossibilidades à relação sexual e a própria possibilidade iminente de morte. Além disso, o HIV/Aids parece trazer consigo o agravante do sexual - bem como suas representações no imaginário cultural -, pois esta é ainda hoje é uma das principais vias de contágio. É acerca desse indivíduo que propomos pensar uma interlocução entre o diagnóstico de Aids e o sentimento de estranheza na teoria freudiana.

 

HIV/AIDS, QUE DOENÇA É ESSA?

O que se objetiva neste momento é apresentar uma das perspectivas possíveis para situar a evolução histórica do HIV/Aids, para assim formar uma espécie de retrato aproximado da realidade que se mostra, e que está em questão na pesquisa. Para tanto, vamos à história, que pode ser dividida em quatro momentos.

O primeiro momento da epidemia se deu de 1981 a 1984 e foi acompanhado de uma busca pelos fatores de risco, etiologia e distribuição: ou seja, uma busca pelo desconhecido. Surge então a noção de "grupo de risco". As primeiras campanhas realizadas em Nova York e São Francisco em 1983 relacionavam o terror da doença ao sexo e algumas descrições epidemiológicas nos Estados Unidos da América identificavam alguns grupos como de risco para o desenvolvimento do HIV/Aids, a saber: homossexuais, hemofílicos, haitianos e usuários de heroína. As estratégias de prevenção envolviam a abstinência e o isolamento e eram referidas principalmente aos dois primeiros grupos (homossexuais e hemofílicos), o que provocou uma série de questionamentos éticos sobre discriminação e abstinência. Afinal, perguntava-se então, se é uma doença transmissível sexualmente, e todos estão sujeitos a ela, por que pensar especialmente nesse grupo de pessoas? (Ayres, França Júnior, Calazans & Saletti Filho, 1999).

Pensando no Brasil, percebe-se que, nesse início, a Aids foi tomada como uma doença vinda do exterior, especialmente dos Estados Unidos da América - Nova Iorque. A notificação dos primeiros casos brasileiros, em 1984, foi assim relacionada: 134 pessoas no total, número que cresceu exponencialmente em um único ano, pois em 1985 foram 553 casos, sendo 256 homossexuais, 28 heterossexuais, 38 UDIs e os dois primeiros casos de transmissão vertical. É importante notar que já havia mulheres infectadas desde o início da epidemia.

O segundo período da epidemia se dá entre 1985 e 1988, quando o caráter transmissível se delimita e o agente etiológico é isolado. Nesse ponto, criam-se novas alternativas de prevenção que não somente a simples abstinência - o Center of Disease Control and Preven tion (CDC) recomendou o uso da "camisinha". Neste mesmo ano, na primeira Conferência Internacional sobre Aids, enfatizou-se pela primeira vez que a transmissão se dava pelo uso de agulhas contaminadas e por contato sexual, independente da orientação sexual dos envolvidos. Esta alteração muda o cenário do "grupo de risco" para o de "comportamento de risco", criando-se estratégias de redução de risco - controle de banco de sangue, atenção aos usuários de drogas injetáveis, uso de preservativo e divulgação de informações (Kalichman, 1993).

A utilização da noção de "comportamento de risco" em contraponto ao "grupo de risco" traz à baila o caráter universal do contágio, pelo qual não apenas determinadas pessoas pertencentes a uma classe deveriam ser assistidas, já que todos estão sujeitos ao contágio. Então a responsabilidade recai sobre o indivíduo e seus atos. Por outro lado, esta nova noção carrega um caráter regulador, no qual o comportamento é um sinal ou sintoma a ser diagnosticado e tratado. Além disso, há um efeito culpabilizador, pois a abstinência e a prevenção, a partir desta noção, são responsabilidades individuais (Kalichman, 1993).

