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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2012

 

ARTIGOS

 

A função do feminino para a noção de estrutura em psicanálise

 

The function of the feminine for the notion of structure in psychoanalysis

 

 

Elisabeth Rocha MirandaI; Sonia AlbertiII

IDoutora em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Professora do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da Universidade Veiga de Almeida; Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
IIProfessora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Pesquisadora do CNPq; Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano

 

 


RESUMO

O artigo aborda a estrutura em psicanálise como partindo dos desdobramentos do conceito de Real. Inicia retomando a importância do lugar da perda na obra freudiana, para então percorrer, com Lacan, o Real que ex-siste e que se faz presente nos furos, nas entrelinhas do discurso. Distingue o inconsciente estruturado como linguagem da noção de estrutura para a clínica psicanalítica, o que se confirma no conceito do não-todo fálico - o que não tem limites sem ser, no entanto, infinito. Articula-o com a alteridade e a heteridade.

Palavras-chave: não-todo fálico; estrutura; Real; mulher.


ABSTRACT

The article discusses the structure in psychoanalysis as derived from the unfoldings of the concept of the Real. It begins with the importance of the loss in Freud`s work, and then develops, with Lacan, the Real which ex-sists and which is present in the holes, betwe en the lines of the discourse. It distinguishes the unconscious structured by language from the notion of the structure in the psychoanalytic clinic, which will be confirmed through the concept of the not-all - that what has no limits, but nevertheless is not infinite. It articulates it with alterity and heterity.

Keywords: not-all phallic; structure; Real; woman.


 

 

O corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real. Se a linguística nos promove o significante, ao ver nele o determinante do significado, a análise revela a verdade dessa relação, ao fazer dos furos do sentido os determinantes de seu discurso.
(Lacan, 1960/1998: 815)

 

Lacan introduz o conceito de estrutura em Psicanálise fazendo dele um instrumento para o diagnóstico clínico no qual nos baseamos para definir a direção do tratamento. Se Lacan utilizou clinicamente o conceito de estrutura foi por incluir nele o registro do Real, eis o que aqui ensejamos revisitar.

Não pretendemos definir o que é estrutura, mas podemos começar retomando Freud por diferenciá-la da noção de desenvolvimento, tão cara aos pós-freudianos, como fez Lacan (1956-1957/1995) em O seminário, livro 4: as relações de objeto. Nele, acompanhamos a noção pós-freudiana de desenvolvimento através do que Lacan chamou a "pirâmide de heresias": ela é herética na medida em que desconhece os avanços que Freud imprimiu à psicologia. Senão, vejamos.

 

O INFANTIL E O ESTRUTURANTE

Freud conceituou a sexualidade infantil calcada na fantasia e não no desenvolvimento, e a sexualidade de forma geral, nas pulsões, que são sempre parciais e tampouco se desenvolvem. Além disso, depreende-se do texto freudiano que a posição infantil de negar a castração materna equipara-se à posição do neurótico, mesmo se Freud se ocupou muito mais da segunda - a neurótica - do que da primeira - a infantil. Na realidade, a psicanálise não é uma teoria sobre a infância, mas sobre o inconsciente e o gozo. Gozo do qual somos exilados pelo advento da linguagem e cuja busca é regrada pela internalização da lei edípica que proíbe o incesto e funda o sujeito no socius. É preciso considerar que o sujeito do inconsciente é atemporal e determinado por uma exigência de satisfação pulsional imperativa e estruturante. O infantil em psicanálise é o estruturante, razão pela qual a psicanálise é uma teoria sobre o infantil que habita o ser de fala em qualquer fase de sua vida cronológica. Segundo Freud, o infantil refere-se ao que é marcado na relação com o Outro e estruturado pela vivência edípica, o que o leva a chamar "todo edifício anímico de acordo com a saga grega de Complexo de Édipo" (Freud, 1926/2000a: 199). A experiência edípica é organizada em torno de uma impossível completude, de uma perda, de um Real indizível circunscrito pela dança dos desejos na qual pai, mãe e filho ocupam seus lugares. O infantil em Freud é, portanto, o que se organiza em torno dessa perda, identificada teoricamente no objeto enquanto pura falta, vazio, objeto a. Eis como podemos introduzir a observação segundo a qual Lacan inclui, no conceito de estrutura, o registro do Real.

