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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

A difusão da psicanálise e sua inserção nos hospitais gerais

 

The diffusion of psychoanalysis and its insertion in general hospitals

 

 

Maíla Do Val MachadoI; Daniela Sheinkman ChatelardII

IEspecialista em Teoria Psicanalítica (Universidade Federal de Minas Gerais); Mestre em Psicologia Clínica e Cultura (Universidade de Brasília)
IIPsicanalista; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia e do Programa de Psicologia Clínica e Cultura (Universidade de Brasília); Doutora em Filosofia (Universidade de Paris VIII)

 

 


RESUMO

Os principais objetivos deste artigo são apresentar um panorama sobre o início da psicanálise nos hospitais gerais do Brasil e discutir ideias sobre o lugar do psicanalista nesses espaços.

Palavras-chave: psicanálise; hospital geral; psicanalista; função.


ABSTRACT

The main objective of this paper is to present an overview about the beginnings of psychoanalysis in general hospitals in Brazil and discuss ideas about the place of the psychoanalyst in these spaces.

Keywords: psychoanalysis; general hospital; psychoanalyst; function.


 

 

Hoje presenciamos a crescente difusão da psicanálise nas mais diversas áreas, tais como a hospitalar, jurídica, educacional e artística. Esse fato exige do analista formalizar teoricamente a prática a partir dos próprios fundamentos do campo psicanalítico. Reinventar a psicanálise para além dos consultórios é uma demanda imposta pela cultura, visto que cada vez mais os psicanalistas são convocados a intervir nos diversos campos do saber. Dessa forma, o esforço do psicanalista em recriar a psicanálise é necessário e vital para o avanço da sua clínica. O analista precisa criar seu espaço, seu lugar, sua função nos diversos espaços da sociedade.

Os principais objetivos deste artigo são apresentar um panorama sobre o início da psicanálise nos hospitais gerais do Brasil e discutir algumas ideias sobre o lugar do psicanalista nesses espaços. Para desenvolver essas questões, inicialmente este artigo apresenta uma discussão sobre o início da psicanálise nos hospitais gerais do Brasil. Em seguida, apresenta, à luz da teoria freudiana, algumas perspectivas sobre a difusão da psicanálise nos mais diversos campos do saber. Posteriormente, propõe, a partir da teoria lacaniana, uma discussão sobre a psicanálise em extensão e em intensão. Essa discussão é fundamental para sustentarmos a inserção da psicanálise nos hospitais e para refletirmos sobre o lugar do psicanalista nesses locais.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE O INÍCIO DE UMA PRÁTICA: A PSICANÁLISE EM HOSPITAIS GERAIS DO BRASIL

Sabe-se que, ao longo de um desenvolvimento histórico, o fenômeno psíquico passou a ganhar espaço nas instituições hospitalares. Diante das perspectivas deste artigo, surge uma questão: como se deu a inserção da psicanálise nos hospitais gerais do Brasil? Inicialmente recorreremos a experiências de alguns analistas precursores da prática da psicanálise nos hospitais gerais brasileiros. Após essa exposição, investigaremos alguns desenvolvimentos na obra de Freud e no ensino de Lacan que autorizaram o psicanalista a sair dos consultórios e atuar nos hospitais.

O crescimento da prática psicanalítica nos hospitais gerais do Brasil ocorreu a partir da última década do século XX. Hoje, a presença do psicanalista na instituição hospitalar se torna cada vez mais fundamental. Com isso, há um aumento do número de publicações na área, que é um dos assuntos mais correntes em congressos. No entanto, é importante mencionar a dificuldade que tivemos para encontrar fontes bibliográficas sobre o início da psicanálise nos hospitais brasileiros. Constata-se que as publicações se voltam, sobretudo, para a formalização teórica e prática da psicanálise no contexto hospitalar, assim como para a função do analista nesses locais. No que tange à história do nascimento da psicanálise nos hospitais gerais do Brasil, as publicações são bastante restritas.

Dada essa dificuldade, foi preciso entrar em contato com alguns profissionais conceituados na área para que pudéssemos investigar as origens da psicanálise na instituição hospitalar. Conseguimos duas importantes referências sobre o tema, nas quais seus autores mostram que iniciaram suas práticas na década de 1970. A primeira foi indicada no texto Relatos sobre o nascimento de uma prática: a psicanálise em hospital geral (Alberti & Almeida, 2005), em que o início da experiência de duas psicanalistas, Sonia Alberti e Consuelo Pereira de Almeida, é apresentado. A segunda referência foi outra psicanalista precursora na área, Marisa Decat de Moura (2002), que começou seu trabalho no Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte.

