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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

A devastação: uma singularidade feminina

 

Devastation: a feminine singularity

 

 

Malvine Zalcberg

Doutora em Psicanálise; Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID)

 

 


RESUMO

Lacan empregou o termo devastação em dois momentos de seu ensino para se referir: seja à relação da filha com sua mãe - "a filha espera mais substância de sua mãe do que de seu pai" (1972/2001); seja na relação de uma mulher com um homem - "este que é para ela uma aflição pior que um sintoma, a saber, uma devastação" (1975-1976/2007). A devastação é o retorno da demanda de amor para uma mulher.

Palavras-chave: amor; devastação; demanda; filha-mãe; mulher-homem.


ABSTRACT

Lacan has used the word ravage in two moments of his teaching. Once to allude to the relation of the daughter to her mother - "a daughter expects more substance from her mother than from her father" (Lacan, 1972/2001) -, and again to refer to the relation of a woman to a man - "who is for her a worst affliction then a sinthome, that is, a ravage" (1975-1976/2007). The ravage is the return of a woman's request for love.

Keywords: love; ravage; request; daughter-mother; woman-man.


 

 

"A mulher não existe" é a fórmula encontrada por Lacan (19741975: 109) para sintetizar a impossibilidade de definir a essência feminina, uma questão em torno da qual Freud edifica suas formulações a respeito da sexualidade feminina. As equações freudianas de "rocha" e de "continente negro" para designar o que se refere à feminilidade dão testemunho dessa falha na definição do ser feminino.

Introduzir, sob a influência de Saussure (1933/1965), a figura linguística de significante e fazer deste um dos eixos de suas elaborações teóricas iniciais permite a Lacan atribuir a inconsistência feminina à falta de significante para dizer a mulher.

Se uma mulher buscar identificar-se ao significante mulher (que não existe), em vez de se encontrar, se unificar, ela irá, pelo contrário, se desdobrar em duas partes: numa em que ela é sujeito do inconsciente e noutra em que ela só encontra ausência em vez de uma existência. É o que justifica Lacan (1960/1995: 742) dizer que, pelo fato de a mulher se mover entre "uma pura ausência e uma pura sensibilidade", ela, de alguma forma, habita um lugar em que nem nome tem. Compreensível que Lacan formule que a busca de uma existência possível faz a mulher procurar "um homem a título de significante" (Lacan, 1972-1973/1982: 46), ainda mais que é só "de onde ele a vê que ela pode ter um inconsciente" (Lacan, 19721973/1982: 173).

Que a mulher não existe não significa que o lugar da mulher não exista de todo, pois que nesse lugar essencialmente vazio pode-se encontrar "alguma coisa", segundo Miller (1988: 13).

Essa "alguma coisa" que se encontra no vazio e que caracteriza a estrutura feminina justifica a conexão da mulher com os semblantes. A função do semblante, que do simbólico se dirige ao real, é mesmo o recobrir o nada (Lacan, 1972-1973/1982).

Como há sempre algo na mulher que escapa ao discurso, mesmo o amor não pode vir sem um dizer (Lacan, 1973-1974). Através desse dizer, que tem por função a restauração de uma identificação fálica, a mulher obtém um semblante de subsistência. Em sua demanda de amor ao Outro, há fundamentalmente uma demanda de ser, ainda e ainda. O amor é um dos semblantes ao qual a mulher recorre para suprir a falta de significante do sexo feminino (Lacan, 1977).

A formulação de inspiração lacaniana de que, quando nessa demanda de uma mulher, fracassa o semblante do amor surge a devastação não deixa de evocar a proposição de Freud de que a perda do amor é a figura que a castração assume do lado feminino.

A primeira menção de devastação no ensino de Lacan refere-se à relação mãe-filha na medida em que, para a maioria das mulheres, é assim que essa relação se constitui: de forma devastadora. A devastação decorre do fato de "a filha esperar como mulher mais subsistência de sua mãe que de seu pai, ele vindo em segundo nessa devastação" (Lacan, 1972/2001: 465).

A relação devastadora que pode existir entre mãe e filha fala da expectativa da filha de receber uma identificação feminina da mãe exatamente no ponto em que se coloca a impossibilidade de uma transmissão da feminilidade.

A segunda fórmula da devastação de uma mulher, Lacan a propõe em relação à demanda de amor de uma mulher a um homem. Até Lacan (1975-1976/2007: 98) formular em termos precisos, num de seus últimos seminários, "que a mulher é um sintoma para um homem e um homem é pior que uma aflição e um sintoma para uma mulher - é mais uma devastação", todo um caminho havia sido percorrido por ele.

Desde sua proposição de que a mulher quer ser "desejada e amada por aquilo que ela não é" e, para tanto, se apresenta como o falo - significante do desejo - para ser causa do desejo de um homem, Lacan (1958/1998: 701) indica que os sexos não se relacionam diretamente e sim através do falo, através da adoção de um parecer: parecer que, do lado do homem, se formula como ostentação de um ter e um parecer do lado feminino, que faz a mulher esconder sua falta (a ter) na mascarada.

Mesmo quanto à fórmula da fantasia introduzida em seguida por Lacan que se mostrava comum aos dois sexos - -, coube a Miller (1988) dizer que se deveria considerá-la com uma variação no caso feminino. No caso da mulher, a fórmula seria mais , correspondendo a uma substituição do a, objeto fetiche, causa do desejo, do lado masculino, por do lado feminino, este Outro do desejo que deve falar, dizer palavras de amor, para dar à mulher alguma consistência de ser.