Avancemos, para melhor precisá-lo. O inconsciente é saber que afeta o sujeito e Freud o concebe como lugar psíquico no qual se encontram representações psíquicas, a que chama de "signos" (Zeichen) e que têm valor de significantes. No entanto, não é necessário um grande conhecimento para verificar que o signo não retém muito do ser. Há muito do ser que não entra no signo. Donde a tomada do ser do sujeito na estrutura da representação significante promove uma perda que, tanto quanto o próprio significante, determina o que concerne ao sujeito. Este é então marcado com um saber ao qual não tem acesso direto e consciente. Trata-se de um saber não sabido que é sempre sexual e comporta o gozo causado e suportado pela linguagem, afetando, como diz Lacan (1971-1972/2003: 547), "não a alma, mas o corpo do ser que só se torna ser pelas palavras, isso por fragmentar seu gozo, por recortar este corpo através delas até produzir as aparas com que eu faço o a, a ser lido objeto pequeno a". As "aparas", que não podem ser significantizadas, traduzem o vazio do objeto tanto em sua face de abjeto quanto como causa primária de desejo. Lacan propõe esse objeto como o que se produz pela necessidade de um discurso.

 

A ESTRUTURA E O SEXO

A estrutura do inconsciente é lógica e se baseia no fato de que "em nenhuma hipótese, nada do que acontece, pelo fato da instância da linguagem, pode desembocar sobre a formulação de nenhum modo satisfatória da relação sexual" (Lacan, 1971-1972: lição de 8/12/71). O axioma lacaniano "a relação sexual não existe" traduz a verdade de que, no ser falante, o sexo não define nenhuma relação, visto que é efeito de linguagem (Alberti, 2008). Isso porque é efeito de linguagem tal como o Real é efeito do simbólico, como o define Lacan.

Ao mesmo tempo, a linguagem não só impõe limites à apreensão do Real, como também é determinada por sua impossibilidade, pelo esforço de situar no discurso o que pode haver de Real. O Real como indizível presentifica um ponto de falta determinante de todo o discurso. Mas ao mesmo tempo e paradoxalmente, a lógica do inconsciente referida à linguagem, ao ponto de falta em torno do qual ela se organiza, é o que permite encontrar uma orientação no discurso e, em suas tentativas de dar sentido, significar o que jamais terá um único significado. O Real é o que comanda toda a função de significância; por isso, não é possível que o significante diga tudo ou represente um sujeito. Ele só o faz para outro significante, razão de não podermos nada com todos os significantes juntos. "Nadamos na significância e não podemos apreender todos ao mesmo tempo. Isso está interditado pela própria estrutura do significante; quando temos alguns, os outros estão recalcados" (Lacan, 1971-1972: lição de 15/12/72). Desse modo, a lógica pode trocar completamente de sentido, de acordo com o lugar de onde cada discurso toma seu sentido. Todo discurso, no entanto, tenha ele o sentido que tiver, orienta-se pela tentativa de abordar esse ponto de falta inapreensível, esse ponto de Real.

Dito de outro modo, o Real, ao se opor ao completo aprisionamento do discurso, introduz uma abertura irredutível. Passível de ser definido rapidamente como o impossível, ele também é o "paradigma do que põe em questão o que pode sair, escapar da linguagem" (Lacan, 1971-1972: lição de 12/01/72), ou seja, como vimos, o sexo.

É o sexo que permite a reprodução do que se denomina um corpo vivo. Contudo, não se reduz a isso. Como Lacan adverte, há muita confusão em torno do que Freud postula como função do sexo e como função da reprodução. A reprodução da vida em sua forma mais primitiva emerge de algo que não é vida, nem morte, e reside na programação cromossômica das células. O sexo não se limita à reprodução cromossômica das células e não está associado à imagem de um corpo destinado a ela. Como já dissemos, o sexo é o que escapa da linguagem, visto que é determinado pelo desejo. Mas entre o desejo e esse corpo carne reproduzido pela programação cromossômica se produz uma perda que gera gozo. Essa perda é o que a castração aponta como limite experimentado na morte do corpo carne à revelia do desejo.

