SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número2As imagens modificadas do corpo: novas formas de identidade. Com uma nota sobre os cadáveres do anatomista Gunther von HagensPercursos delirantes em análise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Qual é o estatuto do corpo na psicanálise?

 

Which status for body within psychoanalysis

 

 

Cristina Lindenmeyer

Psicanalista; Professora da Universidade Paris VII - Diderot; Membro da Associação Universitária de Pesquisas em Psicopatologia Fundamental

 

 


RESUMO

Uma questão se impõe a partir do trabalho analítico com pacientes que apresentam manifestações somáticas diversas: existiria uma psicologia própria às doenças ou manifestações somáticas? Muitas vezes, o corpo e suas manifestações são compreendidos a partir de noções como: imagem do corpo, imagem inconsciente do corpo, pacientes psicossomáticos, manifestações psicossomáticas, ou fenômenos psicossomáticos, enfim, uma inflação de noções que nos distanciam da proposta freudiana. Esta confusão não data de hoje: no seio da teorização psicanalítica, o corpo foi objeto de numerosos debates e divergências teóricas. Este texto constituiu uma reabertura a estes debates em torno das questões corporais.

Palavras-chave: corpo; psicanálise; psicossomática; conversão histérica; Eu-corporal.


ABSTRACT

One main question emerges while working with patients presenting diverse so matic symptoms: does it exist a specific psychological approach for somatic diseases? Often, somatic symptoms are understood with notions like: body image, body uncons cious image, psychosomatic patients, psychosomatic manifestations, or psychosomatic phenomenon. In other words, many different notions keeping us away from Freud's proposition on the interpretation of body symptoms. This confusion is quite old: within psychoanalytic theory construction, the body was at the origin of various theoretical debates and divergences. This text constitutes a re-opening of those debates around body questions.

Keywords: body; psychoanalysis; psychosomatic; hysterical conversion; Self-body.


 

 

Uma questão se impõe a partir do trabalho analítico com pacientes que apresentam manifestações somáticas diversas: existiria uma psicologia própria às doenças ou manifestações somáticas? Estas questões nos engajam em um percurso epistemológico de releitura do sintoma somático e do estatuto do corpo na psicanálise.

Atualmente percebo uma confusão terminológica para tentar dar conta do que chamamos o corpo e suas manifestações na teorização psicanalítica. Muitas vezes, ele é compreendido a partir de noções como: imagem do corpo, imagem inconsciente do corpo, pacientes psicossomáticos, manifestações psicossomáticas, ou fenômenos psicossomáticos, enfim, uma inflação de noções que nos distanciam da proposta freudiana sobre o corpo.

Esta confusão não data de hoje: no seio da teorização psicanalítica, o corpo foi objeto de numerosos debates e divergências teóricas. Portanto, a posição freudiana é clara: o corpo não se reduz ao puramente orgânico, nem se desfaz de seus engajamentos como propõe a "psicossomática". Para Freud, ele é o lugar do qual emerge o pulsional e seu meio de chegar à satisfação, seja ela no prazer ou no desprazer. Dai viria sua capacidade de se transformar em um "Teatro" (McDougall, 1989) e colocar em cena os conflitos inconscientes mais variados.

Ao longo da obra freudiana, o corpo toma formas diversas: o corpo na conversão histérica, o corpo erógeno, o corpo pulsional, o corpo do narcisismo, ou o Eu corporal, testemunhando, assim, sua função central na elaboração do aparelho psíquico. Em todas essas figuras, o corpo guarda uma coreografia (Lindenmeyer, 2010) que evolui ao longo da elaboração teórica. Sem sombra de dúvida, o corpo possui seu lugar na teorização freudiana.

 

ALGUNS ELEMENTOS HISTÓRICOS

A partir do século XIV, com a dissecação de corpos começando na Itália e expandindo-se por toda a Europa, uma nova representação do corpo humano aparece (Corbin, Courtine & Vigarello, 2005). Antes desta época, o corpo e suas doenças era um lugar de mitos e de mistérios que guardavam um poder enigmático e paradoxal. Com a dissecação e a subsequente localização dos órgãos, a tendência anatomopatológica iniciada na Itália se expande para toda a Europa, vindo a se impor como a prática mais interessante para o desenvolvimento da medicina (Bynum, 2011). O que é interessante constatar é que, no momento em que o interior do corpo perde sua obscuridade e passa a ser dominado pelo olhar e pelo que é identificado por este olhar, o seu poder de lugar de figurabilidade desaparece (Fédida, 1971).

