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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

ARTIGOS

 

Um estranho irredutível no saber freudiano sobre as psicoses

 

An irreducible uncanny in Freud's knowledge on psychosis

 

 

Daniel Dias BrepohlI; Vinicius Anciães DarribaII

IPsicanalista; Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Paraná, Brasil. E-mail: danieldiasb@gmail.com
IIPsicanalista; Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná; Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Paraná, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo examina o esforço de teorização sobre as psicoses ao longo da obra de Freud. Para tanto, foram eleitos trabalhos nos quais o autor se dedica diretamente ao tema, ou faz alguma referência clara a ele. Nestes, foram enfocadas as tentativas de Freud em articular as questões das psicoses a um saber constituído a partir das neuroses, o que resulta em uma oscilação entre aproximações e evidências de uma diferença irredutível. Em razão disso, o trabalho propõe privilegiar a noção freudiana de estranho como operador na análise destes textos, através do que se pretende localizar neles, mais do que a especificidade das psicoses, algo de paradigmático da própria relação com o saber na psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; psicoses; estranho; saber.


ABSTRACT

The present paper examines Freud's efforts in theorizing psychosis. Thus, some of Freud's papers in which he focused on this subject or made any clear reference to it were selected. We focused on Freud's attempts to articulate to psychosis a knowledge that was built from the neurosis. The results are an oscillation between approaches and evidences of a irreducible difference. For this reason, we privilege Freud's notion of 'uncanny' as an operator in the analysis of his papers. This methodology aims to localize in Freud's papers not only the specificity of psychosis, but something of paradigmatic in the relationship between psychosis and psychoanalysis knowledge.

Keywords: psychoanalysis; psychosis; uncanny; knowledge.


 

 

Introdução

Entre as situações que põem à prova a clínica psicanalítica, figura sem dúvida o tratamento das psicoses, cujos impasses, geralmente imprevistos, desarranjam o saber que orienta o trabalho, colocando-o em xeque. As desconcertantes manifestações sintomáticas aí encontradas, sua rigidez, a dificuldade em estabelecer um laço com os pacientes, bem como a dimensão dos resultados obtidos, impõem ao clínico, muito frequentemente, uma experiência de impotência que se estende ao saber a que se endereça.

O confronto com uma diferença radical em relação à lógica subjetiva familiar favorece que o encontro com um limite à apreensão da experiência pelo saber se dê de maneira mais eloquente. Constata-se no trabalho com pacientes psicóticos que, se este pode gerar, por vezes, uma experiência de mal-estar, provoca também certo assombro que convoca a um esforço de entendimento. Pode-se pensar em um encontro que conjugue atração e evitação, busca de assimilação e confronto com uma diferença intransponível.

Quando, na obra de Freud, acompanhamos o esforço de teorização das psicoses, esta conjugação de aproximação e afastamento revela-se no modo como o autor propõe concebê-las sobre o fundo de um saber constituído a partir da experiência com as neuroses. Ao se voltar para o campo das psicoses, Freud precisou, então, responder à interpelação de algo que não se encaixava inteiramente nos sulcos teóricos que havia previamente estabelecido. Neste sentido, o presente artigo interroga não tanto o saber que se configura sobre as psicoses nos escritos de Freud, mas a possibilidade de que deles derive algo de paradigmático da própria relação com o saber na psicanálise.

Já podemos adiantar, quanto a isso, que a experiência freudiana interessa aqui por identificarmos nela um caminho que, por um lado, não recusa o que nas psicoses não se acomoda a seus construtos teóricos e, por outro, não força sua assimilação a esses últimos. A manutenção de um resto inassimilável acabará por designar não estritamente um ponto avesso ao saber específico que até então o autor constituíra, mas um ponto avesso ao saber em si. A experiência de Freud com as psicoses, tal como se delineia em sua obra, é então ilustrativa de como ele sustentou a presença de um resto relativo à prevalência do saber, divisa mesma do ineditismo da psicanálise.

Quando assim caracterizamos o modo como o tema das psicoses é trabalhado na obra de Freud, impõe-se a homologia com o que o autor elabora no texto "O estranho" (Freud, 1919/1996). Desde aí, propomos partir da noção freudiana do estranho para percorrer as diferentes passagens que, na obra do autor, tratam das psicoses. Mais propriamente, trataremos de verificar em que medida a noção do estranho permite traduzir a relação de Freud com a questão das psicoses tal como ela se mostra em seus escritos. Ou seja, lançaremos mão desta categoria freudiana como um operador na análise que faremos do modo como a teorização sobre as psicoses apresenta-se no conjunto de sua obra.