Para além da programação cromossômica das células, houve uma cada vez maior complexidade, que culminaria com o que Lacan observa: "A vida e a morte mantêm um diálogo que seria sem dramas, se um elemento não interviesse nesse equilíbrio. Esse elemento é o gozo" (Lacan, 1971-1972: lição de 12/01/72). O ser falante mantém uma relação de inadequação com o corpo próprio, cujo fundamento é o gozo. Gozo perdido para esse corpo esculpido pela linguagem, que adquire uma relação privilegiada com o gozo sexual. Esse gozo, fálico, é introduzido pelo Outro, e essa intrusão se ordena na repetição corporal que lhe é própria. Nesse campo, o parceiro do sujeito adquire peso. Designado como homem ou mulher, esse parceiro só o é pela linguagem, porque esta última funciona originalmente como suplência ao gozo sexual.

 

A ESTRUTURA E O NÃO-TODO

Para entender de forma lógica a impossibilidade da completude na relação sexuada, Freud recorre aos mitos. Com o mito edípico, trata da aproximação do homem em relação à mulher. Utiliza o mito de "Totem e tabu" (Freud, 1912/1986) como um momento lógico prévio, que funda a cultura. Nele, o homem primitivo - às vezes identificado a um orangotango - gozaria do que depois, conforme Lacan, já não existe, porque o homem original gozaria de todas as mulheres. Ora, isso é impossível, pois o homem tem seus limites e não pode dar conta de todas as mulheres, essencialmente porque não existe o "todo" das mulheres. No que diz respeito à função sexual, há uma parte delas que se mantém como enigma para elas próprias. Em "Inibição, sintoma e angústia", Freud (1926b/2000) chega a dizer que a mulher está sob os efeitos da castração mas mesmo assim não sofre a angústia de castração, ou seja, algo aí não está de todo na castração; com Lacan sabemos que se trata do suporte imaginário do falo.

Se Freud se utiliza dos mitos para falar de um impossível, de um Real que se presentifica na relação sexual, Lacan, por sua vez, interroga o Real da estrutura do inconsciente à luz da lógica do não-todas. Em 1972 ele afirma que "o não-todas é precisamente o que merece ser interrogado como estrutura" (Lacan, 1971-1972: lição de 12/1/1972). Sabemos que tanto a língua quanto a mulher habitam o não-todo; a incompletude do Outro e lalangue materna trazem essa dupla alteridade, a da mulher que fala ao infans em uma língua que comporta rupturas e o desejo dela. Indagamo-nos aqui sobre o lugar desse não-todo que suporta a alteridade, decorrente por sua vez do fato de que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", como já dizia Lacan desde que começou a definir o inconsciente. Se isso é para todos, de forma universal, o que funda o inconsciente é a experiência vivida entre o sujeito e o Outro, experiência permeada pelo significante: uma mulher, que se ocupa de seu infans, deve antes estar "grávida de significantes" para introduzir seu filho no mundo que poderá vir a habitar: o da fala e da linguagem. Para isso, há uma relação com lalangue - termo cunhado por Lacan e que pode ser traduzido por balbucio. São significantes isolados, desarticulados e que, como marcas indeléveis, fixam o gozo como perda. Lalangue não é a linguagem, é o que, na estrutura, de saída, aponta para o Real indizível. É pela mãe, Grande Outro Primordial, que a criança recebe esses significantes. Grifamos recebe para ressaltar que não se trata de apreender. "A criança não apreende, há um pendor. É todo um sistema que se apresenta como se fosse inato, com o qual a criança joga a propósito de que sua mãe dê a partida" (Lacan, 1976: 47). A relação do sujeito com o Outro não é recíproca, é uma relação que se engendra por inteiro no processo de hiância. Espaço indizível no qual emerge o sujeito.