A experiência de Sonia Alberti e Consuelo Pereira de Almeida teve início na década de 1970, no Rio de Janeiro. Nessa época, a possibilidade da psicanálise nos hospitais ainda não era reconhecida. A partir do relato da inserção da psicanálise em dois hospitais, as autoras mencionam as dificuldades encontradas para a sustentação desse trabalho no contexto hospitalar. As resistências eram tanto por parte da instituição quanto por parte dos próprios psicanalistas, que recusavam a autenticidade de um trabalho analítico fora do "setting analítico" - enquadramento que define o número de sessões, a duração do tempo de cada uma e o mobiliário da sala de atendimento. Essa era uma regra instituída pela IPA (International Psychoanalytical Association), a sociedade psicanalítica fundada por Freud, que existe até hoje em âmbito internacional. Lacan já fez parte dessa Associação, mas foi desligado por ser contra algumas regras impostas por ela - que, além disso, impunha que apenas médicos poderiam fazer a formação psicanalítica. Caso o candidato não fosse médico, somente poderia clinicar sob o controle de um colega médico, mesmo após sua formação. Nesse sentido, os profissionais do hospital também não tinham ideia da possibilidade de um psicólogo sustentar um atendimento a partir da psicanálise.

Diante de todo esse contexto, era inviável pensar a psicanálise nos hospitais, ainda mais sustentada por psicólogos com formação psicanalítica. No entanto, para alguns analistas, essa questão tornou-se um desafio e, ao mesmo tempo, uma aposta. Eles começaram a trabalhar em hospitais e, para sustentar sua prática, procuravam supervisão com psicanalistas fora da instituição e trabalhavam os casos clínicos da mesma forma que fariam com atendimentos em consultório. Observa-se que, desde o início, havia uma preocupação com a formação dos analistas, pois essa seria a via para sustentar essa aposta.

Alberti e Almeida (2005) relatam suas experiências a partir de dois hospitais gerais, o Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (HSE) - início do trabalho em 1976 - e o Instituto de Pueri cultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG) - início do trabalho em 1977.

Com base em suas experiências, Alberti e Almeida (2005) destacam três tempos da inserção do trabalho analítico. O primeiro tempo foi chamado de "Entre a psicologia e a psicanálise - um ideal?". Esse período foi marcado pela entrada da psicologia e da psicanálise nos hospitais, mas sob submissão à clínica médica. Havia uma tentativa de responder a todas as demandas médicas, que valorizavam dados que pudessem ser quantificados.

A psicanálise aparecia de maneira muito tímida e sob a roupagem da psicologia. Havia uma indefinição sobre o lugar da clínica psicanalítica no hospital, atrelada a uma falta de formalização teórica sobre essa prática. A psicanálise era considerada externa ao trabalho no contexto hospitalar, ou seja, ela só poderia ser realizada nos consultórios. Então, para quem trabalhava nos hospitais e queria aplicar a psicanálise, esta funcionava como um ideal não legítimo, uma vez que os analistas formadores separavam a clínica psicanalítica do trabalho na instituição.

O segundo tempo é chamado de "Da psicologia à psicanálise - que articulação?". Foi marcado pela constituição e estruturação do Serviço de Psicologia, que deixa de ser subordinado à clínica médica. Com isso, iniciou-se a realização de estágios curriculares. Apesar dessas conquistas, Alberti e Almeida (2005: 64) afirmam que "tínhamos tantas tarefas e demandas a responder que o mais precioso nesse trabalho, a clínica do sujeito no hospital, ficou em segundo plano. A ordem geral era produzir, não importando de que maneira".

Segundo as autoras, os dois primeiros tempos desse trabalho demonstram a dificuldade da inserção da psicologia no hospital geral, assim como a necessária elaboração das condições para um trabalho possível. Alberti e Almeida (2005), ao reconstituir a história do trabalho da psicologia no Hospital Universitário Pedro Ernesto - Unidade Clínica dos Adolescentes (UCA), identificam que os psicólogos deste hospital passaram pelas mesmas dificuldades que elas enfrentaram.

No caso da UCA, a grande mudança ocorreu no início da década de 1990. As psicólogas presentes nessa época tiveram a iniciativa de receber colegas que pudessem desenvolver um trabalho clínico baseado na psicanálise, incrementaram suas relações com a universidade a fim de sustentar uma articulação teórico-prática de suas pesquisas. Além disso, todas as psicólogas faziam análise. Nesse contexto, foi possível a legitimação de uma estrutura com um referencial teórico - a psicanálise - e um vínculo acadêmico. Assim, "os atendimentos sustentados na relação com a causa freudiana formaram a base de um trabalho que não mais identificava a psicanálise com o ideal extrainstitucional" (Alberti & Almeida, 2005: 66).

O terceiro tempo da inserção do trabalho analítico foi chamado de "Um modelo clínico". Esse período foi marcado pela definição de um referencial teórico que abrangesse a experiência clínica: o psicanalítico. Para isso se tornar possível, houve uma persistência na formação analítica dos psicólogos, assim como em suas análises pessoais. Além disso, os psicanalistas manifestaram um desejo de incrementar um diálogo com a universidade, visando construir uma articulação entre teoria e prática que sustentasse uma nova forma de abordar as demandas institucionais. Assim, observa-se que a delimitação do referencial teórico e a preocupação com a formação analítica foram condições para a legitimidade do trabalho analítico no hospital.

