SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 issue2The Wolf-man and the actuality of diagnostic uncertainty author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2012

 

RESENHA

 

Psicanálise e política para nossos tempos

 

Psychoanalysis and politics for our times

 

 

Pedro Sobrino Laureano

Psicanalista; Membro da Sociedade de Psicanalise Iracy Doyle (SPID); Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO)

 

 

RESENHA DE:

Zizek, S. (2011). Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo editorial, 477 páginas.

O que dizer da obra do filósofo esloveno Slavoj Zizek? Como qualificá-la? Podemos observar que seu pensamento obedece a uma lógica caleidoscópica, segundo a qual e de acordo com a crítica da revista New Yorker, "nenhum fenômeno social ou natural resta não teorizado". Entretanto, tal teorização não visa, certamente, exprimir a Weltanschauung (visão de mundo) que Freud tanto criticava na filosofia, nem, por outro lado, conectar-nos a uma miríade de elementos diferenciais num passeio flaneur pós-moderno.

Pelo contrário, um dos maiores objetos de crítica de Zizek, em toda sua extensa obra, é o imaginário pós-moderno das diferenças e da pluralidade infinita. Esta nova cosmogonia que, como diz Lyotard, chega na derrocada das grandes narrativas, exprime, para Zizek, o elemento ideológico presente no mundo atual. É, paradoxalmente, a ideologia de uma era pretensamente pós-ideológica. Era técnica, eficiente, em que se pretende universalizar o modelo de uma subjetividade utilitarista, enredada no cálculo funcional do prazer e do desprazer, livre dos fantasmas utópicos que assombraram o século XX: o fascismo, o nazismo e o socialismo.

Seu lançamento de 2011, Em defesa das causas perdidas, inscreve-se na contracorrente desta pós-modernidade fácil, livre de conflitos e contradições. O autor busca resignificar a utopia política para nossos tempos, evitando o duplo erro de colocar-se seja como mero continuador nostálgico do pensamento socialista do século XX, seja como celebrador ingênuo do multiculturalismo, das diferenças harmônicas. O livro transita entre psicanálise, filosofia, literatura, cultura de massa e arte, mas podemos dizer que esta ciranda de elementos não é sem causa. Trata-se, através de uma leitura renovada e criativa de Lacan, Marx e Hegel, de redefinir os termos do debate político atual, lutando por um pensamento e uma prática de esquerda que possam responder ao surgimento de novas utopias sociais.

A aposta é a de uma clínica do capitalismo que busca desobstruir as coordenadas sociossimbólicas que, desde a queda do muro de Berlim em 89 e da consequente concreção da globalização financeira (que Marx - 1867/2011 - já apontava como constituindo a tendência intrínseca do capital), nos dizem que o liberalismo parlamentar é o horizonte incontestável da ação e do pensamento político. Restaria apenas lutar por reformas no sistema, ou humanizá-lo através dos direitos do homem, das pautas ambientais, etc: a democracia atual constituindo a melhor, ou menos ruim, forma de governo possível.

Ora, em que este livro, eminentemente político, poderia interessar aos psicanalistas clínicos? Pensamos que não apenas pela utilização extremamente criativa e viva que Zizek faz da obra de Lacan, mas, também, por representar, no campo da psicanálise, uma politização à qual nós, como psicanalistas, não devemos nos furtar.

Politização, aqui, certamente não deve nos remeter a uma clínica ideológica, compromissada com qualquer agenda política programática ou partidária, mas, sim, à certeza de que, no cerne do sofrimento psíquico, existe um ponto em que, como mostrou Lacan (1961-1962/2003) a respeito da banda de Moebius como metáfora do psiquismo, o exterior torna-se interior, e o interior, exterior. Talvez neste ponto, no furo que liga as duas metades da banda, formando uma unidade invisível como "terceira", aja o que Zizek explicita como causa, em seu livro: aquela, estrutural, que impede que nos reifiquemos em um ego autônomo, tornando impossível o recalque da dimensão simbólica e social que somos.

Por mais que algumas terapêuticas busquem enxergar o paciente como indivíduo enredado numa história familiar privada, o campo social sempre retorna, nas sociedades individualistas contemporâneas, expressando-se em sintomas carregados pela impossibilidade de o sujeito se significar como ser-no-mundo para além da esfera restrita do privado.

"Eu bem sei, mas mesmo assim..." é a fórmula da Verleugnung constitutiva do fetiche que, na esteira de Freud e Lacan, Zizek utiliza ao longo do livro para caracterizar a subjetividade atual. Eu sei que sou mais que aquilo que narro como constituindo minha vida privada, meus conflitos com minha família, trabalho, etc., mas, mesmo assim... continuarei a denegar a presença da alteridade em meu repertório narrativo.