A partir do século XV, o ritmo se acelera e um número importante de dissecações e trabalhos dedicados à anatomia são realizados (Bynum, 2011). A esta nova forma de apreender o corpo juntam-se artistas da Renascença interessados em representá-lo o mais próximo de sua realidade, sendo os desenhos anatômicos de Leonard da Vinci os mais famosos. A anatomia passa a ser a rainha das ciências médicas e perdura durante séculos. Além dos textos escritos, as ilustrações dos órgãos permitiam que os livros fossem ilustrados de forma que qualquer pessoa pudesse não somente ler sobre o corpo humano, mas também ver suas partes exibidas nas páginas. Uma verdadeira "pedagogia corporal" (Corbin, Courtine & Vigarello, 2005) ganha terreno e simpatia da sociedade.

Com a visualização dos órgãos e a descrição de seus funcionamentos ou seus disfuncionamentos, vem a ideia de "doença orgânica". Quer dizer, um disfuncionamento em determinado órgão denuncia a presença de uma doença. Além desta função educativa e ideológica sobre o corpo, outros discursos se juntam à atividade médica. Segundo Ceccarelli (2011), o discurso religioso com suas diretivas sobre a necessidade de controle da sexualidade, cujo apogeu se deu na Sociedade Vitoriana do século XIX, também encontrara nesta possibilidade aberta pela medicina um terreno de interesse.

No entanto, ainda que o corpo apreendido pela medicina continue a ser dissecado, auscultado, manipulado, nomeado pelo saber médico, seus disfuncionamentos persistem, denunciando, assim, outros elementos que escapam a este controle.

Aos poucos, enquanto a medicina avança em suas performances científicas sobre o corpo, no século XIX uma forte crítica aos médicos, sobretudo na Alemanha, progressivamente aparece. A valorização excessiva da dimensão orgânica das doenças deixando de lado a pessoa do doente, seus aspectos subjetivos, se impõe pouco a pouco, dando nascimento à necessidade de articular outros discursos que permitam a integração dos fatores subjetivos presentes nas doenças. Em primeiro lugar, o discurso filosófico será solicitado para estabelecer uma compreensão dos fatores subjetivos e suas ligações com as doenças.

Na tentativa de paliar estas críticas, Victor Von Weizsaecker (1956/2011), médico neurologista, vai defender a ideia de uma filosofia do vivo baseando-se na ontogênese. Influenciado por Heidegger, Victor Von Weizsacker defende a ideia que a história de cada sujeito é a base de todas as patologias orgânicas, promovendo desta forma uma reflexão que fomenta a união entre os aspectos subjetivos do sujeito e suas doenças.

Rapidamente suas ideias serão acolhidas pela comunidade médica, e se organizará a partir daí um novo campo da medicina. Estas primeiras elaborações permitiram o nascimento do que mais tarde virá a se definir como medicina psicossomática.

Impulsionados por estas reflexões, alguns médicos, sensíveis à psicanálise, disciplina esta que na época se afirmava como essencial para a compreensão do humano, vão se interessar pelas propostas freudianas. Como se opera esta promoção da medicina em relação à psicanálise?

Algumas noções, que recobrem a compreensão dos aspectos psíquicos (inconsciente, pulsões, Édipo, etc.) e que consideramos como os fundamentos da psicanálise, serão utilizadas e inseridas no modelo e método médicos. Desta forma, desenraizadas do método terapêutico (Birman, 1980) psicanalítico de onde elas foram pensadas inicialmente, confusões terminológicas se instalaram.

Os médicos sensíveis à psicanálise vão defender a ideia de que os fatores subjetivos, que provocam ou impedem a cura da doença, são fatores ligados a elementos inconscientes, isto é, que não se encontram ao alcance do sujeito. A medicina, se levar em conta estes aspectos inconscientes, permitiria ao doente compreender o que se passa com ele, permanecendo assim, como o saber sobre o corpo do sujeito. Segundo Canguilhem (1978), daí viria um dos elementos que permitiram a iniciativa preventiva da medicina atual.

Com as noções psicanalíticas utilizadas na tradição da metodologia médica, assistimos a um desenraizamento de noções psicanalíticas elaboradas a partir da metodologia própria ao tratamento analítico. A utilização de determinados conceitos, por um lado, nos aproxima da teorização da medicina psicossomática, mas, por outro, nos distancia do método clínico no qual é fundada toda a teorização psicanalítica. Retornaremos a este ponto ao longo deste texto1.