Marisa Decat de Moura (2002) é outra referência que contribuiu para a instituição da psicanálise nos hospitais gerais do Brasil. Em 1978, ela recebeu um convite para dar aulas em um curso de "Casal Grávidos", no Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte. Após esse convite, a psicanalista recebeu outra proposta para uma atuação mais próxima ao corpo clínico através da participação em um curso que era oferecido a todos os médicos residentes do hospital. Suas atividades na instituição hospitalar começaram a partir daí e, desde esses trabalhos até os dias de hoje, ela faz parte da equipe. Segundo Moura (2002), seu trabalho começou a se desenvolver nas diferentes clínicas do hospital com a construção de um laço transferencial com a equipe. Para a autora, essa construção é essencial para a inserção e a prática do psicanalista na instituição hospitalar.

De acordo com a autora (Moura, 2002), o início da sua prática teve como referência a seguinte pergunta: o que é um psicanalista? Essa é uma questão fundamental para o analista que se insere no hospital, já que, nesse espaço, seu trabalho se realiza em ambiente diferente do setting convencional. Essa era uma questão bastante polêmica, pois a presença da psicanálise nos hospitais era recusada tanto pelos médicos quanto pelos próprios psicanalistas, que não aceitavam a psicanálise fora do enquadre clássico. Observa-se que esse ponto controverso precisou ser enfrentado tanto por Sonia Alberti e Consuelo Pereira de Almeida quanto por Marisa Decat de Moura.

Como não havia uma formalização dessa prática - que ainda estava em construção -, a presença do psicanalista no hospital era da ordem de uma aposta: "a psicanálise deve estar onde há um ser humano em sofrimento. Nossas reflexões se direcionaram, então, para a clínica da urgência subjetiva e sobre o psicanalista: de qual lugar ele opera e o que mobiliza seus atos" (Moura, 2002: s/p). A autora afirma ainda que foi a partir do ensinamento de Lacan que algumas de suas questões foram respondidas e, ao mesmo tempo, outras questões pertinentes à prática surgiam.

Ao longo desse percurso, criou-se a Clínica de Psicologia e Psica nálise do Hospital Mater Dei, que ainda continua promovendo cursos de formação, jornadas e publicações. A Clínica atua em diversos serviços e setores oferecidos pelo hospital, tais como: Centro de Terapia Intensiva de Adulto, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, Pronto Socorro, Serviço de Hemodiálise, Clínica de Geriatria, Clínica de Ginecologia, entre outros.

 

A DIFUSÃO DA PSICANÁLISE: PERSPECTIVAS FREUDIANAS

Com o objetivo de avançar na discussão sobre a inserção da psicanálise nos hospitais, retomaremos algumas reflexões na obra de Freud e no ensino de Lacan que autorizaram o psicanalista a sair dos consultórios e atuar nos hospitais. Estas demonstram o desejo dos autores de reconhecimento da psicanálise e sua difusão nos diversos campos do saber.

Freud, integrado à construção da teoria psicanalítica, declarava o desejo de reconhecimento da psicanálise e a esperança de que, um dia, esta pudesse se difundir nos diversos campos do saber. Nesse sentido, ao longo da obra freudiana, podemos recorrer a alguns textos que apresentam essa perspectiva, tais como: "Linhas de progresso na terapia psicanalítica" (Freud, 1919a/1996), "Sobre o ensino da psicanálise nas universidades" (Freud, 1919b/1996), e "Explicações, aplicações e orientações" (Freud, 1933/1996).

Em "Linhas de progresso na terapia psicanalítica", Freud (1919a/1996), em um momento em que o mundo se encontrava devastado pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, preocupa-se em abrir os caminhos para a psicanálise. Àquela época, ele diz que, futuramente, seriam criadas instituições que designariam psicanalistas para tratar uma considerável massa da população. Para isso, seria necessário o trabalho do analista de adaptar as técnicas às novas condições, mas enfatiza que os princípios psicanalíticos deverão ser mantidos. Ele diz: "qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir [...] os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa" (Freud, 1919a/1996: 181). Portanto, defende a importância de os psicanalistas abrirem novos espaços para a clínica psicanalítica, e de que os princípios sejam mantidos.

No texto "Sobre o ensino da psicanálise nas universidades", Freud (1919b/1996), ao tratar esse tema, diz que nas investigações mentais e nas funções do intelecto a psicanálise segue seu próprio método específico. Dessa forma, afirma que a aplicação desse método não se restringe ao campo dos distúrbios psicológicos, pois amplia-se aos problemas ligados à arte, à filosofia e à religião. Além disso, Freud declara que a psicanálise já produziu esclarecimentos sobre temas como "a história da literatura, a mitologia, a história das civilizações e a filosofia da religião" (Freud, 1919b/1996: 188).