Outro momento da epidemia pode ser datado de meados de 1989 até 1999, no qual houve uma maior percepção dos limites das estratégias de mudanças no comportamento - motivação e informação não garantem necessariamente uma mudança significativa. Além disso, houve um aumento sensível de casos em segmentos mais vulneráveis da sociedade - mulheres, jovens, pobres e negros. A noção de vulnerabilidade considera que a probabilidade de contágio leva em conta aspectos individuais e coletivos, o que proporciona uma nova maneira de abordar o problema. Ainda dentro desse período, no ano de 1996, se deu o início da terapia antirretroviral que alteraria os rumos da epidemia. Neste âmbito, o Brasil se destacou como um país pioneiro na garantia de tratamento universal e gratuito. Desde então, este tratamento foi o principal fator associado à diminuição da mortalidade provocada pela Aids e ao aumento da população que vive com o vírus (Polistchuck, 2010).

Pode-se considerar um quarto momento, que vai do ano 2000 até a presente data, caracterizado pela grande disseminação dos antirretrovirais e pelo grande número de pessoas vivendo com Aids. Nesse período, destaca-se a atenção às pesquisas que levam em conta os fatores socioculturais e afetivos, embora elas já existissem desde 1990. Surgem espaços para uma nova discussão: viver com Aids, com a medicação e seus efeitos colaterais, com o preconceito, etc. O que passa a estar em pauta não é mais somente a não transmissão, mas como viver após o diagnóstico (Granich et al., 2010).

Conforme afirma Polistchuck (2010), o conceito de vulnerabilidade revisa o de responsabilidade, no sentido de não colocar o plano individual como único fator determinante de algum resultado específico, preservando-se, no entanto, o caráter ativo do indivíduo nos processos de mudança.

A análise da vulnerabilidade, que tem se mostrado o novo paradigma para lidar com a Aids, envolve três eixos: individual - que leva em conta o grau de informação que o paciente possui e incorpora em seu cotidiano; social - os meios disponíveis para o acesso à informação e; programático - envolve a presença ou não de monitoramento de programas nacionais, regionais ou locais de prevenção e cuidado relacionados à Aids (Ayres et al., 1999).

Tem-se então um breve panorama da repercussão que a Aids provoca no mundo. Alguns anos de incerteza se passaram desde o primeiro caso até a descoberta do fator etiológico da doença. Além disso, a descoberta de um tratamento eficaz se deu à custa de anos deixando os diversos saberes e indivíduos desamparados diante do horror de uma enfermidade ainda fortemente relacionada a condutas sexuais que abre caminho para a instalação de sérias doenças oportunistas que ocasionam mortes dolorosas e em curto espaço de tempo.

De fato, muito se avançou na terapêutica do HIV/Aids, o que permite até mesmo que se pense nela como uma doença crônica. No entanto, sua história, aliada à situação de diagnóstico tardio em nossa região, parece favorecer uma colagem imaginária entre Aids e morte. Assim, questiona-se: como viver com esse vírus que passa a habitar os corpos e carrega consigo tantas representações inquietantes? Longe de responder de imediato a uma pergunta dessa magnitude, devemos nos debruçar no que mais a psicanálise pode nos dizer sobre esse sentimento de estranheza e o que a experiência de escuta do indivíduo pode nos oferecer para enfim nos aproximarmos de uma compreensão desses termos.

 

A AIDS COMO INQUIETANTE

Para dar prosseguimento e se chegar finalmente a uma interlocução entre o sentimento de ser portador do vírus do HIV/Aids e o inquietante, aproximemo-nos, neste momento, do conceito a partir de um retorno a Freud (1919/1969), especialmente em seu trabalho intitulado "O estranho" (ou inquietante, tradução que usamos).

Neste estudo, Freud (1919/1969: 277) faz um apanhado geral sobre o termo em várias línguas e na literatura na busca de uma definição sobre o sentimento de estranheza, chegando a uma primeira noção: "O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar". Em interlocução a essa primeira observação sobre o inquietante relacionada ao diagnóstico de HIV/Aids, pode-se perguntar: o que esta remete ao conhecido, ao há muito tempo recalcado? Que representações recalcadas ela reinvoca?

Com essa definição, Freud situa o significado da palavra alemã Unheimlich como o oposto de Heimlich (doméstico) e Heimlisch (nativo), pois aqui o inquietante é entendido como algo novo, diferente e exterior. No entanto, mais adiante esta noção será redefinida, pois algumas novidades podem ser assustadoras, mas nem todas o são (Freud, 1919/1969).