Aos poucos, estes movimentos teóricos se intensificam. Schilder (1935/1994) propõe a ideia de "imagem do corpo", apoiado nas elaborações freudianas sobre o Eu corporal. A partir da neurologia, Schilder considera que uma imagem própria do corpo próprio é criada pouco a pouco a partir das sensações e percepções vindas do corpo. No entanto, esta "imagem do corpo" é na realidade uma elaboração secundária, como lembra pertinentemente Fédida (1971), e nos leva à confusão de reconhecer o corpo como a encarnação do Eu. Ora, continua Fédida (1971: 120), "a psicanálise não é uma psicologia do Eu", e todo o itinerário proposto pela psicanálise freudiana "é uma pesquisa que, evitando se deixar pegar pela ilusão de um realismo do corpo-função ou de um corpo-imagem ou do corpo-vivido, fica atenta ao que do corpo reside nas palavras, se inscreve nos rastros, fica gravado na memória ao ponto de somente aparecer como reminiscência" (Fédida, 1971: 117). Este autor restitui, assim, a visão psicanalítica do corpo que, além de romper com o ponto de vista biológico, só pode concebê-lo a partir das fantasias produzidas pelos destinos pulsionais singulares e significados pela linguagem.

Mas, se esta visão nos parece mais clara atualmente, ao longo das discussões e divergências no seio da comunidade psicanalítica conflitos ideológicos persistem.

Nos anos 40, Balint, apoiado em algumas elaborações de Ferenczi, Abraham e M. Klein, tem como objetivo formar os médicos para uma atenção particular sobre a relação médico/paciente. Nos hospitais veremos o nascimento e expansão dos "grupos balints", nos quais o objetivo era sensibilizar os médicos à pessoa doente e a levarem em conta seus próprios movimentos pessoais.

Além destas propostas, duas escolas se formam: a primeira será a escola de Chicago, tendo Franz Alexander como líder, e, mais tarde, em 1962, a criação da Escola Psicossomática de Paris, fundada por P. Marty, M. Fain, M. DeMuzan e C. David.

Estas duas escolas defendem a ideia de uma pertinência teórica específica das manifestações somáticas e se apoiam em uma leitura do modelo da conversão histérica, que se resumiria somente à tradução de um desejo inconsciente recalcado, cuja expressão simbólica é manifestada no corpo erógeno. Segundo a leitura destes autores, o modelo da conversão histérica proposto por Freud não consegue explicar as doenças somáticas e todas as características dos pacientes, nomeados por estas escolas pacientes psicossomáticos (pobreza fantasmática, má mentalização, pensamento operatório, etc.).

Ainda que estas duas escolas tivessem como objetivo estabelecer uma relação definitiva entre medicina e psicanálise e promover o nascimento de uma nova disciplina, a Escola de Paris encontra-se em um contexto histórico particular na França. Nessa época, a teorização lacaniana, privilegiando a linguagem, colabora de certa forma com a promoção da exclusão das problemáticas corporais na psicanálise francesa. Segundo Birman (1997), a valorização da linguagem em detrimento das problemáticas em torno do corpo veio favorecer a exclusão dos aspectos inerentes às manifestações do corpo e o esquecimento de discussões antigas e relevantes sobre estas questões na comunidade psicanalítica.

Os primeiros estudos sobre a relação entre o psiquismo e as doenças somáticas foram desenvolvidos nos Estados Unidos e motivados pelas pesquisas realizadas após a segunda guerra mundial. Nasce, assim, a medicina psicossomática promovida pela Escola de Chicago e liderada por Franz Alexander. Franz Alexander (1934/2002), influenciado por Husserl e Karl Abraham, com quem ele trabalha no Instituto psicanalítico de Berlin, vai valorizar a ligação da doença com as características da personalidade do paciente, chegando mesmo a propor um quadro de personalidades específicas: personalidade cardíaca, alérgica, asmática, etc.

Para sustentar suas hipóteses, Alexander (1934/2002) desenvolvera um método particular de "investigação" baseado em entrevistas dirigidas sobre os aspectos subjetivos do paciente. A Escola de Paris continuara a exploração teórica com este mesmo modelo de "investigação" (Marty, de M'Uzan & David, 1963/2002), mas afinará suas elaborações e localizará suas propostas nas "dificuldades de mentalização". Segundo estes autores, uma má mentalização é a causa do pensamento operatório que caracteriza os pacientes que apresentam doenças somáticas (Nicolaidis & Press, 1995).

A noção de mentalização se refere a duas dimensões do aparelho psíquico: à quantidade e à qualidade das representações psíquicas em um determinado sujeito. A partir de observações realizadas em entrevistas de "investigação" conduzidas com pacientes apresentando doenças somáticas, Marty (1990) estabelece diferentes "marcagens" a respeito da quantidade e da qualidade das representações segundo os indivíduos. Estas "marcagens" permitem ao autor estabelecer um sistema de classificação hierárquica de indivíduos e de doenças. Assim, os indivíduos e as doenças às quais esses são sujeitos se diferenciam, quantitativa e qualitativamente.