Pensando com Zizek, ao longo de sua obra, mas, prioritariamente, no texto Em defesa das causas perdidas, podemos dizer que os conflitos e contradições sociais inscrevem-se no corpo dos sujeitos. Da mesma maneira como, para Eduard Lorenz, cientista da teoria do caos, o bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode provocar um furacão em Nova Iorque, podemos dizer, brincando, que as turbulências da primavera árabe na África do Norte podem, junto a outros processos causais certamente inconscientes, provocar surtos de pânico (rapidamente classificados como "síndrome do pânico" pela ciência hegemônica) nas elites ocidentais.

Zizek nos fornece neste livro, portanto, elementos fundamentais para se pensar a clínica e a psicanálise dos tempos atuais. Contemporâneos de nós mesmos, habitamos esta fenda em que uma profunda crise financeira e inesperadas oscilações no termômetro político (crescimento da direita e extrema direita na Europa, nova esquerda Latino Americana, etc.) desvelam um mundo em que a estrutura simbólica encontra-se fragilizada, tornando nosso encontro com o excesso, com o trauma, mais direto, aproximando-nos da fratura no simbólico que Lacan chamou de Real.

A partir dos pensamentos de Zizek podemos ligar, também, a prevalência atual das patologias do excesso (de mercadorias, sexo, remédios, recursos naturais, violência...) ao modo pelo qual se vivencia, socialmente, esta crise na estruturação dos laços sociais, tornando os sujeitos perplexos frente à tarefa de significação (e transformação!) da existência. Zizek sustenta, entretanto, que a crise no grande Outro capitalista faz com que nossa tarefa não seja a de ressignificá-lo, mas, pelo contrário, aprofundar criticamente sua dissolução para que algo de novo possa advir.

Como diz Lacan (1966-1967/2000), no seminário A lógica da fantasia, "o inconsciente é a política", proposição que também é ressaltada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972/2010), em O anti-Édipo. Tal constatação, numa época de crise (ou derrocada) do capitalismo neoliberal, como a nossa, torna a tarefa do psicanalista ainda mais difícil, porém instigadora. Segundo Zizek (2011: 21): "O problema, naturalmente, é que, numa época de crise e ruptura, a própria sabedoria empírica cética, restrita ao horizonte da forma dominante de senso comum, não pode dar respostas, e é preciso arriscar o salto de Fé".

Tal salto de fé, entretanto, não constitui uma reativação de arcaísmos obscurantistas (religiões, nacionalismos, velhos "socialismos"), porém uma aposta no que Alain Badiou (1988) - filósofo a quem o livro é dedicado - chama de evento. Próximo ao que Lacan (1967-1968/2003) denomina como ato analítico, trata-se de uma imersão no que surge fora do espaço das garantias simbólicas que sustentam nossas construções fantásticas do mundo, "uma decisão [...] tomada em absoluta solidão, sem nenhuma cobertura do grande Outro" (Zizek, 2011: 172).

Os capítulos seguem o estilo já conhecido de Zizek. É como se a abordagem da questão política, por constituir, em si mesma, um núcleo traumático cuja significação é impossível (a política radical sendo investida pela dimensão do Real lacaniano), apenas pudesse ser abordada através do que Zizek denomina "paralaxe": vários ângulos diferentes sobre um mesmo objeto que, entretanto, é ausente, não sendo mais que seu próprio aparecer para nós, semblante em que essência e fenômeno coincidem, mediados por uma falta em comum. O livro é tecido como se todos os caminhos, desde filmes hollywoodianos até a filosofia de Heidegger (1927/2006), levassem, inevitavelmente, a este núcleo duro da política com o qual os sujeitos devem se haver.

Sendo assim, a única maneira de abordar o problema político-clínico será através da forma. No livro Em defesas das causas perdidas, Zizek não faz uma lista de proposições, de palavras de ordem ou conteúdos programáticos. Ao dar nome à fenda constituída dentro de nossas formações políticas atuais, tangencia as características das quais um ato verdadeiro estará imbuído, se quisermos encontrar saídas emancipadoras à crise contemporânea.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Badiou, A. (1988). L'être et l'événement. Paris: Seuil.         [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F. (1972/2010). O anti-Édipo. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Heidegger, M. (1927/2006). Ser e tempo. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Lacan, J. (1961-1962/2003). O seminário, livro 9: a identificação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1966-1967/2000). El seminario, libro 14: la lógica del fantasma. Versión de la Escuela Freudiana de Buenos Aires: Edição eletrônica das obras completas de J. Lacan.         [ Links ]

Lacan, J. (1967-1968/2003). El seminario, libro 15: el ato analítico. Buenos Aires: EFBA. (Publicação não comercial).         [ Links ]

Marx, K. (1867/2011). O capital: crítica da economia política,livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]