Em "Explicações, aplicações e orientações", Freud (1933/1996), ao discutir sobre as aplicações da psicanálise, diz: "Devo mencioná-lo porque é da maior importância, é tão pleno de esperança para o futuro, talvez seja a mais importante de todas as atividades da análise. Estou pensando nas aplicações da psicanálise à educação, à criação da nova geração" (Freud, 1933/1996: 145).

Atualmente, percebe-se que o futuro vislumbrado por Freud já é o nosso presente, uma vez que os psicanalistas são convocados a intervir nos diferentes campos, e a psicanálise se torna cada vez mais objeto de curiosidade de profissionais não analistas. Hoje, vê-se que muitos se interessam pelo que a psicanálise pode fornecer tanto na clínica quanto em termos de leitura do cotidiano e do mundo.

O psicanalista, ao atuar em diferentes lugares, se vê às voltas com as diversas formas de demanda e de sintoma - demandas que muitas vezes não se definem como demandas de análise ou mesmo de tratamento, e sintomas que não se enquadram nos recortes das estruturas clínicas, nem nas técnicas dos primórdios da psicanálise freudiana - que exigem dele reinterrogar sua prática. Dessa forma, o analista passa a questionar as possibilidades e os limites da sua prática, e o que representa sua eficácia. Quando a psicanálise é convocada a intervir nos diversos campos do saber, depara-se com novos desafios, o que exige a construção de novos dispositivos clínicos. Mas isso sem deixar de lado os princípios da psicanálise, pois é a partir deles que se faz possível tal construção.

Cada vez mais o psicanalista oferece sua presença na sociedade de formas diferentes e em lugares que não se restringem ao consultório. A história recente do movimento psicanalítico no Brasil registra, a partir da última década do século XX, o interesse crescente dos psicanalistas pelo trabalho nas instituições de assistência à saúde. Ao mesmo tempo, também cresce o interesse das instituições por esses profissionais. O hospital geral, foco central desta pesquisa, é um desses lugares onde a presença do analista tem se tornado fundamental.

 

A PSICANÁLISE EM INTENSÃO E A PSICANÁLISE EM EXTENSÃO

Seguindo a perspectiva freudiana de manter viva e autêntica a psicanálise no mundo, Lacan se preocupava com os rumos que a psicanálise tomava. Essa preocupação aparece em alguns textos, tais como: "Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956" (Lacan, 1956/1998) e "A psicanálise e seu ensino" (Lacan, 1957/1998). Nestes textos, Lacan expõe críticas tanto à técnica psicanalítica quanto aos embaraços conceituais empreendidos, após a morte de Freud, pelos dirigentes da instituição por este criada, a IPA. Não é objetivo desta pesquisa analisar os detalhes da excomunhão de Lacan da IPA; apenas destacamos que o alvo inicial de sua crítica ao extravio a que foram conduzidos os analistas dessa Instituição voltava-se, sobretudo, para a ênfase na metapsicologia do Eu. As ideias lacanianas vão na contramão do fortalecimento egoico promovido pela IPA.

Alguns anos após sua saída da IPA, Lacan funda a École Française de Psychanalyse (EFP), em 1964, propondo a criação de novas regras. A fundação de sua Escola remete ao desejo de criar um espaço que tivesse as condições necessárias à transmissão da psicanálise. A ideia original da Escola representa um trabalho que restaure, no campo aberto por Freud, a lâmina cortante de sua verdade e que "reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo; que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego" (Lacan, 1971/2003: 235). O movimento que Lacan nomeia de "retorno a Freud" exigiu um procedimento rigoroso e sistemático de reordenamento epistêmico da teoria psicanalítica e de esclarecimento dos fundamentos da ética que lhe é própria.

Com o objetivo de assegurar a autenticidade da psicanálise e de garantir sua efetivação, Lacan (1967/2003) escreve a "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola". Nesse texto, ele cria operadores na formação do analista que coexistem com a própria psicanálise e seu emprego na civilização, lançando dois momentos de junção: "psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela" (Lacan, 1967/2003: 251). Dessa forma, o dispositivo do passe, que também é uma invenção lacaniana, captura a amarração da intensão de cada um que pratica a psicanálise com a extensão desta prática no mundo: "é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão" (Lacan, 1967/2003: 261).

É importante destacar que o dispositivo do passe (Lacan, 1967/2003) é a passagem que marca ao mesmo tempo o fim de uma análise e a opção feita pelo analisando de se tornar psicanalista. O passe é o ato inaugural de um analista recém-surgido de uma análise. Para isso, o analisante deve formalizar o saber analítico que adquiriu a partir de sua própria experiência analítica, aplicando a psicanálise ao que se passou no seu percurso. É da experiência analítica que um analista advém.