Os indivíduos que se mostram limitados em suas capacidades de pensar (representar) não teriam alternativa senão recorrer à ação para afrontar os eventos traumáticos que se lhes apresentam. A causa, segundo P. Marty, é um modo de desenvolvimento do para-excitação na experiência precoce do sujeito e, em consequência, da insuficiência do desenvolvimento do pré-consciente, que o diferencia dos pacientes neuróticos, que estariam sob o efeito do recalcamento. Desta forma, o modelo da conversão histérica é substituído por este outro modelo teórico proposto pela Escola Psicossomática, o que encontraria fortes resistências no seio da comunidade psicanalítica.

Na França a partir dos anos 70 um movimento interessante de discussão e resistências entre diversos autores aparecera. Autores como J. McDougall (1978), J. B. Pontalis (1988), F. Gantheret (1971), P. Fedida (1978), P. L. Assoun (1997), entre outros, se levantaram denunciando um modelo essencialmente apoiado na medicina, negligenciando o método proposto pela psicanálise. Essa proposta repousa em um modelo idealizado e normativo do aparelho psíquico, no qual certas noções psicanalíticas serão privilegiadas em detrimento de outras. Este último ponto será um dos elementos de desacordo radical entre P. Marty e J. McDougall, autora que propõe como titulo de seu primeiro livro Em defesa de certa anormalidade (McDougall, 1978).

Se, para Marty, a eclosão somática é o resultado de um déficit de mentalização devido a falhas no para-excitação, o que justifica a falta de capacidade fantasmática constituída no momento da construção do pré-consciente, para McDougall as manifestações somáticas são uma formação de compromisso utilizada pelo sujeito para manter sua sobrevivência psíquica. Diferenciando-se do modelo da conversão histérica proposto por Freud, para McDougall estas soluções psíquicas não se referem somente à dimensão edipiana, como propõe o modelo da histeria freudiana, mas a conflitos relacionados ao direito de existir mais primitivo do sujeito. Segundo McDougall (1989: 255), que defenderá a ideia de uma "histeria arcaica", somente o dispositivo analítico permite uma "exploração em profundidade das fantasias dos analisandos polisomatistas que, pouco a pouco, têm acesso à palavra, após longos anos de análise".

 

ENTRE FREUD E GRODDECK

Como assinalei no início deste texto, discussões e divergências sobre os sintomas somáticos e o estatuto do corpo na psicanálise são bastante antigas.

Voltemos a uma das primeiras discussões: entre Freud e Groddeck. Nesta discussão, que se traduz através de cartas trocadas entre estes dois homens e retomadas por J. B. Pontalis (1988), Freud deixa bastante clara sua posição de recusa quanto à proposta de Groddeck: defender uma psicologia própria às doenças somáticas.

Em uma carta extremamente curiosa endereçada a Freud (1917/1977), Groddeck apresenta sua proposta frente aos males corporais. Ficamos surpresos com a forma pela qual o segundo se dirige ao "caro professor", como se, no que diz respeito ao campo das manifestações corporais, este fosse um território desconhecido por Freud. Ora, desde os Estudos sobre a histeria (Freud & Breuer, 1895/1996), Freud elaborava sua visão do aparelho psíquico a partir de manifestações corporais. Ou seja, desde o nascer da psicanálise o corpo participava da sua elaboração. É interessante sublinhar a posição de recusa de Freud em relação à incursão de Groddeck. Em sua concepção do corpo, Freud se afasta do domínio da biologia e coloca as manifestações somáticas na esfera intrapsíquica (Assoun, 1997). Não é a doença que lhe chama a atenção e lhe interessa, mas como o corpo participa dos processos inconscientes presentes na formação do sintoma.

Groddeck, com sua intenção de fazer de dois um, em um apagamento da distinção corpo/psique, posição monista que será retomada pelos adeptos da teoria psicossomática (Aisenstein, 2010), nos faria correr o risco de provocar um desaparecimento do essencial da montagem do processo psíquico inconsciente, "perdendo de vista", segundo Pontalis (1988), a ideia de um tratamento psíquico agindo em um segundo plano. Este segundo plano representa para Freud toda uma dinâmica na qual o psiquismo se encontra imbricado nas situações de manifestações corporais. Podemos pensar que a objeção de Freud permite manter a presença do corpo em toda sua elaboração teórica.

 

DO CORPO NA HISTERIA AO EU-CORPORAL

É a partir das questões teórico-clínicas sobre as manifestações somáticas que Freud, no seu texto Estudos sobre a histeria (Freud & Breuer, 1895/1996), pouco a pouco desenvolve o conceito de inconsciente e propõe a construção do aparelho psíquico a partir do corpo.