No estudo acerca dos matizes de significado da palavra Heimlich, o que interessa é encontrar um significado idêntico ao seu oposto, ou seja, embora ela expresse ideias diferentes, estas não se mostram contraditórias à medida que a compreensão do inquietante implica em uma prévia familiaridade.

Freud (1919/1969) analisa a definição de Schelling sobre o Unheimlich acrescentando algo novo: Unheimlich é tudo aquilo que deveria permanecer secreto, mas veio à luz. Mais adiante, ele chama atenção para as incertezas que causam estranheza - particularmente suscitadas em obras literárias - como, por exemplo, a dúvida quanto a saber se um ser é dotado ou não de vida. Para exemplificar, Freud traz a história de "O homem de areia", de Hoffmann, na qual o jovem Nataniel desenvolve temores diante da ideia de um homem (representado em sua fantasia por Coppola, advogado e amigo de seu pai) que jogaria areia nos olhos dos meninos desobedientes para depois arrancar-lhes a face. Outro ponto inquietante no conto é a presença da boneca Olímpia, que aparentava ser uma menina, mas era na verdade um autômato criado por Spalanzani e Coppola (este último que lhe dera os olhos).

Ao analisar o conto supracitado, Freud (1919/1969) afirma que o que realmente causa estranheza não poderia ser entendido somente pela incerteza intelectual, e chama a atenção para a perda dos olhos como um substituto do complexo de castração. Dessa forma, singulariza um fator infantil como responsável pelo sentimento de estranheza. Além disso, a ideia de uma boneca viva não é por si só ocasionadora do medo, visto que algumas crianças podem relatar a vontade de que suas bonecas adquiram vida. Portanto, a estranheza não se relacionaria ao medo primeiramente, mas a um desejo ou até mesmo a uma crença infantil.

Pensar na imagem da perda dos olhos como um correlato do complexo de castração nos ajuda a entender um pouco mais a proposição Aids/inquietante, visto que é uma doença que revela uma série de comprometimentos orgânicos, assim como outras doenças graves que podem levar à morte. Apesar disso, ainda não chegamos ao que se propõe aqui como principal agravante do HIV/Aids: o lugar que a sexualidade ocupa na sociedade ocidental.

Partindo para outro ponto do texto e tomando como exemplo uma novela, ainda de Hoffman, chamada "O elixir do diabo", Freud (1919/1969) analisa o fenômeno do duplo como relacionado à estranheza. Assim, na novela aparecem personagens idênticos, semelhantes inclusive em relação a conhecimento, sentimentos e experiências em comum. Ou seja, o sujeito pode se identificar com outro de tal forma que fica em dúvida quanto a saber quem é seu eu (duplicação, divisão do eu).

De acordo com Otto Rank, citado por Freud (1919/1969), o duplo era originalmente uma segurança contra a destruição do ego. Tais ideias surgiram do amor próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a alma da criança e do homem primitivo. No entanto, superada esta etapa, o duplo inverte seu aspecto transformando-se em um anunciador da morte. As outras formas de estranheza exploradas por Hoffman podem ser avaliadas também pelo fenômeno do duplo, levando em conta uma regressão a fases da evolução em que se reativa um período no qual o Eu não se distinguiu ainda nitidamente do mundo externo e de outras pessoas.

Este mecanismo do duplo merece uma ponte com outro estudo de Freud (1940/1972) realizado próximo ao fim de seus escritos - "A divisão do ego no processo de defesa". Neste, Freud afirma que o ego de uma criança, acostumado à satisfação pulsional própria do princípio de prazer, adota um mecanismo para se proteger de novas exigências da realidade.

A criança se vê entre as exigências da pulsão e as proibições por parte da realidade. O mecanismo para lidar com esse impasse é composto por duas reações contrárias e válidas: ela rejeita a realidade e qualquer proibição e, por reconhecer o perigo, assume o medo. Assim, os dois lados obtêm sua cota (Freud, 1940/1972: 309): "permite-se que o instinto conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela realidade". A cisão do Eu, neste estudo, é então relacionada ao funcionamento das neuroses em geral diante dos impasses entre a satisfação da pulsão e as exigências da realidade.