Lacan (1967/2003), ao criar o passe, refere-se ao desejo do analista como uma condição para essa passagem. A mudança de psicanalisante a psicanalista é marcada pela destituição subjetiva, que é a queda do objeto que dava suporte ao sujeito em sua fantasia. Nesse processo, observa-se que "a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser. Nesse des-ser, desvela-se o inessencial do sujeito suposto saber, donde o futuro psicanalista entrega-se ao α γ α λµa da essência do desejo, disposto a pagar por ele em se reduzindo, ele e seu nome, ao significante qualquer" (Lacan, 1967/2003: 259). Assim, o que Lacan nomeia como desejo do analista é, em última instância, um efeito de análise. Um lugar vazio e operador de uma análise, que o analista oferece ao analisante, um espaço para que aí possa se instalar seu desejo.

Para que a psicanálise possa estar presente no mundo e nas instituições, Lacan organiza esse movimento "em extensão", expondo sua articulação com a psicanálise "em intensão". A recomendação que se apresenta é a de que a psicanálise em extensão - enquanto prática - depende fundamentalmente do que ocorre na psicanálise em intensão, ou seja, da responsabilidade do analista no que diz respeito à sua análise didática.

Lacan (1967/2003) especifica condições do uso da psicanálise como experiência original do mundo. A partir da concepção de passe, intensão e extensão, ele revela a importância da inclusão da intensão e da singularidade do sujeito na extensão da prática psicanalítica. Trata-se aí de como assumir o risco de não distorcer os princípios psicanalíticos e de manter aceso o desejo daqueles que praticam a psicanálise. Essas são condições essenciais para que determinada práxis seja analítica.

Seguindo essas ideias, a questão volta-se, sobretudo, para a implicação do analista com as especificidades da psicanálise que, de fato, envolvem o desejo do analista. O que se apresenta nessa formulação é que o analista opera a partir de um lugar que não é um espaço geográfico, mas um lugar enquanto função, um desejo, um discurso. Essa concepção lacaniana vai na contramão da ideia de alguns analistas que, a partir do texto de Freud (1913/1996) "Sobre o início do tratamento", transformam as condições da análise em regras para garantir a execução da prática, as quais devem ser cumpridas por meio de um contrato: o rigor quanto ao número de sessões semanais, a regularidade, tempo exato de cada sessão e o rigor quanto ao uso do divã.

O conjunto de normas que esses analistas impõem e que permitiriam a intervenção analítica se convencionou chamar de setting analítico. Essas normas deveriam ser rigorosamente seguidas para que se pudesse garantir a legitimidade e o bom funcionamento da psicanálise. Nesse caso, o que definiria o dispositivo freudiano não seria a única regra da psicanálise, a associação livre, mas, entre outras coisas, o mobiliário, o horário, o tempo fixo das sessões.

Lacan retira a psicanálise do âmbito das regras para situá-la na esfera da ética. Ele extingue a padronização, ou seja, o setting analítico é rompido para que o analista possa manejar a sessão de acordo com a única regra imposta ao analisante, a associação livre. A partir daí, Lacan introduz um modo novo de conceber o lugar para a prática de uma psicanálise em que o analista estabelece um modo peculiar, definido pelo discurso analítico, de relacionar-se com o analisante no trabalho de análise. Elia (2000), ao discutir a extensão social da psicanálise, afirma que Lacan situou o lugar da prática psicanalítica como estrutural e chamou-o de dispositivo analítico, o qual tem, sobre seu antecessor setting, a imensa vantagem de discernir o plano imaginário (físico, espacial, mas efetivamente marcado por critérios econômicos e ideologicamente construídos) da situação analítica do plano estrutural, que, como tal, não depende de uma configuração particular e circunstancial (transformada em necessidade técnica) (Elia, 2000: 29).

Santos e Elia (2005), ao tratarem sobre a psicanálise nas instituições, afirmam que as condições para a experiência psicanalítica se distanciam da exigência rigorosa de uma configuração clássica do set ting. Independentemente do ambiente físico (consultório, enfermaria, ambulatório, etc.) em que a experiência ocorra, o exigível é que um determinado espaço discursivo se estabeleça entre um analista e um analisante, tomado como sujeito da palavra e do inconsciente.

Elia (2000) identifica características que marcam a ortodoxa configuração do dispositivo analítico como um consultório particular. A ideia de que tal dispositivo só pode ser um consultório, e não outra coisa, é um modo de conceber o dispositivo como restritivo e imaginarizante, interditando a prática analítica em outros espaços de sofrimento psíquico. Essa característica restritiva estabelece o setting clássico como um critério e uma condição para a psicanálise. Isso significa que se exclui, do campo de aplicação clínica da psicanálise, qualquer quadro de sofrimento psíquico que não se adéque aos modos de encaminhamento a um consultório.