Na época dos Estudos sobre a histeria, Freud vem da experiência com Charcot na Salpetrière; experiência que consistia em observar Charcot com suas pacientes. O procedimento de Charcot era localizar o ponto sensível no corpo e, ao tocá-lo, provocar as crises espetaculares das histéricas (Roudinesco, 1994). A estes pontos localizados no corpo Charcot chamava de pontos "histerogênicos".

Esta experiência, rica em observações sobre como as pacientes histéricas se utilizam de seus corpos, leva Freud a propor, em seu texto Estudos sobre a histeria, a ideia de outra cena desconhecida do sujeito que toma posse do ponto eleito no corpo.

No caso de Elisabeth, Freud dirá que

se apertássemos a pele ou os músculos sensíveis, ou se exercêssemos uma pressão sobre eles, seus traços tomavam uma expressão singular de satisfação e não de dor. Ela emitia gritos - como se fossem cócegas - ficava vermelha, lançava sua cabeça e seu busto para trás, fechava os olhos... Atribuíamos todos estas manifestações à histeria e pensávamos que a excitação chegava até a zona histerógena (Freud & Breuer, 1895/1996: 108).

O que é sublinhado nesta passagem é a referência plástica do corpo. Quer dizer, sua capacidade de se modelar ao psíquico até chegar a dar forma ao sintoma histérico de Elisabeth. A esta possibilidade de transformação Freud dará o nome de conversão. Assim, o modelo da conversão é o modelo de dar forma ao interior. Interior que, na elaboração freudiana, é sempre ligado a processos inconscientes.

Neste primeiro momento o corpo da histérica vai ocupar o palco teórico, e o que interessa Freud é justamente o estatuto do corpo para estas pacientes. Ele vai então se perguntar como as histéricas procedem para conseguir desafiar e subverter a anatomia sem serem suspeitas de estarem satisfazendo desejos proibidos.

Designa, assim, duas dimensões, econômica e simbólica, presentes na conversão (David-Ménard, 2000). A dimensão econômica se traduz da seguinte forma: como desejos infantis proibidos não podem ser expostos na realidade, soluções de compromisso têm de ser achadas para permitir suas manifestações. A dimensão simbólica será o fato de que existem sempre associações entre a escolha do lugar no corpo e as fantasias recalcadas. As dores nas pernas de Elisabeth, por exemplo, correspondem ao local onde o seu pai colocava a mão quando ela tomava conta dele. O que leva Fédida (1971) à proposição de uma "anatomia fantasmática" que não pode ser reduzida à definição objetiva sustentada pela medicina. É este reconhecimento de um corpo fantasmático sobre um corpo biológico que, nos lembra Gantheret (1971), funda todo o dispositivo analítico, teórica e clinicamente. Quer dizer, um corpo que ganha um estatuto que rompe com o puramente biológico e passa a ser pensado como lugar das inscrições pulsionais e fantasmáticas, e significado pelo processo do tratamento pela linguagem.

Assim, estes desejos infantis construídos e animados por experiências sexuais achariam na conversão sobre o corpo um lugar de expressão. O que quer dizer também que estas experiências infantis, tese que será defendida nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1975), como não podem ser concretizadas na realidade, se apoiam em sintomas somáticos, vindo ter uma dupla função: esconder e denunciar o conflito psíquico (Assoun, 1997).

Vale a pena lembrar, como sugere Fédida (1971), que a proposição freudiana restitui ao corpo o que o movimento anatomofisiologista lhe havia retirado. Mas, também, insiste o autor, esta visão objetiva do corpo vem de uma fantasia infantil arcaica de ver e sentir o corpo do outro, penetrando-o. Desta forma, prossegue Fédida, por que as dores de Elisabeth seriam menos reais que o saber do anatomista sobre o corpo? Engajar-se em uma visão objetiva não seria também estar sob o efeito do recalcamento do "corpo da infância, corpo imaginário do desejo. Este corpo que foi lembrado pela medicina como enciclopédia e técnica" (Fédida, 1971: 125).

À questão de saber como a histérica se aproveita da ocasião dada pelo corpo para colocar em cena seus desejos proibidos Freud responde pela ideia de "somatisches entgegenkommen", o que quer dizer "ir ao encontro de". O somático vai ao encontro de...

Quando existe uma excitação somática, seja ela "normal" ou "patológica", apresenta-se a ocasião para que venham associarem-se a ela processos conflitantes inconscientes insuspeitos até então. As partes do corpo de Elisabeth Von R., Anna O, Dora, entre outras, servirão, assim, como ocasiões dadas aos movimentos conflitantes de encontrar um lugar de expressão. O afeto separado do representante da representação alcança a utilização da zona excitada e, desta forma, uma dinâmica fantasmática pode então instalar-se. Como conceber que o corpo possa engajar-se de tal maneira? Eis a questão.

