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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2012

 

ARTIGOS

 

A feminilidade: de um outro a um Outro

 

The femininity: from another to Another

 

 

Emilse Terezinha Naves

Psicanalista; Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB); Professora adjunta da Universidade Federal de Goiás/CAC (UFG)

 

 


RESUMO

O percurso freudiano sobre a feminilidade é marcado por vários impasses e ambiguidades e conclui sobre seu caráter enigmático. Neste artigo, discute-se a representação do enigma da feminilidade levando-se em consideração que a assunção a ela significa enfrentar e aceitar o irrepresentável. Assim, são abordadas as relações entre a feminilidade e a histeria, bem como as suas ligações com a pulsão de morte, utilizando fragmentos de textos literários que ajudam a pensar sobre esta questão.

Palavras-chave: feminilidade; histeria; pulsão de morte; gozo.


ABSTRACT

Freudian path on femininity is marked by several deadlocks and ambiguities and concludes about its enigmatic character. In this article, we discuss the representation of the enigma of femininity taking into consideration that the assumption to it means to con front and accept the non-representable. Therefore, we approach the relationships between femininity and hysteria, as well as its connections with the death drive, using fragments of literary texts that help us think about this issue.

Keywords: femininity; hysteria; death drive; enjoyment.


 

 

Freud (1937/1987: 287) apontou a feminilidade como o "grande enigma do sexo", que estabelece toda a diferença entre homens e mulheres. Porém, por ser portadora desse enigma, a feminilidade mostra seu caráter dúbio. Se, de um lado, indica a tentativa de escapar a uma clara apreensão, de outro mostra seu poder de colocar em movimento a produção de um saber, tendo em vista o número de produções teóricas sobre o tema e as várias tentativas, ao longo dos séculos XX e XXI, de compreender a especificidade do desejo feminino. As questões relacionadas à proposição de uma identificação da feminilidade ao enigma suscitam inúmeros caminhos. Neste trabalho, escolheu-se explorar a ideia de que o longo e sinuoso percurso apontado por Freud na constituição da feminilidade leva a um jogo complexo na encenação de um duplo movimento em relação ao enigma.

A feminilidade, ao contrário do arranjo neurótico, apresenta uma forma particular diante do enigma: ela não apenas o encarna, mas também o encara, na medida em que, de alguma maneira, o sujeito feminino compreende que nem tudo faz sentido. A assunção à feminilidade passaria, então, pelo reconhecimento do fracasso de se tentar responder ao enigma do desejo do Outro. Na escolha neurótica, o enigma fica limitado a uma reivindicação fálica, tendo como objetivo se defender de algo que escapa à significação, o que leva o sujeito a se manter fixado em construções sintomáticas que visam, sobretudo, obturar qualquer possível falta para não se perder em uma intensidade pulsional. Na feminilidade, o enigma assume a posição oposta, já que, nesta condição, há possibilidade de enfrentar o irrepresentável. Assim, ao invés de propor sua solução, a feminilidade o coloca em movimento (Rivera, 2005).

 

A FEMINILIDADE E A MORTE EM FREUD

Em seu último texto sobre a feminilidade, Freud (1933 [1932]/1987) fez duas observações que parecem fundamentais ao estudo da vida psíquica das mulheres. Uma dessas observações abrange a relação estreita que existe entre feminilidade e vida pulsional, enquanto a outra versa sobre o caráter enigmático da feminilidade. Tanto uma quanto outra mostram o impasse de Freud diante da sexualidade feminina. Embora suas construções teóricas acerca da feminilidade se fixem em torno de desejo, castração e falo, também apontam para a existência de uma vertente pulsional que constitui obstáculo para sua teoria do desejo à luz da questão edipiana. Na feminilidade, algo escapa a uma clara apreensão. Portanto, ao final de seu último texto sobre o tema, Freud (1933 [1932]/1987) afirmou estar diante de um estudo incompleto e fragmentário. O enigma do sexo feminino, tantas vezes lembrado por ele, reflete uma forma de abordar a existência de uma lacuna no discurso acerca do feminino que escapa à dimensão significante.