Ao tomarmos como referência a visão lacaniana de que as condições de possibilidades da psicanálise não se garantem pelo setting ideal, consideramos que a psicanálise ultrapassa as fronteiras de um consultório bem mobiliado. Nesse caso, o contrato psicanalítico se funda na regra fundamental: o paciente associa livremente, e o analista presta atenção flutuante. Se o inconsciente não está nem dentro nem fora, mas onde o sujeito fala, o manejo do discurso do analisante, aquele que demanda um saber, pode também acontecer quando ele está em um leito do hospital. Assim, conforme afirma Moretto (2001: 59): "não podemos estar tratando do setting como espaço real porque ele é virtual, ele é psíquico, ele é, na verdade, um artifício, uma construção do psicanalista para que a análise se dê". É sob essa perspectiva que Lacan rompe com a padronização para introduzir os dispositivos analíticos, ou seja, as condições para que uma psicanálise ocorra.

 

A INSERÇÃO DO PSICANALISTA NO HOSPITAL GERAL

Moura (2002), ao falar sobre a prática do psicanalista na instituição hospitalar no Brasil, afirma que, a partir do momento em que o lugar do analista não é definido pelo espaço físico, mas por aquilo que é sua função, o analista é autorizado a sair do enquadre convencional. Essa função depende da implicação do próprio analista com a psicanálise, que deve ocorrer em qualquer lugar onde ele atue - ou seja, sua função não depende da localização geográfica. A partir daí, o analista recebe como efeito sua inserção também no hospital, com a exigência de um rigor ético de formalização permanente de sua prática, assim como com a necessidade de interlocução com seus pares.

Lacan (1967-1968/2006: 13) menciona que "a função do psicanalista não é algo natural, que ela não existe por si só no que tange a atribuir-lhe seu status, seus hábitos, suas referências e, justamente, seu lugar no mundo". A partir dessa ideia, pode-se pensar que o lugar do psicanalista no hospital precisa ser construído de modo que ele possa operar, mas é uma construção que deve ser permanente e jamais concluída. Mathelin (1999), ao tratar do lugar do psicanalista em um serviço de neonatologia - apesar de a autora abordar um serviço específico do hospital, é possível utilizar sua ideia para refletirmos sobre esse lugar no hospital geral -, diz que, nesses espaços, o lugar do analista deve ser recriado a cada dia, de forma "flutuante e maleável" (Mathelin, 1999: 89). O analista se posiciona de forma diferente diante do sujeito ao qual se dirige e do momento em que uma fala pode ser direcionada a ele.

Parte integrante da equipe, ele [o psicanalista] tem que ser por vezes também exterior, para remeter aos membros da equipe ou aos pais uma imagem, uma escuta distanciada. Em outros momentos, junto da incubadora, se os visores se puserem a apitar, ele ajudará da melhor forma possível a equipe, na medida de suas possibilidades. Outra vez ainda, ficará ao lado da equipe para acompanhar uma criança morrendo. É preciso poder sempre se mexer de um lugar a outro, construir um espaço onde o jogo seja possível a partir dessa disponibilidade (Mathelin, 1999: 89).

A concepção da construção permanente do lugar do analista no hospital também nos remete à noção de que o psicanalista não é um especialista em hospitais, uma vez que ele não visa atingir um saber completo e exclusivo de determinada área. No momento em que atua na instituição hospitalar, o analista trabalha com situações específicas que exigem toda uma reflexão acerca da maneira pela qual ele vai operar em cada circunstância. No entanto, isso não quer dizer que o analista se torne um especialista em hospitais, pois a psicanálise é apenas uma e não aborda um saber completo e previamente estabelecido, a ser verificado ou refutado. O psicanalista trabalha com o saber inconsciente, que não é apreensível por uma mera aplicação de saber acumulado, pois que se apresenta de forma única e particular, saber inconsciente a ser lido segundo uma estrutura que não coincide com o saber universal e genérico da ciência clássica ou de uma especialidade. Daí o princípio freudiano de tomar cada caso como se fosse o primeiro.

O psicanalista não é um especialista, assim como a psicanálise não é uma especialidade médica, psicológica, de crianças ou de adultos, nem se generaliza como uma prática própria do consultório particular. Isso significa que não é do lugar de especialista que o psicanalista desenvolve seu trabalho na instituição, mas de um lugar que interroga qualquer saber que se proponha como prévio ou de especialista, que exclui o sujeito do inconsciente. A função do analista na direção do tratamento é justamente favorecer esse sujeito que surge na descontinuidade do discurso do próprio analisante. A psicanálise, por propiciar o resgate desse sujeito, que é particular a cada um, não trabalha com o saber prévio.