A resposta freudiana passa pelo lugar atribuído à instauração e ao engajamento da pulsão sexual. É sua presença no corpo-a-corpo inicial com o outro que lhe dá a possibilidade de tornar-se um local erógeno.

O importante a sublinhar, além do fato do corpo se prestar à ação da sexualidade infantil, é o fato que Freud não se embaraça em dizer que, nos dois casos, normal ou patológico, ou seja, tanto um órgão doente como um normal pode ser tratado como suporte à construção de um sintoma histérico. O que quer dizer que pode ou não existir uma condição somática para que se opere a conversão (David-Ménard, 2000).

A noção de complacência somática abre as seguintes articulações:

1. Uma doença somática pode servir para acolher um conflito inconsciente. É desta maneira que Freud aborda a utilização da afecção em Dora no caso de sua tosse e rouquidão:

No mais profundo da estratificação, temos de admitir uma real irritação orgânica provocando a tosse, parecida com o grão de areia sobre o qual as ostras formam a pérola. Esta irritação é susceptível de fixação, pois ela concerne uma região do corpo que guardou, na pequena menina, um papel de zona erógena. Esta irritação pode desta forma fornecer um modo de expressão à libido acordada (Freud, 1905/1954: 61).

2. A ideia de que o corpo, devido à sua participação na instauração da sexualidade, tem a capacidade de vir a ser a qualquer momento uma zona erógena. Quer dizer, a significar, de forma camuflada, um desejo inconsciente recalcado.

3. A noção de complacência somática dá conta da ideia de que não somente um órgão, mas todo o corpo, pode ser tomado como um meio de expressão. A sua presença e participação da relação do corpo a corpo com o outro materno lhe dá esta possibilidade de vir a ser, a todo o momento que for preciso, um lugar erógeno e lugar de experiências fantasmáticas. Esta ideia será desenvolvida nos destinos dos investimentos narcísicos e retomada no texto "Introdução ao narcisismo" (Freud, 1914/2005).

No texto "Distúrbio psicogênico da visão na concepção psicanalítica" (Freud, 1910/1975), Freud nos fala da visão, mas também dos distúrbios alimentares, como sendo o resultado de um conflito psíquico entre os dois mestres sobre o corpo: a pulsão de autoconservação e a pulsão sexual. No momento da redação deste texto, Freud ainda se encontra na primeira tópica e na primeira teoria das pulsões.

Ele nos diz que para que um órgão possa manter suas duas funções equilibradas, certo recalcamento, ou dessexualização de sua função erógena, é necessário. Em tempos normais estas duas pulsões funcionam de forma equilibrada, pois ambas estão sob o domínio do recalcamento. A boca, por exemplo, pode ser utilizada para comer, satisfazendo a pulsão de autoconservação, mas também para beijar, satisfazendo a pulsão sexual. No entanto, quando o processo de recalcamento falha, a pulsão sexual, até então recalcada, retorna sem piedade e aproveita a oportunidade dada para subverter o órgão. Assim, sua função vital não é mais garantida e ela passará a funcionar como em uma orgia sexual.

Esta ideia se apoia na tese desenvolvida no texto "Três ensaios sobre a sexualidade", no qual Freud (1905/1975) sublinha que a criança, habitada por uma sexualidade perversa polimorfa, busca a satisfação de seu prazer em várias partes de seu corpo, e que estas satisfações estão ligadas às suas relações com seus primeiros objetos de investimento (pai e mãe).

Mas, se o corpo pode ser o lugar da ação do sexual, podemos também supor o seu contrário, quer dizer, que ele passe a ser o lugar de denegação da ação da pulsão sexual. É o caso, por exemplo, de pacientes que parecem não habitar seus corpos. Por exemplo, pacientes anoréxicas que substituem o prazer de comer pelo sentimento onipotente de nada comer, em um movimento de recusa do que vem do outro.

O que é novamente reafirmado nesse texto é a ideia de que o corpo está também presente num além de sua função biológica. Sendo assim, um olho, uma boca, um braço podem guardar suas funções orgânicas, mas também serem tratados como sendo outra coisa, esta outra coisa sendo garantida pela pulsão sexual. Apoiado nesta mesma ideia de movimento em ação é que o conceito de pulsão será reafirmado mais tarde. A noção de complacência somática será abandonada por Freud em beneficio da noção de apoio, conceito essencial para compreender o nascimento e a dinâmica pulsional que se instala para o sujeito a partir de seu próprio corpo.