Na concepção da histeria2, também existe uma vertente que apresenta um inominável, um umbigo, como mostrou Freud (1900/1987). A clínica da histeria indica um ponto limite que se expressa em alguns aspectos de sua dinâmica e aponta que existe algo na histeria, como também na sexualidade feminina, que resiste ao significante fálico. Contudo, as formas de lidar com esse não-representável, esse umbigo, são completamente diversas na histeria e na feminilidade. O sintoma histérico parece indicar um meio encontrado pela histérica de, por um lado, denunciar esse furo e, por outro, escapar à dimensão, para utilizar um termo lacaniano, de um real que "não cessa de não se escrever" (Lacan, 1963-1964/1988: 56). Já o caminho em direção à feminilidade comporta, sobretudo, certa aceitação da falta de um significante específico do sexo feminino, embora a mulher não esteja isenta de se deparar com momentos de angústia diante do inominável da feminilidade. Trata-se, portanto, de uma aceitação quase sempre provisória e que necessita ser renovada permanentemente.

A dimensão de um irrepresentável da feminilidade, que vai além da lógica fálica, evidentemente não foi explorada por Freud. Entretanto, sua agudeza intuitiva fornece elementos suficientes que indicam a presença desse irrepresentável da feminilidade em suas teorizações. Podemos reconhecer essa problemática no texto escrito cerca de dez anos antes das principais construções teóricas do autor sobre a feminilidade, no qual aborda a morte (Freud, 1913/1987). De acordo com a leitura de Assoun (1983: 24), esse texto de Freud estabelece uma relação estreita entre a "mulher-mãe" e a morte, servindo de "epígrafe à história dessa relação", ao mesmo tempo que "inaugura secretamente" a explicação freudiana da feminilidade.

Freud (1913/1987) partiu de uma série literária e mitológica para ilustrar a articulação entre a morte e a mulher. Apresentou o texto de Shakespeare (1596-1598/2009) O mercador de Veneza, que conta a história de um homem que deve escolher, entre três cofres - de ouro, prata e chumbo -, aquele que contém o retrato da amada, com quem, então, poderá se casar. O pretendente bem-sucedido, Bassânio, escolhe o cofre de chumbo e obtém o consentimento do pai para se casar com Portia. Essa situação propõe o estabelecimento de uma equivalência simbólica da mulher com o cofre. O cofre de chumbo, escolhido por Bassânio, é uma substituição simbólica da mulher. Por que o cofre de chumbo é o portador da bem-aventurança em detrimento dos cofres de ouro e de prata?

Freud (1913/1987) buscou explicação, contendo a mesma estrutura, em outro texto shakespeariano, Rei Lear (Shakespeare, 1605/2007). O velho Rei Lear sucumbe à desgraça ao não escolher Cordélia, a terceira filha, como a herdeira de seu reino, embora ela seja a melhor. O elemento terceiro, representado pela terceira filha, sugere que a escolha deve se realizar segundo três opções - a mais bela, a mais sábia ou a "mais excelsa". Essas características, encontradas em vários contos e mitos, chamaram a atenção de Freud (1913/1987: 370), pois apresentam traço singular ilustrado, exemplarmente, por Cordélia, que "indistinguível como o chumbo, permanece muda, ama e cala". Na sequência do texto, Freud (1913/1987: 371) fez a seguinte afirmação: "a psicanálise nos dirá que, nos sonhos, a mudez é uma representação da morte". Desse modo, a terceira mulher designa "a própria Morte, a deusa da Morte" (Freud, 1913/1987: 373). Assim, Freud estabeleceu algo de essencial em sua apreensão da feminilidade - a equivalência entre a morte e maternidade -, como atesta a conclusão de seu artigo:

Poderíamos argumentar que o que se acha aqui representado são as três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher - a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem - a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e por fim, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe (Freud, 1913/1987: 379).

Dessa maneira, Freud apontou para a estranheza da feminilidade, a qual, conjugada à maternidade, apresenta algo que não é falado e, portanto, não pode ser nomeado. Trata-se de um aspecto que não foi privilegiado na sequência da abordagem freudiana da feminilidade, mas que não passou despercebido por Lacan (1972-1973/1985) ao teorizar sobre o gozo feminino, a partir de sua segunda leitura sobre a feminilidade, após 1970.