 

ALTERIDADE

O ensino de Lacan privilegiou o conceito do Outro e a consequente problemática da alteridade. Freud, em seu texto, não estabelece uma instância discursiva do Outro, mas postulou o inconsciente como descentrado, atrelando seu sujeito à inquietante estranheza. O conceito de inconsciente, objeto por excelência da psicanálise, é compreendido com a dimensão da alteridade. É a outra cena, anderer Schauplatz, lugar onde circula em uma exterioridade íntima, o que é retido como marca indelével. A alteridade no pensamento freudiano apresenta-se no próprio conceito de sujeito descentralizado e situado como sempre êxtimo, vindo do Outro, como formalizou Lacan. O sujeito freudiano é abordado em uma perspectiva simultaneamente estranha e familiar (unheimlich/heimlich), origem da alteridade radical para todo sujeito. O conceito de pulsão, oriundo da sempre traumática presença/ausência do Outro, reafirma no texto freudiano a presença constituinte do Outro para o sujeito.

No texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano", Lacan (1960/1998) marca uma virada no conceito de Outro: do Outro da palavra postulado pela dialética hegeliana ao Outro do significante fundado nas elaborações da linguística - uma hiância se revela no campo da Alteridade. Essa hiância denuncia a inconsistência do Outro como um fato de estrutura, o que faz Lacan defini-lo como lugar da fala, "lugar da falta" (Lacan, 1958/1998: 633). A lógica da enunciação não pode encontrar no campo do significante seu próprio fundamento. Nenhuma metalinguagem pode articular a verdade última do desejo. Há um significante essencial que falta no Outro e que se escreve com o matema S(%). Hiância irredutível no simbólico, o que se comprova pelo fato de nenhuma linguagem permitir dizer toda a verdade, que só pode ser meio dita. Não há Outro do Outro que possa garantir o enunciado, cujo único suporte é sua própria enunciação. A linguagem contém rupturas, diferenças, e a sincronia significante inscrita no lugar do Outro não é plena, contém falhas, interrupções, cortes. Na sequência sincrônica da linguagem abre-se uma hiância entre um primeiro significante, S1, que só representa um sujeito para outro significante, e um segundo, o S2, suporte do saber. O sujeito se faz presente entre os significantes, justo no que falta ao significante; logo ele não é só relativo a este - o que realmente lhe dá existência está ligado ao Real. A posição sexuada de todo sujeito tem essencialmente raízes no Real.

No inconsciente freudiano não há representação psíquica da oposição masculino/feminino. A libido é de natureza masculina, manifeste-se no homem ou na mulher, e faz abstração de seu objeto para ambos os sexos anatômicos. Isto porque a pulsão é sempre ativa, ainda que tenha um fim passivo. A representação inconsciente do feminino, do que está fora do sexo, fora da norma fálica, apesar de estar referido a ela, é correlativa de um Real, o que faz Lacan dizer que "a mulher não existe". Há um campo ignorado: "Esse campo é o dos seres que assumem o estatuto da mulher - se é que esse ser assuma o que quer que seja por sua conta. Além disso, é impropriamente que a chamamos mulher, pois a partir do momento em que ela se enuncia pelo não-todo, não pode se inscrever. Aqui o artigo a, só existe barrado" (Lacan, 1972-1973/1985: 108). Se não há relação sexual, é porque a mulher só pode ser apreendida enquanto falta, constituindo sempre o Outro sexo. Freud nos diz que as mulheres são inimigas da civilização e Lacan nos ensina que elas são mais próximas do Real.

A mulher tem uma relação com o Real muito superior à que é mantida pelo homem. Isto quer dizer que a mulher sabe mais da impossibilidade de inscrever a relação sexual e também da existência de um gozo não codificado pelo Outro da linguagem, que Lacan denomina gozo Outro, ou gozo suplementar feminino. Gozo que ela experimenta, mas dele não há um dizer possível (Rocha Miranda, 2008: 154).