Essas considerações encontrarão eco no trabalho sobre o narcisismo (Freud, 1914/2005). A participação da regressão narcísica em situações de doença permite que conteúdos arcaicos emerjam à cena: como se necessitassem de um sintoma orgânico, um momento de ruptura, para que o fantasma pudesse advir. Exemplos clínicos não faltam para avaliar a importância de uma efração no corpo que desperta a necessidade de um "Eu" solicitado em suas capacidades defensivas e criativas.

Ferenczi (1917/1992) se apoiará na ideia de um acontecimento somático ligado ao psíquico e proporá o termo de "patoneurose" para pensar a importância psíquica de uma situação de doença. Ele toma como exemplo o dente cariado para falar de uma economia psíquica do sujeito em situações de dor provocadas por doenças ou lesões orgânicas. Em suas reflexões, a parte do corpo dolorida acolhe a partir da excitação da dor toda uma trama fantasmática, que se aproveita da ocasião para se entregar aos movimentos inconscientes "insuspeitos".

No exemplo do dente cariado, Ferenczi (1917/1992) conduz as dores orgânicas na direção do deslocamento de uma experiência de prazer sob sua forma autoerótica. O dente cariado se transforma em órgão genital. Nesse movimento subversivo de ação do sexual, o sintoma orgânico não é somente estado de passividade. Em sua forma autoerótica ele passa igualmente a um estado de atividade. É como se o sujeito que solicitasse o corpo, ou que se apoiasse sobre ocasiões dadas pelo corpo, reencontrasse as marcas da pulsionalidade, e a reminiscência do encontro com o objeto. Trata-se da potência da ancoragem sexual ligada a um corpo complacente até o limite de tornar-se outra coisa do que sua anatomia lhe impõe. Uma cabeça, um olho, uma perna, uma barriga, uma boca podem ao mesmo tempo guardar sua função biológica, mas também ser outra coisa. Esta outra coisa é sustentada pela ação da pulsão sexual e suas ligações com o objeto.

O corpo viria se fazer presente, para além de sua função biológica, pela ação do sexual nas e com as manifestações corporais que ele engendra. Nesse movimento em ação existe em primeiro lugar a importância do conceito de pulsão para dar conta da dinâmica complexa na qual psiquismo e corpo se encontram imbricados. Com o conceito de pulsão no desenvolvimento freudiano, o lugar do corpo é sublinhado como fonte e, ao mesmo tempo, como meio de descarga e de satisfação libidinal. Seu engajamento na construção psíquica através de suas partes utilizadas nas pulsões parciais e, em seguida, no corpo inteiro, coloca-o nas cenas fantasmáticas e imaginárias mais diversas.

A partir da segunda tópica, a elaboração freudiana desloca-se e "o Eu (este ser de fronteiras) é antes de tudo um Eu-corporal" (Freud, 1923/1991: 270). Através dessa elaboração, a instância do Eu nasce e se nutre de sensações corporais com o dentro do corpo e o fora que o atravessa. A dor tem um papel essencial. É a dor que permite o reconhecimento dos limites do corpo. Ainda segundo Fédida (1971: 122), é na "violência física dos órgãos (boca, dentes, o pênis, o seio...) que o corpo se escuta e se descobre. A oralidade e a analidade do corpo constituem o primeiro espaço de sua verdade anatomia". Para Freud, o corpo é o lugar de inscrição das marcas presentes nas reminiscências das experiências precoces do infante, por onde o Eu poderá se constituir, sendo, assim, o lugar por onde emerge o pulsional, mas também o meio de chegar à sua satisfação, quer ela se dê no prazer ou no desprazer.

Com a noção de pulsão de morte na evolução da teoria freudiana nós nos defrontamos com uma função inconsciente mais promissora, mas igualmente mais desconcertante. Via masoquismo, o corpo encontrará um lugar e uma função no sofrimento.

Em "O problema econômico do masoquismo", Freud (1924/1985) evoca a doença como uma das três soluções para o psiquismo chegar à conclusão de um arranjo neurótico. A "necessidade de punição" ligada com "a incurável culpabilidade" (Chabert, 2008) não irá ceder facilmente. Nessa proposição de Freud, a fachada muda, mas o prazer do sofrimento persiste sob a forma mais enigmática: agora ela é colocada numa parte do corpo, em sua face visível. Daí vem a frase de Freud (1923/1991: 292): "ele (o sujeito) não se sente culpado, mas doente".