Todavia, com base na leitura freudiana da feminilidade, na qual Freud (1913/1987) estabeleceu correlação entre maternidade e morte, podemos retomar a concepção da maternidade como potência criadora ou, melhor colocando, como produtora de novas configurações. O conceito de morte pressupõe uma disjunção, uma quebra do que está estabelecido. Ora, os processos da natureza ensinam não ser possível manter a vida sem constante renovação - é preciso a morte de uns para dar lugar à vida de outros. Do mesmo modo, o homem ou a mulher só poderão estabelecer uma verdadeira relação objetal com base na diferença entre os sexos, na alteridade, se puderem guardar o luto pela morte da mãe como "primeiro objeto de um gozo impossível" (Soler, 2005: 89). Consequentemente, a partir da falta, do vazio, do mutismo, é possível tecer novas formas ou novos significantes. Não foi por acaso que Freud (1933 [1932]/1987: 162) notou que as invenções do trançar e tecer são consideradas as grandes contribuições das mulheres na história da civilização, pois estas são hábeis em "fazer os fios unirem-se aos outros" em torno de um vazio que jamais é totalmente preenchido.

 

A FEMINILIDADE E O GOZO DO OUTRO EM LACAN

A constatação freudiana de que a mulher encarna um enigma, que apresenta algo difícil de ser decifrado, passa necessariamente pelo enigma do sexo, pela articulação inconsciente determinada pela lei do desejo. Embora Freud tenha apresentado, em suas teorizações sobre a feminilidade, indícios de um indizível pulsional para além do desejo edípico, é indiscutível que o enigma da sexualidade feminina, em sua concepção, está centrado basicamente no campo do Outro. Lacan (1972-1973/1988), porém, visualizou esse enigma feminino por outro ângulo, propondo examiná-lo como um enigma do gozo. Na leitura desse autor, a mulher apresenta uma modalidade de gozo que é assexuado, que não se inscreve no inconsciente e que, portanto, vai além da lógica fálica e da castração.

Essa teorização lacaniana da feminilidade só foi realmente desenvolvida em 1972, mas resultou de uma construção teórica que ele iniciou a partir de 1958. No texto "Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina", ele se dedicou a questionar os problemas da abordagem da sexualidade feminina que não haviam sido devidamente esclarecidos pela psicanálise. No item VII, constatou que "convém indagar se a mediação fálica drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher, notadamente toda a corrente do ins tinto materno" (Lacan, 1966a/1988: 739), em um prenúncio de que a referência ao sexual postulado pela teoria freudiana não responde a tudo o que concerne ao gozo feminino. Esse questionamento de Lacan, porém, só foi devidamente explorado 15 anos depois, uma vez que, naquele momento inicial, suas elaborações teóricas sobre a sexualidade feminina ainda se baseavam no registro do desejo e não do gozo.

Ainda nessa perspectiva, Lacan (1966b/1988) propôs a existência de uma dialética do gozo introduzido pelo significante do falo. Entretanto, esse ponto só foi plenamente desenvolvido posteriormente (Lacan, 1972-1973/1988). A divisão do gozo, proposta em 1960, foi postulada entre o gozo sexual e o que o autor denominou gozo do ser. O primeiro é articulado ao significante e à lógica fálica, corroborando a elaboração freudiana da castração. O segundo foi concebido por ele como aquele que escapa à cadeia significante, que está apartado da linguagem, sendo, portanto, inacessível. O duplo gozo foi retomado por Lacan (1972-1973/1988) permitindo que ele desenvolvesse uma elaboração sobre a mulher que ultrapassa a concepção freudiana da inveja do pênis. Sendo o falo concebido como um significante do desejo, e estando a mulher privada deste falo, ela estaria, então, privada de um significante que poderia dizer sobre o ser feminino. Desse modo, a mulher estaria sujeita a um determinado tipo de gozo que não passa pela representação do sexo e estaria imersa em um excesso pulsional que escapa à lógica fálica, ou, nas palavras de Lacan (1972-1973/1988: 46), que "escapa ao discurso". Esse gozo concebido como suplementar ao gozo fálico é nomeado por Lacan de gozo Outro e é característico da constituição feminina. O gozo fálico corresponde às vicissitudes da castração e, portanto, responde às condições determinadas pelos processos inconscientes, ao passo que o gozo Outro equivale a um a-mais, utilizando uma expressão lacaniana, e se apresenta foracluído do simbólico, não se adequando à lógica do significante.