Esse mecanismo ligado à noção freudiana de estranho pode ser visualizado na experiência hospitalar a partir de uma cena, relatada a seguir, que se revela inquietante.

Em uma manhã de rotina em atendimento hospitalar, o pesquisador fora convocado a acompanhar a devolutiva de um resultado positivo para o exame do HIV/Aids. A equipe era composta pelo psicólogo, a residente e a médica. Quando se chegou ao leito da paciente, a médica em questão apenas pronunciou essas palavras: "Sabe aquele teste que eu falei? Pois é, eu fiz e deu positivo. Você está com Aids e vai ter que se tratar". Diante dessa fala grosseira, a paciente diz: "Meu Deus, eu tenho Aids? Espera, eu não entendi (Silêncio). Olha, eu não consegui ouvir nada do que você está falando". Depois disso, a paciente perde momentaneamente o controle dos esfíncteres e chega a desmaiar.

Essa situação relatada parece ser um correlato do que Freud chamou cisão do eu. A paciente escuta, mas ao mesmo tempo não escuta. Mas como escutar de ouvidos limpos uma notícia como essa, na qual o peso vai além de uma grave enfermidade e chega a trazer à tona o inquietante do sexual e seus construtos sociais ocidentais? Talvez por isso seja notório o excesso de sentido provocado pelo diagnóstico, pois a paciente se posiciona diante dessa dura realidade a partir de um duplo de seu Eu: eu sei/eu não sei.

Para analisar mais a fundo, deve-se ir adiante no estudo sobre o inquietante. Nota-se que Freud (1919/1969) apresenta considerações que valorizam o enunciado no início de seu texto e podem ser descritas da seguinte forma: a teoria psicanalítica sustenta que todo afeto pertence a um impulso pulsional que pode transformar-se em angústia caso recalcado. Assim, deve haver uma categoria na qual o elemento que amedronta pode ser o recalcado que retorna, o que permite a compreensão do uso do termo das Heimliche em oposição a das Unheimliche.

No entanto, mais adiante, Freud (1919/1969) levanta a questão de que nem tudo que evoca desejos recalcados e modos superados de pensamento, que pertencem à pré-história do sujeito e das massas, é, por causa disso, inquietante. Dessa forma, há a distinção teoricamente relevante entre: o inquietante que provém de complexos infantis recalcados, do complexo de castração, das fantasias de estar no útero, etc. (que são pouco recorrentes na vida real, estão ligados à realidade psíquica e, portanto, implicam num recalque real de algum conteúdo de pensamento e num retorno desse conteúdo) e o inquietante ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização dos desejos, a maléficos poderes secretos e retorno dos mortos, relacionados à realidade material. Poder-se-ia dizer então que, no primeiro caso, o que foi recalcado é um determinado conteúdo ideativo, enquanto que, no segundo caso, a realidade (material).

O que nos interessa aqui é o primeiro tipo de inquietante, ou seja, o sentido do inquietante proveniente dos complexos infantis. Nesse sentido, o inquietante ocorre quando complexos inconscientes há muito recalcados são evocados por um acontecimento, real ou imaginário. Mas o importante é que o Unheimlich (o não familiar) já foi Heimlich (familiar); isso é que foi recalcado. O homem de areia, então, revive crenças infantis de castração que já estavam lá, porém recalcadas.

Assim, o HIV/Aids, como qualquer diagnóstico de algo sem esperança, abala uma das maiores crenças narcísicas: a da imortalidade. Mas possui como agravante a via do contágio: o lugar que a sexualidade ocupa na cultura ocidental, pois, em países da África, que possuem uma moral sexual diferenciada, na qual a sexualidade não traz o estigma do pecado, da culpa, esta representação é diferente e voltada principalmente para o narcisismo, pois anuncia a morte (Ceccarelli, 2007).

Pode-se ir mais além ao se pensar na ação do recalque. Pela sua ação, o percurso pela identificação e pelas escolhas de objeto não passa por uma escolha que obedeça às características do consciente, mas às do inconsciente. Como sabemos, o cenário erótico do adulto é sobredeterminado pela polimorfia da sexualidade infantil inconsciente, que é, por sua vez, percebida pelo Eu como estranho e inquietante (Unheimlich), justamente por ser porta-voz de um outro que não é mais familiar.