Além da demanda de ser ao Outro, a mulher espera que o amor lhe sirva de barreira protetora em relação a um gozo que é só dado à mulher sentir e que tem como característica ser passível de revelar-se sem limite. Tanto quanto não há palavras para dizer a mulher, também não as há para se dizer esse gozo que não é complementar ao gozo fálico que ela compartilha com o homem; motivo pelo qual Lacan o chamou suplementar. Esse gozo da mulher heterogêneo ao gozo fálico, embora referido a ele, é evidência da não complementaridade dos sexos na relação sexual. Essa constatação é coerente com o aforismo lacaniano da "inexistência da relação sexual propriamente dita" (Lacan, 1972-1973/1982: 94).

Homens e mulheres posicionados diferentemente nas fórmulas da sexuação buscam, através das suas respectivas formas de amar, suprir essa inexistência da relação sexual.

Há então uma forma de o homem lidar com essa questão da não existência da relação sexual e uma forma de a mulher lidar com ela. Entre essas formas diferentes, há a considerar o que um parceiro exige do outro. O homem, em sua forma fetichista de amar, faz da mulher um objeto fetiche, um objeto a, causa do seu desejo, enquanto a mulher, em sua forma erotomaníaca de amar, faz do homem um Outro que fala, que lhe fala.

O desdobramento do gozo feminino corresponde ao fato de que a mulher não está toda sob a regência do complexo de Édipo como o homem está. Há um mais além do Édipo na mulher que determina a ela não se submeter totalmente à castração nem à lógica fálica. Mas, alerta Lacan (1972-1973/1982: 100), "não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixa de estar nela de todo". A mulher está sempre referida à função fálica embora não totalmente sob a sua regência. De forma que Lacan se refere à "loucura" feminina, mas com a ressalva de que, se as mulheres são loucas, são não todas-loucas ou não loucas de todo.

A mulher então se desdobra: por um lado, tem relação com Φ e, por outro, com S(). Do lado do Φ, não esqueçamos que Lacan, desde seu texto sobre "A significação do falo" (1958/1998), enfatiza como a mulher busca o significante de seu desejo no corpo do seu parceiro masculino. Mas, por outro lado, a fórmula S(), com a qual a mulher também tem relação, indica que o simbólico não é tudo; que há um real que não se reduz ao significante. E que é justamente com S() - o que se produz em excesso quanto a um processo de simbolização - que a mulher tem uma relação específica. A mulher tem relação com o significante desse Outro, na medida em que, "como Outro, ele só pode continuar sendo sempre Outro" (Lacan, 1972-1973/1982: 109).

Embora a modernidade tenda a foracluir o que anima uma mulher como ser de saber e como sujeito de uma alteridade radical, há algo que a mulher sabe: que ela não pode ser mulher a não ser se fazendo Outra: é "o homem que serve de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como ela o é para ele" (Lacan, 1960/1995: 741).

A devastação de uma mulher por uma decepção amorosa ou um rompimento amoroso a atinge nesses três níveis: a dificuldade de sustentar um semblante de existência, de encontrar uma barreira asseguradora de seu gozo, ameaçando-a da pulsão de morte, e a impossibilidade de encontrar fórmulas de tornar-se Outra para ela mesma.

As consequências clínicas vão da desorientação à angústia profunda, passando por todos os graus de extravio. A depressão, tão própria à nossa modernidade, vem falar da equação moderna que procura correlacionar desejo e gozo, sem falhas, sem resto. Algumas mulheres querem crer no amor louco, um amor combinando com a desmedida de seu gozo, enquanto outras escolhem nada ceder - no sentido de consentir - não mais de seu corpo que do seu ser, reivindicando uma solidão que não engana.

Se as montagens sintomáticas são tão numerosas como o são os modos de gozo, eles encontram formas de se alimentar naquilo que a era contemporânea veicula em termos de "pronto-a-gozar" na clínica da anorexia, na clínica das adições, na clínica da procriação, entre outras.

Neste ponto, faz-se mais evidente a equação de que "a demanda de amor da mulher retorna a ela sob a forma de devastação" (Miller, 1998: 114).

Com o amor em crise em nossos tempos, faltam os semblantes que limitem e regulem os gozos que se apresentam na proporção inversa do estabelecimento de vínculos sociais sólidos e, por isso mesmo, semblantes que regulem as relações entre os sexos.

O novo reino do não todo, que não é mais exclusivo das mulheres, mas ao qual elas têm acesso mais direto, anula as diferenças e universaliza as relações.

As mulheres em nossa modernidade nunca foram tão pouco "Outra" em relação a elas mesmas, identificadas que elas são a figuras ferozes que se sucedem e que as afastam do que poderiam ser enquanto sujeitos de desejo.

A devastação na mulher se manifesta no ponto em que os semblantes fracassam.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Miller, J.-A. (1998). O osso de uma análise. Agente-Revista da Escola Brasileira de Psicanálise-Bahia, Número especial, p. 114.         [ Links ]

Saussure, F. (1933/1965). Cours de linguistique générale. Paris: PUF.         [ Links ]

 

 

Recebido em 21 de julho de 2012
Aceito para publicação em 06 de outubro de 2012