Em O seminário, livro 20: mais, ainda... Lacan (1972-1973/1985) demonstrou que não há relação sexual porque a relação possível dos sexos se dá entre dois elementos totalmente díspares: o lado masculino, no qual se inserem aqueles que gozam do todo fálico, e o lado feminino, para aqueles que gozam do não-todo fálico. O todo fálico só se forma a partir de uma exceção, de uma existência que se excetue do conjunto: há o todo desde que haja exceção. É preciso pelo menos um sujeito magro para que se constitua o todo dos sujeitos gordos. "Não há universal que não deva se conter em uma existência que a negue" (Lacan, 1972/2003: 450). A ex-sistência faz o Um unificado, por exemplo, pelo conjunto dos gordos. Do lado feminino não há a exceção e na ausência desta não há todo, o todo não consiste: não há o Um unificante do conjunto das mulheres, toda mulher não está submetida à norma fálica. Há sempre algo na mulher que escapa ao discurso e se articula à ex-sistência do Real. A relação se daria então entre o Um fálico e o não-todo fálico que aponta a alteridade para a própria mulher, ela é a outra ela para ela mesma na medida em que está também no todo fálico. O conceito lacaniano de não-todo fálico remete ao que não tem limites, mas não é infinito. Remete ao Real que exsiste e que se faz presente nos furos, nas entrelinhas do discurso. Se for assim para a mulher, é para o homem também que se dirige à mulher.

Ainda no mesmo seminário, quando Lacan retoma seu aforismo de que o Outro não existe, observa que só a lei fálica regula o gozo e que o dizer da castração é sua condição. Se há para aqueles que se colocam na posição feminina uma partição entre o fálico e o não-todo fálico, partição entre o castrado e o não todo castrado, essa parte fora do falo aponta para o registro do Real impossível de dizer, para um Real que ex-siste e que regula, ordena o discurso através dos pontos de falta que instaura. O discurso é sustentado e ordenado pela falta de um significante no Outro, pela alteridade enquanto ex-sistência. A própria lógica do discurso é não-toda fálica, lógica em que a parte não-fálica o é em referência à fálica. As mulheres estão de todo na castração, diz Lacan, mas o não-todo fálico que as habita refere-se à lógica da fala, lógica que é não-toda. "O ser sexuado dessas mulheres, 'não-todas', não passa pelo corpo, mas por aquilo que resulta de uma exigência lógica na fala" (Lacan, 1972-1973/1985: 19).

 

HETERIDADE

O gozo Outro que diz respeito à mulher está no Outro do corpo, mas não em outro corpo e sim nela mesma. É furo no simbólico S(%), furo que apela para a exigência lógica da fala que é vivida no Real do corpo da mulher pela ausência do suporte imaginário, o pênis. O gozo Outro experimentado pelas mulheres se articula ao ser da significância, ao ser nos ocos da palavra, ao ser ainda por significar. A mulher é não-toda referida à norma fálica, há uma parte dela que se mantém fora de toda significação, escapando ao que pode ser colonizado pelo significante Nome-do-Pai. Este significante enquanto unificante do todo fálico não abrange todo o ser da significância - independente do sexo anatômico: algo permanece como gozo no registro do Real e retorna para aqueles que se colocam do lado feminino na partilha dos sexos. Isso quer dizer que a mulher tem um gozo que não se inclui no falo, visto que é aberto à falta no Outro. Ela é depositária de um Real não simbolizado pelo sexual.

É esse Real sustentado pela "não-toda" fálica e que emerge nos ocos da palavra que estrutura o discurso dando realidade sexual para cada sujeito. Se a estrutura é a linguagem, ela é não-toda e a alteridade estruturante do Um fálico é sustentada pela posição feminina. Não há no inconsciente o Outro do Um, o inconsciente está sob a égide do Um de que se goza. A estrutura do sujeito do inconsciente implica o fálico e o Outro inabordável pelo saber, lugar onde a falta de referência se presentifica e pode se expressar sob a forma de um gozo Outro, feminino. Vemos aqui o laço do sexo com o Real.