Nesse ponto, a ideia da construção constante do lugar do analista no hospital também tange ao desejo do psicanalista: lugar vazio, esvaziado de saber imperativo e operador de análise que o analista oferece ao analisante. Ao assumir essa posição de lugar vazio, o analista se coloca como objeto para um outro, viabilizando a palavra para que daí o sujeito possa advir. No contexto hospitalar, essa posição do analista aparece de forma bastante particular, pois ela é diferente daquela ocupada por todos os outros profissionais do hospital, que se preocupam em preencher ou apaziguar o espaço vazio. Esses profissionais, ao contrário dos psicanalistas, constroem seu lugar a partir de uma especialidade que exige normas, protocolos e saberes universais.

A título de exemplo, recorro à prática em um hospital geral onde o serviço de psicologia acolhe os familiares dos pacientes internados no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) - em alguns casos, esse acolhimento pode ser transformado em atendimento. Um familiar diz que inicialmente não entendia qual o motivo de o analista ficar ali no CTI, todos os dias, no horário de visita. Diz ao analista:

Então, eu ficava pensando: o que será que você faz aqui? Eu não te via atendendo os pacientes. Observava que várias pessoas se aproximavam de você para falar alguma coisa. Eu não sabia do que se tratava, apenas notava que alguns demoravam mais, outros menos. Até que um dia resolvi me aproximar de você e percebi que ali eu podia falar sobre esse momento tão doloroso que estou passando. Com os outros profissionais, são sempre eles que falam. Eles falam sobre o quadro clínico da minha mãe e eu preciso estar sempre preparado para ouvi-los.

O familiar menciona ainda algumas diferenças entre o psicanalista e os outros profissionais:

Com você é diferente, eu posso falar e você me escuta. Diferente das outras pessoas que trabalham aqui, você não tem nada pendurado no pescoço [ele se referia ao estetoscópio, aparelho utilizado por médicos, enfermeiros e fisioterapeutas], não anda com nenhum material e não chega perto de mim com mil explicações. Você não tem nada. No início achava isso estranho. Hoje sua presença me alivia porque você me escuta.

A partir deste relato, observa-se que, inicialmente, a pessoa do analista representava, para o familiar, mais um profissional do hospital. Isso significa que, naquele momento, não havia um psicanalista ali, pois seu lugar não está pronto a priori, é preciso construí-lo de maneira que ele possa atuar. Essa construção pauta-se na presença de um analista diante de um sujeito dividido.

No caso citado, nota-se que, diferentemente dos outros profissionais, o analista ocupava um espaço vazio, não portava materiais hospitalares nem um saber prévio a ser comunicado ao familiar. Esse lugar vazio tem como direção causar o desejo do sujeito, permitindo o surgimento do discurso do analista, a circulação da palavra, a autorização da existência da subjetividade e um lugar para escuta das particularidades. A partir da presença do analista, tem-se a possibilidade de uma queixa transformar-se em uma demanda direcionada àquele psicanalista, criando uma via para que o sujeito se questione sobre seu posicionamento diante do real, da incompletude, da morte.

Nesse sentido, a presença do psicanalista em um hospital inclui a imprevisibilidade, a surpresa, o real como furo. Essa clínica vai trabalhar justamente com aquilo que a medicina tenta excluir e não se propõe a tratar, mas que retorna e insiste. Temos aí a possibilidade de transmissão de um saber outro sobre o sofrimento humano que difere do saber da medicina, uma vez que os médicos se deparam com o fracasso em seu saber quando não há mais recursos para encobrir o real que insiste em aparecer. Com isso, abre-se uma via para a interlocução entre psicanálise e medicina.

No contexto hospitalar, quando o sofrimento psíquico aparece, há um direcionamento dessas questões para o analista. O que se dirige ao psicanalista é uma certa suposição de saber e, se ele souber sustentar esse lugar, uma via de transferência pode surgir; o que ele diz pode ter efeito de intervenção.

O trabalho do analista no hospital abrange tanto o paciente quanto a instituição, a equipe multiprofissional e os familiares. Isso não significa que o analista vai tornar-se psicanalista desses profissionais, mas que o saber que será suposto ao analista implica as diversas demandas dirigidas a ele que poderão ter efeitos tanto para sustentar a transferência com a equipe quanto para a transmissão da psicanálise.

A escuta do analista junto aos profissionais visa propiciar uma abertura para a subjetividade e não a construção de uma relação terapêutica com eles. É por estar presente em um momento em que a subjetividade pode ser reconhecida que a intervenção do analista pode ter seu efeito. Vale ressaltar que, no hospital geral, esse lugar de escuta não é ocupado apenas pelos psicanalistas, mas também pelos outros profissionais da equipe. No entanto, é importante reconhecer que o analista possui uma escuta diferenciada ao considerar e sustentar a existência do inconsciente onde o sujeito se produz. Essa escuta não tem como referência uma compreensão que ofereça respostas ou se responsabilize por promover uma adequação às normas ou aos protocolos que fazem parte do cotidiano do contexto hospitalar.