As reflexões introduzidas neste texto não esgotam o debate em torno das questões corporais, mas propõem trazer uma contribuição, a partir da reintrodução de debates esquecidos no seio da comunidade psicanalítica. Um imenso campo de confrontação teórica se mantém e ainda está aberto, sendo para estabelecer contatos, manter discussões, ou clarificar divergências entre várias elaborações teóricas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aisenstein, M. (2010). Les exigences de la représentation. Revue Française de Psychanalyse, 5,1367-1392.         [ Links ]

Alexander, F. (1934/2002). La medicine psychosomatique. Paris: Payot.         [ Links ]

Assoun, P. L. (1997). Corps et symptôme. Paris: Anthropos.         [ Links ]

Birman, J. (1980). Enfermidade e loucura. Rio de Janeiro: Campus.         [ Links ]

Birman, J. (1997). Le corps et l'affect en psychanalyse: une lecture critique du discours freudien. Revue du Cercle freudien, Che vuoi?, 7,13-26.         [ Links ]

Bynum, W. (2011). Historia da medicina. Porto Alegre: L&PM Pocket.         [ Links ]

Canguilhem, G. (1978). Une pédagogie de la guérison est-elle possible? N.R.P., L'idée de guérison, 17,13-26.         [ Links ]

Ceccarelli, P. (2011). Uma breve história do corpo. In: Lage, E. & Tardivo, L. (orgs.). Corpo, alteridade e sintoma: diversidade e compreensão (pp. 15-34). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Chabert, C. (2008). La cruelle contrainte au bonheur. Libres cahiers pour la psychanalyse, 18,83-100.         [ Links ]

Corbin, A.; Courtine, J. J. & Vigarello, G. (2005). Histoire du corps, v. 1, De la renaissance aux lumiaires. Paris: Seuil.         [ Links ]

David-Ménard, M. (2000). L'Hysterique entre Freud e Lacan. Corps et langage en psychanalyse. Paris: ed. Universitaires.         [ Links ]

Fédida, P. (1971). L'anatomie dans la psychanalyse. R.F.P., 3,109-126.         [ Links ]

Fédida, P. (1978). La question de la théorie somatique dans la psychanalyse. Psychanalyse à l'Université, 3(12),626.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1917/1992). As patoneuroses. In: Ferenczi, S. Psicanálise II. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Freud, S. (1905/1954). Le cas Dora. In: Les cinqs analyses (pp. 1-91). Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S. (1905/1975). Three essays on the theory of sexuality. S. E., v. VII. London: The Hogarth Press.         [ Links ]

Freud, S. (1910/1975). The Psycho-analytic view of psychogenic disturbance of vision. S. E., v. XI. London: The Hogarth Press.         [ Links ]

Freud, S. (1914/2005). Pour introduire le narcissisme. Œuvres completes de psychanalyse, v. XII. Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S. (1917/1977). Lettre de Freud à Groddeck du 5 juin 1917. In: Groddeck, G. Le ça et le moi. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Freud, S. (1923/1991). Le moi et le ça. Œuvres completes de psychanalyse, v. XVI. Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S. (1924/1985). Le problème économique du masochisme. Œuvres completes de psychanalyse, v. XVII. Paris: PUF.         [ Links ]

Freud, S. & Breuier, J. (1895/1996). Etudes dur l'hystérie. Paris: PUF.         [ Links ]

Gantheret, F. (1971). Remarques sur la place et le statut du corps en psychanalyse. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 3,137-146.         [ Links ]

Lindenmeyer, C. (2010). Chorégraphies du corps. Revue Française de Psychanalyse, 5,1581-1587.         [ Links ]

Marty, P. (1990). Psychosomatique et psychanalyse. La déliaison psychosomatique, R.F.P., 3,615-624.         [ Links ]

Marty, P.; de M'Uzan, M. & David, C. (1963/2002). L'investigation psychosomatique: sept observations cliniques. Paris: PUF.         [ Links ]

McDougall, J. (1978). Pladoyer pour une certaine anormalité. Paris: Gallimard.         [ Links ]

McDougall, J. (1989). Théâtres du corps. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Nicolaïdis, N. & Press, J. (1995). La psychosomatique, hier et aujourd'hui. Paris: Delachaux et Niestlé         [ Links ].

Pontalis, J. B. (1988). Entre Groddeck et Freud. In: Perdre de vue (pp. 157-170). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Roudinesco, E. (1994). Histoire de la psychanalyse en France, v. 1 (1885-1939). Paris: Fayard.         [ Links ]

Schilder, P. (1935/1994). A imagem do corpo: as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Von Weizsacker, V. (1956/2011). Pathosophie. Grenoble: Millon.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Este ponto está presente na divergência sustentada por Freud face a Groddeck que propõe uma visão monista do psíquico e do somático.

 

 

Recebido em 30 de julho de 2012
Aceito para publicação em 20 de agosto de 2012