Para Lacan (1972-1973/1988: 46), o homem responde pelo gozo fálico, pois "não é outra coisa senão um significante". Em contrapartida, a mulher "se funda por não-todo a se situar na função fálica" (Lacan, 1972-1973/1988: 98). Essa construção lacaniana é uma resposta aos impasses freudianos acerca de sua compreensão do sexo feminino. O enigma da mulher evocado por Freud como algo que se furta ao saber inconsciente significa, na concepção de Lacan (1972-1973/1988: 99), que a mulher privada de um significante que a represente só pode ser concebida como "excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras". Nesse contexto, Lacan (19721973/1988) surpreendeu ao afirmar que não existe A mulher, ou melhor, que não há mulher pelo menos para designar o universal. A mulher só existe se o A for barrado, justamente por ser não-toda.

A dupla essência da mulher, proposta por Lacan (19721973/1985), designa que ela está assujeitada à privação de um elemento simbólico, situando-se em um além do Édipo. Na leitura lacaniana, a privação corresponde a um dos três registros da falta de objeto, equivalendo à falta de um significante. A privação está associada à categoria do real lacaniano, que se caracteriza pela referência àquilo que não é simbolizável. O fato de a mulher estar circunscrita nesse registro significa que ela se encontra totalmente excluída da dimensão simbólica e, portanto, isenta da castração? Caso seja seguido esse raciocínio, não estaríamos, com isso, aproximando a feminilidade da psicose, como parece ser a tendência de alguns psicanalistas? Porém Lacan (1972-1973/1985) esclareceu que a mulher não está toda submetida ao registro fálico, à medida que é confrontada com um resto pulsional que não passou totalmente pela interdição. Isso não significa, contudo, que não esteja submetida à castração, mas que é portadora de um gozo resultante da operação da castração. Portanto, é um a-mais de gozo que se acrescenta ao gozo inscrito na rede de significantes, como demonstrou Lacan:

Se ela [a mulher] está excluída pela natureza das coisas, é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar. Vocês notarão que eu disse suplementar. Se estivesse dito complementar, onde é que estaríamos! Recairíamos no todo (Lacan, 1972-1973/1988: 99; grifos do autor).

Desse modo, o autor reconheceu que situar uma parte do gozo feminino no lugar do real não retira da mulher o lugar de sujeito do inconsciente. Se fosse esse o caso, como poderíamos explicar a análise de mulheres? A clínica revela a enorme demanda de mulheres que buscam a análise e que se acomodam plenamente ao setting analítico, colocando o inconsciente em exercício e abrindo espaço para a constituição de uma alteridade feminina. Por outro lado, Freud (1933 [1932]/1987: 165) lembrou que muitas mulheres que estão em análise mostram uma "rigidez psíquica e imutabilidade", trazendo dificuldades ao analista, pois "sua libido assumiu posições definitivas e parece incapaz de trocá-las por outras" (Freud, 1933 [1932]/1987: 165).

A adesividade da libido nas mulheres, que levou Freud a concluir que elas possuem menor capacidade de sublimação do que os homens, parece problemática. A adesão de Freud à lógica fálica, como ponto central na construção teórica da feminilidade, impediu-o de reconhecer que a mulher pode se deslocar dessa única posição que ele lhe atribui: a posse do falo. Os tropeços das mulheres na análise dizem respeito a esse gozo Outro que elas experimentam, mas acerca do qual, por outro lado, nada podem dizer. No entanto, como lembrou Lacan (1972-1973/1988), esse gozo surge a partir de um a-mais que só pode ser evocado com base na castração.