Lacan nos diz que "é heterossexual por definição, aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu próprio sexo" (Lacan, 1972/2003: 467). A relação com o gozo Outro feminino é de tal modo Outro que confronta qualquer um com a Alteridade absoluta.

As mulheres se queixam de serem excluídas, porém não sabem de que se queixam, diz Lacan. Elas evocam o que está excluído do significante. Toda exclusão feminiza e situa o que está excluído em posição de heteros, de Outro. Em 1972, Lacan diz que o "Heteros não é idêntico nem ao Um nem ao ser" (Lacan, 1972/2003: 467), eles são outros um em relação ao outro. "O Heteros pode-se declinar em Hetera, eteriza-se" (Lacan, 1972/2003: 467-468). Hetera, em grego, significa a concubina, a mulher do desejo. Se eteriza, evapora, pois o gozo Outro, experimentado pela não-toda, evapora, visto que é inapreensível. "Na democracia grega o Outro do cidadão é representado pela mulher, pelo estrangeiro e pelo escravo" (Quinet, 2002: 87). Na mitologia, segundo Vernant (2000), o Outro é Dionísio, o Deus da desmedida de gozo. O gozo Outro não cessa de não se escrever, o significante não o apreende, pois ele ex-siste, existe enquanto eternamente Outro.

Temos então para a mulher a possibilidade de dois gozos: o gozo fálico, situado entre o Simbólico e o Real, e o gozo Outro, situado entre o Real e o Imaginário.

O problema do neurótico não é que o Outro do Outro não exista, mas o que existe no lugar da inexistência do Outro, ou seja, o que ex-siste como Real. O sujeito tem que lidar com o que ex-siste como alteridade. Confrontar-se com a alteridade é confrontar-se com a questão do que existe aí onde o Outro está barrado S(%), é confrontar-se com a ex-sistência.

A incompletude do ser feminino em Freud é tomada em Lacan como inconsistência. Esta designa uma estrutura lógica positiva, o espaço do não-todo, um conjunto aberto definido pela impossibilidade de circunscrever a totalidade.

Em O seminário, livro 23: o sinthoma, Lacan (1975-1976/2007) tentará abordá-lo de outra maneira: introduz a estrutura via cadeia borromeana e a descreve como composta de três registros, RSI, que por si sós não dão ao humano a estrutura necessária para que ele aceda ao falasser (parlêtre) e como tal possa utilizar-se do discurso como recurso à falta-a-ser. É necessário o quarto nó que amarre os três, e esse quarto nó é o Nome-do-Pai.

Se por um lado o significante Nome-do-Pai é o recurso à falta-a-ser, por outro o ser da significância, ser de linguagem marcado pelas rupturas, pelos furos, presentifica o que não é possível significantizar. "Como o ser da significância não tem outro lugar senão o lugar do Outro que designo com o A maiúsculo, vê-se o envesgamento do que se passa", nos diz Lacan. "Como é lá também que se inscreve a função do pai no que ela remete à castração, vê-se que isso não faz dois deuses, mas que isso também não faz um só" (Lacan, 1972-1973/1985: 103). O gozo feminino não serve a dois deuses, mas a um só, o fálico, e se situa em relação ao que fica fora do reinado do falo. Tanto a inscrição do significante Nome-do-Pai quanto o que a excede, situam-se em um mesmo lugar no Outro, lugar da falta simbólica, onde também situamos as manifestações do gozo Outro feminino. Este gozo que existe no lugar do Outro que não existe, do Outro barrado, é a pura sensibilidade feminina que o aponta como Outro vazio de saber, como falha sem nome, como o nome do que não pode ser abordado com o Nome-do-Pai, como o nome da ausência do Nome, como a ex-sistência suportada pela não-toda fálica e que estrutura a existência possível ao falasser.

Eis por que Lacan pode aproximar A mulher do próprio Outro que não existe: "A maior necessidade da espécie humana é que haja um Outro do Outro. É aquele a quem chamamos geralmente de Deus, mas a análise o desvela como pura e simplesmente A mulher" (Lacan, 1975-1976/2007: 124). Eis o lugar que articula a estrutura em psicanálise, como diz o texto que colocamos em exergo: "O corte da cadeia significante é único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade no real" (Lacan, 1960/1998: 815).