Não é tanto a relação de Freud com as psicoses, portanto, que será pensada a partir da ótica do estranhamento, pois implicaria em uma análise mais abrangente do que a que cabe aqui. É mais propriamente na articulação feita no interior de sua obra, entre as psicoses, as neuroses e a vida ordinária, que buscaremos identificar a incidência deste estranhamento na produção do saber aí em jogo, e mesmo na relação com ele. Antecipamos assim que, nesta relação, será enfocada certa inquietação, certo estranhamento reportável a algo que, nas psicoses, ao mesmo tempo que remete ao que há de mais familiar ao psicanalista e ao saber da psicanálise, iniciado no campo das neuroses e da vida ordinária, guarda um caráter efetivamente estranho. Pretende-se examinar em que medida isto se evidencia nos textos freudianos, associando à teorização sobre as psicoses certo modo particular e reincidente de operar no âmbito desta obra.

Nestes termos, o exemplo de Freud atesta a impossibilidade de se tomar ilusoriamente a teoria como passível de oferecer abrigo contra a incidência angustiante do que desafia o saber. O que se produz com isto é uma relação dogmática com a teoria, ficando a clínica meramente como campo de aplicação e confirmação de ideias previamente concebidas. Pela via do já sabido ou do passível de saber, a teoria se torna, assim, uma ferramenta de defesa face ao saber esburacado atinente à clínica. A vantagem de um relativo apaziguamento sacrifica o que pode distinguir propriamente a experiência como psicanalítica.

São dois os destinos que se conjugam com relação ao saber da psicanálise. Por um lado, o clínico poderá tomar a teoria como objeto de transferência, supondo ali um saber potencial sempre a ser construído no confronto com a experiência, um saber que ultrapassa o próprio enunciado teórico. Mezan (1993: 58) caracteriza bem esta relação, ao indicar que a teoria psicanalítica deve funcionar "como a estrela polar para o navegante: fornece coordenadas para o percurso, permite algumas ideias do rumo a tomar, mas não é o alvo que se quer atingir". Por outro lado, no entanto, deve-se considerar que o ponto de chegada é menos um saber construído na relação com a clínica do que o próprio impossível do saber. A relação entre esses dois destinos não se resolve, portanto, dialeticamente.

 

A inquietação de Freud com as psicoses

Freud (1919/1996) lançou mão de diversas fontes para abordar o Unheimlich. Além de sua própria experiência e das observações realizadas em sua clínica, recorreu também à literatura, especialmente ao conto O homem da areia, de E. T. A. Hoffmann (1817/1993), no qual parece haver por parte do autor uma intenção deliberada de produzir o efeito de "estranhamento" no leitor. Realizou ainda um estudo semântico do termo Unheimlich. A partir deste material, fez uma tentativa de definição deste afeto que se revelou bastante densa. Não é necessário acompanhar todo o desenvolvimento do artigo e limitamo-nos, assim, a retomar de forma sucinta algumas das conclusões às quais Freud chega.

O estranho caracteriza-se, então, por provocar, ao mesmo tempo e de forma ambígua, um sentimento de familiaridade e de estranhamento, combinado ainda a um horror, uma aversão. Inquieta, na medida em que provoca uma desagradável perplexidade em uma tensão de repulsa e aproximação. Associa-se, ainda, a algo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz, como também a elementos que são próprios da vida infantil e da sexualidade. Finalmente, a manifestação da angústia que provoca remete à angústia de castração, afeto comum na infância, que se opõe à fantasia de onipotência narcísica e exerce papel fundamental no âmbito do inconsciente. Destacados estes pontos, elementos que concernem à conceituação freudiana do estranho, que articulação pode ser feita, conforme a proposta deste trabalho, com o modo como se dá a teorização sobre as psicoses nos escritos de Freud?

Se acompanharmos a obra de Freud em uma perspectiva diacrônica, verificamos que as psicoses o inquietavam, nunca tendo sido relegadas ao esquecimento. O esforço de teorização sobre as mesmas é reincidente, ainda que, desde os primeiros anos, Freud (1896/1996) declarasse não ter perspectivas de trabalhar com estes pacientes. Quinze anos depois, ratificava ter poucas oportunidades e mesmo possibilidades de tratá-los (Freud, 1911/1996). Apesar disso, dedicou grande tempo e esforço na busca de compreender os casos de psicose, sendo o mais notório o Caso Schreber (Freud, 1911/1996), que, como sabemos, envolve uma paranoia que Freud não tratou, visto sequer ter conhecido o paciente. Neste texto, ele comenta também o interesse que nutria e o contato que mantinha com as pesquisas que seus colegas Jung e Ferenczi desenvolviam sobre a paranoia.