Portanto, vemos que é por esse aspecto duplo que a mulher se situa no Édipo e, ao mesmo tempo, no além Édipo, possibilitando encarnar simultaneamente duas posições distintas, como ilustrou preciosamente Zoe, personagem do romance Gradiva, de Wilhelm Jensen (1903/1987), analisado por Freud (1906-1907/1987). Encarnando o objeto do delírio de seu amigo de infância, Zoe dá-lhe a possibilidade de admitir uma nova posição subjetiva. E consegue fazê-lo colocando em cena seu duplo aspecto: como Gradiva - uma imagem em mármore que "perecera com o resto da população na destruição de Pompeia" (Freud, 1906-1907/1987: 28), uma fantasia pompeiana, um "verdadeiro fantasma" que habita um "outro mundo imaginário" (Freud, 1906-1907/1987: 26) - e como Zoe - uma moça portadora de um nome grego que significa "vida", um antigo amor de infância que soubera aceitar tão sabiamente "o papel de um fantasma redivivo por uma fugaz hora", "a corporificação da inteligência e da clareza" (Freud, 1906-1907/1987: 40). O duplo Zoe-Gradiva realiza um feito acessível a poucos: transitar entre vida e morte, de modo a alcançar uma nova posição que, em nossa leitura, não é outra que a posição própria à feminilidade, seja no homem ou na mulher.

A personagem de Jensen representa a própria estranheza da feminilidade, no sentido proposto por Freud (1919/1987), com o familiar e o oculto se apresentando simultaneamente. Tomando como base a leitura lacaniana da feminilidade, podemos afirmar que Zoe Bertgang encarnou um suplemento que lhe possibilitou a façanha de desconstruir a ideia delirante de seu amigo de infância. Por um lado, a personagem se situa em uma posição edípica, explorada por Freud. Por outro, quando Zoe consegue ultrapassar o "arqueptérix" e abandonar o pai-mãe da infância, dá um passo em direção a uma escolha objetal. Uma passagem do texto freudiano ilustra bem essa situação. Após a "cura" de Hanold, Zoe ameaça deixá-lo para se reunir ao pai, o que deixa o arqueólogo apreensivo. Diante disso, ele pergunta o que acontecerá a seu pai. Sagazmente, ela responde: "Provavelmente nada, não sou um exemplar indispensável de sua coleção zoológica. Se o fosse, talvez não tivesse tão insensatamente entregue a ti meu coração" (Freud, 1906-1907/1987: 46). Em seguida, utilizando-se de um ardil, no qual se misturam zombaria e amargura, Zoe alerta o noivo "a não imitar muito fielmente o modelo pelo qual ela o escolhera" (Freud, 1906-1907/1987: 46).

Podemos perceber que a história de Zoe indica a sua capacidade de reconhecer e subjetivar a castração, na medida em que consegue se colocar no lugar do Outro. Para tanto, porém, é necessário se deslocar de posição e reconhecer um gozo além do sexual, um gozo Outro ou, então, permitir-se ser não-toda subjetivável. Provavelmente por isso, Zoe pôde, tão delicadamente, "colocar o pé" no delírio de Hanold ou, em outras palavras, colocar-se no mesmo nível de sua estrutura delirante, encarnando a Gradiva e se transformando em uma rediviva. Suas palavras nos parecem particularmente ilustrativas: "Temos de nos curvar ao irremediável, [...] e há muito que me acostumei a estar morta" (Freud, 1906-1907/1987: 30). Assim, há muito que se situar na posição não-toda "a faz em algum lugar ausente de si mesma" (Lacan, 1972-1973/1988: 49). Porém essa é uma posição provisória que logo é acrescida de outra que representa seu nome - Zoe, que significa "vida". Zoe-Gradiva é, portanto, um significante da feminilidade quando encarna o duplo, pois a personagem jenseniana admite ser não-toda aderida à lógica fálica.