 

A ESTRUTURA E O NÃO-SENTIDO

Mas isso já está dado desde o início da história da psicanálise graças à descoberta de Freud, na qual o encontro com a obra o Juízo Final de Signorelli certamente teve um papel! É interessante notar que, na última página de seu comentário sobre seu esquecimento do nome do pintor, Freud (1898/1999: 522) observa como é irrisório reduzir seu lapso à articulação entre "juízo final, 'o dia mais novo'1, morte e sexualidade". Freud já sabia que a cadeia significante não dá conta de seu esquecimento. Este denuncia muito mais um não sentido, "a incidência de um buraco, de algo que se coloca como falta, ou, melhor ainda, perda - o nome próprio que se perdeu" (Fernandes, 2006). Francisco Lionel Fernandes chama a atenção para a releitura que Lacan pode fazer do fato, em 6 de janeiro de 1965:

O esquecimento de Freud é sustentado como tal, como buraco, como presença da perda, ele é "criado", justamente no desdobramento da cadeia, no prosseguimento da cadeia. Isto é, a cada nome que se coloca na sequência, o sujeito fará a prova daquilo que se perdeu, perda esta que traz o traço, aí sim recalcado, posto que esse nome não é aí evitado intencionalmente, ele não aparece como significação. Mas, por efeito do automatismo literal, o nome próprio é indicado, daí Lacan dizer que o esquecimento é um mecanismo de memória, por não se dizer, por se furtar, por se apagar - essa é uma propriedade intrínseca do nome próprio: poder ser perdido (Fernandes, 2006: s/p).

Eis onde articulamos a nossa hipótese de que Freud também já o sabia. Em 1901, ao retomar o lapso, acrescenta a seus comentários: "O tipo de articulação que surge entre o nome procurado e o tema recalcado (morte, sexualidade etc., no qual aparecem os nomes Bósnia, Herzegovina, Trafoi) é muito particular" (Freud, 1901/1999: 9). E logo em seguida: pois não houve nenhuma preocupação "nem com o sentido, nem com as separações acústicas das sílabas. No processo, os nomes foram tratados de forma similar com que se fazem desenhos de frases escritas para transformá-las em enigmas a serem decifrados (rébus, picture-puzzle)" (Freud, 1901/1999: 10). Freud continua aprofundando a questão, sem conseguir, no entanto, resolver como a coisa toda acabou por retornar somente através de "sílabas iguais (ou melhor, séries de letras)" (Freud, 1901/1999: 10). Passagem por demais importante em seu texto para nós que hoje estudamos a letra como ruptura do significante e, portanto, do semblante (ver Lacan, 12/5/1971). Como observam as autoras do artigo "A estrutura em psicanálise: uma enunciação desde Freud" (Sadala & Martinho, 2011), a partir de suas leituras da "Conferência de Genebra sobre o sintoma" (Lacan, 1975/1988): "Lacan diz que a alíngua é a primeira marca do ser falante. Se a língua é a condição do inconsciente, a alíngua é a língua particular e única para cada ser falante. Alíngua é a língua do inconsciente de cada um" (Sadala & Martinho, 2011: s/p).

Rompendo com a noção de estrutura que originalmente herdara da linguística, Lacan introduz o gozo no Real como erosão. A escrita, diz ele, pode ser dita no real a erosão do significado e não nos parece haver melhor exemplo disso do que a análise de Freud de seu esquecimento do nome Signorelli. Eis onde se inscreve então a estrutura, em psicanálise, desde o início de sua história: no que não tem sentido e, no entanto, justamente, insiste. Aproximamos essa afirmação do feminino, que insiste, sem resposta, desde o início da psicanálise.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Apocalipse, 21:5: Para a ressurreição, Deus teria dito: "eis que faço novas todas as coisas".

 

 

Recebido em 05 de dezembro de 2012
Aceito para publicação em 29 de dezembro de 2012