Nesse caminho, deve-se lembrar que a vida sexual é feita de encontros que envolvem contextos e objetos - como um jeito, uma parte do corpo, etc. - que despertam o desejo e nos capturam. Estas são situações fantasmáticas ou reais que provocam algo em nós a partir desse encontro entre o sujeito e o outro, especialmente quando este parece encarnar algo da história daquele sujeito. Nesse sentido, existiria liberdade sexual? Logicamente, esse capturar pode ser negado a partir de um querer consciente, pois, mesmo sendo impossível evitar sentir, pode-se escolher não ceder. Nesse jogo entre a lógica consciente e inconsciente, nota-se que a dificuldade da escolha é diretamente proporcional ao elemento pulsional envolvido. Ou seja, quanto maior a sua força, ou quanto mais estranha (Unheimlich) a sexualidade é experimentada pelo sujeito, menor será a sua capacidade de se posicionar em relação às demandas do Isso (Id). Pode-se mesmo afirmar que o Unheimlich é o sexual em si - este estranho inquietante que nos habita - e, quando somos "pegos" por ele, como no caso do HIV/Aids, isto nos remete ao sentimento de estranheza (Ceccarelli, 2012).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das interlocuções dispostas até aqui, pôde-se notar, para além do orgânico, um sofrimento que parece dizer respeito ao incômodo de viver com esse estrangeiro que nos habita e que é em parte tocado a partir do diagnóstico de HIV/Aids. É sobre esse estrangeiro que aqui se versa. O HIV/Aids, bem como outras doenças graves, parece reeditar os complexos infantis de castração incidindo não somente nas restrições do corpo que agora necessitará de novos cuidados, mas nas construções identitárias e nos ideais até então seguidos. O paciente que recebe o diagnóstico de Aids parece ter de ser agora um outro. Mas que outro? Normalmente o que se escuta nas enfermarias é que ele deixará de sair para festas, deixará de ter estes ou aqueles comportamentos e buscará dar um "rumo" à sua vida. O que parece importar é que algo deve mudar, ou melhor, já não dá para ser como se era.

Certamente podemos pensar que, em várias doenças, os impedimentos orgânicos "obrigam" as pessoas a adotarem novos cuidados, mas, no que diz respeito ao HIV/Aids, novas questões entram em cen, por ser esta uma essa doença carregada de estigmas relacionados basicamente à moral sexual e ao imaginário social que produz efeitos marcantes nos ideais identificatórios do indivíduo. Com isso, podem ser acrescentados os seguintes questionamentos: que resposta o indivíduo passa a esperar do Outro? Como ele se situa neste Outro que, agora, lhe parece estranho e inquietante?

Os pacientes nos ensinam isso quando prometem "mudar de vida". A Aids parece agregar ao indivíduo uma nova e penosa identidade: aidético. Nesse ínterim, exige-se delicadeza na escuta. É fundamental atentar para essas representações, pois o psicoterapeuta, ao lidar com o paciente com Aids, pode-se deparar com estes e inúmeros novos desdobramentos para que possa caminhar com esse indivíduo em direção às possibilidades e saídas que ele possui.

Para tanto, seria oportuno levar a cabo novas pesquisas que trouxessem exemplos de como esses pacientes passaram a viver depois do diagnóstico. De quais estratégias psíquicas eles conseguiram dispor para lidar com esse sentimento de estranheza? Que novos ideais e identificações passaram a fazer parte de sua trama psíquica para que eles pudessem não apenas sobreviver à Aids, mas continuar a viver? Estas serão algumas questões que nortearão nossas pesquisas futuras.

Esses e outros questionamentos apontam novamente para o que já dissemos inicialmente em relação aos saberes que lidam com essa problemática. Muito se avançou, mas ainda há um terreno fértil a conhecer e a contribuir no que diz respeito ao cuidado do paciente com Aids.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 3 de outubro de 2012
Aceito para publicação em 01 de novembro de 2012