 

OLÍMPIA E ZOE: O OUTRO E O OUTRO

Se a posição feminina pressupõe, como notamos, situar-se no campo do Outro - tendo como referência a tese lacaniana de um gozo Outro que especifica o gozo feminino -, em contrapartida, a posição histérica é definida por uma adesão a um gozo fálico que torna problemática a constituição da alteridade. Conforme vimos apontando ao longo deste trabalho, o funcionamento histérico se inscreve em uma dimensão fálica na qual a diferença entre os sexos é anulada. Assim, a histérica mantém um campo relacional que se baseia em uma configuração narcísica, sendo assolada pela angústia de não ser capaz de se sustentar em uma posição de sujeito. Com isso, mantém uma adesão incondicional à lógica fálica, na tentativa de escapar ao não-todo, ao insignificável. Consequentemente, o sintoma histérico denuncia, em certo sentido, um impossível luto do falo, impondo, de um lado, uma difícil renúncia ao narcisismo e, de outro, um rasgo na constituição da alteridade.

A histérica tenta buscar o "próximo", mas acaba se deparando com o "semelhante, meu outro" (Julien, 1996: 42). A desautorização do Outro passa pela manutenção de uma lógica dual, especular, em que o meu e o seu coincidem. A permanência nessa situação indica a impossibilidade de se constituir um Eu integrado, ou melhor, revela um Eu rasgado, ferido, faltoso, o que provoca o horror. Há uma necessidade dilacerante de apagar os vestígios do Outro diferente, sob pena de ser confrontado com "uma estranha proximidade de mim mesmo" (Julien, 1996: 52), a qual pode revelar a impossibilidade de buscar a totalidade, a completude, confrontando-se com aquilo que não se pode nomear (Naves, 2003).

A obra literária "O homem da areia", de Hoffmann (1816/1993), é uma preciosa fonte para a interrogação dessa problemática. Enquanto o personagem central do romance de Jensen (1903/1987), Norbert Hanold, conseguiu aceder a uma nova posição, abandonando sua construção delirante desde o seu encontro com Zoe, o personagem de Hoffmann, Natanael, não teve a mesma sorte no encontro com Olímpia, sucumbindo ao delírio. Examinemos, então, o encontro de Natanael e Olímpia. Quem é Olímpia? Por que Natanael se encantou por ela? As respostas nos remetem à primeira visão de Olímpia. Natanael relata: "ela pareceu não reparar em mim, e aliás seus olhos pareciam imóveis, como se não vissem nada, era como se ela estivesse dormindo de olhos abertos" (Hoffmann, 1816/1993: 31). Nesse instante, Natanael se defrontou com sua própria imagem, com o idêntico. Olímpia não poderia reconhecê-lo em sua alteridade. Não havia nenhum risco de se confrontar com a diferença, que constitui ponto fundamental no funcionamento de Natanael. Olímpia não via nada, ou melhor, não via ninguém. Ela representa a negação completa do Outro.

Mas o que aconteceu com o personagem? Por que ficou preso aos olhos mortíferos de Olímpia? Analisando sonhos relatados por Freud (1900/1987) - o sonho da injeção de Irma e o sonho do Homem dos Lobos -, Lacan (1954-1955/1985) mostrou que, em ambos os casos, um dado olhar produz algo no sujeito que o encerra em um enigma, provocando, por um momento, uma experiência de dissociação. Ele afirmou que, nos dois casos, "há uma visão fascinante, a qual suspende por um tempo o sujeito numa cativação onde ele se perde" (Lacan, 1954-1955/1985: 222), assim desencadeando "uma revelação única e decisiva do sujeito, onde se concentra um não sei quê de indizível, onde o sujeito, por um instante, está perdido, estilhaçado" (Lacan, 1954-1955/1985: 223). Então, estabelece-se uma experiência única, que determina todo o destino pulsional do indivíduo, colocando em evidência a relação com um "outro absoluto para além de toda intersubjetividade" (Lacan, 1954-1955/1985: 223). Não estaria Natanael, naquele momento, vivenciando uma experiência desse tipo? A escolha por Olímpia não representaria seu terror em se deparar com a imperfeição e a incompletude?