No entanto, uma das maiores dificuldades dos psicanalistas que trabalham nos hospitais é escutar o sujeito. Muitas vezes eles são atropelados pela via humanista, que é representada por profissionais que ficam presos a certo ideal de bem a ser alcançado por um paciente. Esse pode ser um princípio da instituição que escamoteia a singularidade em função do ideal igualitário a ser atingido. Essa condução tem como efeito uma escuta surda pautada nos referenciais da instituição.

Lacan indica que qualquer tratamento, mesmo que recheado de conhecimentos psicanalíticos - tal como a escuta do sujeito -, reduz-se a uma psicoterapia se não assume o rigor ético psicanalítico. A ética da psicanálise tem como referência o desejo e não o atendimento da demanda exigida pela institucionalização. Na prática hospitalar, muitas vezes, cabe ao psicanalista o grande desafio de mostrar aos outros profissionais que há um sujeito que opera além do sujeito da ciência - e que determina o funcionamento psíquico -, mas que parte necessariamente desse campo.

A princípio, a concepção da existência de um saber que não pode ser controlado nem comandado pode parecer estranha ao campo da medicina. Todavia, o que se observa no hospital é que a equipe, justamente por vivenciar experiências em que não se consegue ter o domínio total do sujeito - situações que geralmente causam muita angústia na equipe -, passa a ter grande curiosidade e interesse por esse estranho que escapa a toda tentativa de controle. Ela observa que, paralelamente a uma busca de soluções imediatas para seus impasses e problemas orgânicos, o paciente é um ser humano desamparado, assustado e insatisfeito.

É importante ressaltar que a entrada do psicanalista no hospital não implica que sua inserção foi, de fato, efetuada. Dito de outra forma, a inserção do analista não depende da estruturação do serviço de psicologia nem de um quadro de vagas a ser ocupado, mas depende, principalmente, da formação do analista e de sua implicação com a psicanálise. Essas são condições fundamentais para a construção do lugar do analista no hospital e para a formalização de sua prática.

Sem dúvidas, esse é um desafio para o analista que se insere no hospital, já que a construção do seu lugar ocorre em um local marcado por discursos, éticas e especificidades conceituais radicalmente diferentes das suas. Investigar sobre o lugar do psicanalista no hospital e os impasses a que ele está sujeito no percurso dessa construção é um tema para outros estudos. No entanto, essas questões nos possibilitam debater sobre a práxis do psicanalista diante de desafios clínicos, teóricos e institucionais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, tivemos a curiosidade de pesquisar sobre o início da psicanálise nos hospitais gerais brasileiros. Encontramos dificuldades em achar referências bibliográficas sobre o tema e, por isso, fizemos contato com alguns profissionais precursores na área, que iniciaram suas práticas na década de 1970.

Segundo esses profissionais, no início a psicanálise não era reconhecida nos hospitais, o que só foi conseguido a partir de um processo difícil de realizar e que exigiu muito investimento. A resistência ocorria tanto por parte dos médicos quanto dos próprios psicanalistas, que recusavam a autenticidade da clínica psicanalítica fora do que se designou como setting analítico. Com isso, foi possível notar os esforços das analistas em sustentar seus trabalhos no contexto hospitalar. Pesquisar sobre o início da psicanálise nos hospitais brasileiros, ainda que de forma sucinta, foi interessante para percebermos que os entraves à inserção e à legitimidade da psicanálise nessas instituições surgem desde o início. Alguns são superados, mas outros aparecem. Daí a necessidade do movimento criativo do analista, que precisa se inserir em um constante processo de construção e reconstrução tanto do seu lugar quanto dos próprios dispositivos analíticos. Os hospitais gerais impõem esta exigência aos psicanalistas.

Retomamos alguns momentos da obra de Freud e do ensino de Lacan que autorizaram o psicanalista a sair dos consultórios. Esses momentos se relacionam com o desejo dos autores de reconhecimento da psicanálise e sua difusão nos diversos campos do saber. Eles enfatizam a importância da extensão da psicanálise, desde que seus princípios não se misturem com os de outras áreas. Para que a psicanálise possa estar nas instituições, é preciso que o analista assuma o risco de não distorcer os princípios psicanalíticos e de manter aceso seu desejo de psicanalista. Essas são condições essenciais para que determinada práxis seja analítica, o que, de fato, envolve a implicação do analista com as especificidades da sua clínica, que deve ocorrer em qualquer lugar onde ele atue. Isso significa que sua função não depende da localização geográfica, mas de sua formação. Assim, concluímos que o analista opera a partir de um lugar que não é um espaço geográfico, mas um lugar enquanto função, um desejo, um discurso. Quando o lugar do analista não é definido pelo espaço físico, mas por aquilo que é sua função, ele é autorizado a sair do enquadre convencional.

 

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Recebido em 05 de junho de 2012
Aceito para publicação em 31 de outubro de 2012