Natanael se agarra a Olímpia como à sua última chance, literalmente. Essa chance representa, portanto, seu falo perfeito, o que lhe permite situar-se na lógica do todo, do infinito, do sempre possível. Assim, elege Olímpia em detrimento de Clara, pois Olímpia representa uma extensão do amor-próprio. E não foi em vão que Freud (1919/1987: 290) interrogou: "E por que o Homem da Areia aparece sempre como um perturbador do amor?". A impossibilidade de fazer o luto por um pai privador só deixa a Natanael Olímpia como saída. Nesse sentido, Olímpia é perfeita, pois possibilita a ele ignorar completamente a diferença, o que pode ser nitidamente percebido em suas palavras: "Mulher magnífica, celestial! Raio do além prometido do amor, espírito profundo no qual toda minha existência se espelha" (Hoffmann, 1816/1993: 44). Já Clara apontava a diferenciação dos sexos, funcionava de acordo com a lógica feminina, no não-todo, e encarnava a possibilidade do vazio, do enigma, da ausência, algo insustentável para Natanael.

Nessa leitura do conto de Hoffmann (1816/1993), Olímpia representa, para utilizar as palavras de Freud (1919/1987: 291), um "complexo dissociado" de Natanael. Do mesmo modo, podemos dizer que Zoe é uma parte dissociada de Norbert. Assim, Zoe-Gradiva e Olímpia-Clara são figuras femininas que permitem pensar em uma aproximação entre feminilidade e histeria, são figuras que apresentam um funcionamento que justifica conceber uma relação entre histeria e feminilidade. Ambas se constituem por uma via pulsional que extrapola a apreensão do significante. Destarte, tanto a feminilidade como a histeria passam pela mediação de um Outro absoluto, mas o fazem por caminhos diversos e, embora partam de um mesmo princípio, acabam por apresentar desdobramentos diferentes.

Como vimos, a figura Zoe-Gradiva encarna esse Outro de modo a não se render ao enigma. Portanto, a feminilidade pressupõe o enfrentamento do irrepresentável, sem, contudo, sucumbir a ele; pelo contrário, partindo dele a mulher é capaz de abrir possibilidades de encontro com a alteridade em um "brilhante avançar", como ensina o significado do nome Gradiva. De certo modo, a histérica, na sua construção sintomática, interroga pela via do corpo o próprio enigma da feminilidade.

Assim, mesmo apresentando o "signo anunciador" da morte da perfeição fálica, a histérica acaba por se identificar com o objeto mais de gozar, desenvolvendo, no final das contas, uma recusa em se confrontar com o enigma, o que leva a uma identificação maciça com a falta. Desse modo, ela empreende a busca de um saber impossível que, longe de lhe possibilitar o reconhecimento do Outro, torna-a refém do desejo do Outro. Como consequência, ao fugir do irrepresentável, a histérica acaba por se dirigir implacavelmente para ele.

Nessa perspectiva, o sintoma histérico representa menos a busca de um gozo sexual ou, na leitura freudiana, de um conflito na atuação desse gozo, do que uma vivência radical de um excesso de gozo inapreensível, assim denunciando uma falha na simbolização do corpo.

Porém, por mais paradoxal que seja essa afirmação, a histérica, embora enredada nessa lógica das intensidades pulsionais, não se contenta em encarnar esse irrepresentável e o escancara. Daí podermos perguntar se a ascensão da feminilidade não passaria por um processo de histericização. No entanto, é preciso avançar: da identificação com o desejo do outro para o reconhecimento do impossível do desejo do Outro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Este artigo é um recorte da tese de doutorado intitulada Para além do desejo. Um estudo sobre histeria e pulsão de morte, apresentada em 2007 na Universidade de Brasília, sob a orientação da Profa. Dra. Tânia Cristina Rivera.

2 Esclarecemos que o não reconhecimento da castração não é tributário apenas da neurose histérica. A neurose obsessiva também coloca em cena um vínculo forte com a pulsão de morte ligada, principalmente, ao papel mortífero do Supereu na constituição desta neurose. No entanto, neste trabalho, optamos por nos centrar na especificidade da histeria em suas relações com a feminilidade, pautados por razões históricas e conceituais, pois a histeria, desde Freud, revela, pela via do corpo, as marcas da força pulsional.

 

 

Recebido em 03 de outubro de 2012
Aceito para publicação em 30 de novembro de 2012