Outra aproximação também pode ser verificada poucos anos depois, quando Freud aborda não só casos de paranoia como de esquizofrenia para elaborar seu conceito de narcisismo (Freud, 1914/1996) e para elucidar alguns pontos de sua teorização acerca do funcionamento psíquico inconsciente (Freud, 1915/1996). Ainda, Freud, em 1924, publica dois artigos cujo tema central são as psicoses, realizando aí analogias destas com as neuroses (Freud, 1924a/1996; 1924b/1996). Assim, mesmo dizendo-se pouco inclinado à psicanálise de psicóticos, e mesmo afirmando posteriormente não gostar muito destes pacientes (Freud, 1928/1995), Freud ocupou-se bastante das psicoses e fez vários movimentos de aproximação às suas questões ao longo de um grande período de sua obra.

É no interior da obra de Freud, na construção da teoria, mais especificamente no estabelecimento da relação entre as psicoses e o que lhe era mais familiar, as neuroses e a vida ordinária, que se pode entrever o que aqui associamos à categoria do estranho cunhada pelo próprio autor. O modo como se desdobram tais elaborações freudianas guarda os fundamentos desta associação. Nota-se algo que poderíamos caracterizar como uma oscilação, na qual Freud busca e tem relativo sucesso em familiarizar as psicoses, em elucidá-las a partir do que avançara em seu conhecimento, ao mesmo tempo que, no traçado desta mesma operação, revela-se um ponto estranho, enigmático, inapreensível. Este último, por sua vez, leva-o a retomar o esforço de familiarização. Entendemos que esta oscilação marca a presença de um ponto propriamente avesso ao saber, cuja incidência na obra de Freud sustentamos ultrapassar o exame das questões postas pelas psicoses. Ou seja, o que se passa na teorização das psicoses demonstra o modo como se estrutura a relação com o saber nos termos em que a experiência da psicanálise encontrou possibilidade de transmissão na obra de Freud.

 

A teorização das psicoses por freud: o esforço de relacioná-las às neuroses

No artigo "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/1996), Freud localizou, a partir de seus estudos sobre casos de histeria, um elemento comum a estas, às obsessões/fobias e ao que ele denomina como uma psicose de "confusão alucinatória" (Freud, 1894/1996: 64). A familiaridade se ligava ao fato de serem quadros consequentes a um processo defensivo do eu. Se algo do que as histerias ensinaram a Freud pudesse ser estendido aos casos de psicose, isto não anulou a presença de um ponto estranho, reconhecido pelo autor, associado à observação clínica de manifestações sintomáticas peculiares. Se a defesa é, por um lado, um mecanismo comum, ela não deixa de comportar algo estranho quanto às suas resultantes nas psicoses em contraste com as neuroses. Embora Freud (1894/1996) pareça situar esta diferença em termos de intensidade, sendo considerada a defesa nas psicoses "muito mais poderosa" (Freud, 1894/1996: 64), é importante verificar o delineamento de uma diferenciação no próprio processo de defesa. Na psicose, seu poder estaria no sucesso em conseguir afastar da consciência o representante ameaçador juntamente com seu afeto, afastando igualmente o fragmento de realidade que a este estaria ligado. Nas neuroses, ocorreria apenas um enfraquecimento afetivo daquele, com a substituição do mesmo. Neste sentido, não se deve desconsiderar o emprego.

Há que se notar que Freud (1894/1996), ao se referir à psicose alucinatória, emprega o termo rejeição (Verwerfung), distinto do termo recalcamento (Verdrangung), distinção valorizada posteriormente por Lacan (1955-1956/1985; 1959/1998). Dois anos depois, no entanto, a partir da observação de casos de obsessão e de paranoia, esta distinção terminológica não figura, na medida em que Freud (1896/1996) propõe pensarmos em um processo especial de recalcamento nas psicoses em comparação com as neuroses. Desta forma, o termo "recalcamento" designava o que haveria de comum entre as defesas, enquanto que o termo "especial" apontava para uma diferença nas psicoses.

Em meio a esta discussão, Freud (1896/1996) perceberá o importante papel desempenhado pelo mecanismo de projeção, especificamente na formação dos sintomas paranoicos, em particular no que diz respeito ao delírio. No conteúdo deste último, percebeu a representação de conteúdos aflitivos que foram "projetados para fora" pelo eu como uma forma de defesa por parte deste. No entanto, em um movimento de aproximação, reconheceu que o mecanismo de projeção está presente também nas neuroses e na vida ordinária, conferindo à paranoia "[...] um abuso do mecanismo de projeção para fins de defesa [...]" (Freud, 1895/1996: 256). Outra vez, vemos Freud valer-se de uma noção de intensidade para discriminar o que haveria de estranho nas psicoses.

A delimitação da projeção, através da qual se avizinha do delírio na paranoia, aproxima este último de processos familiares ao campo das neuroses tal como abordado por Freud (1896/1996). Isto, no entanto, não desfaz o elemento estranho que resiste a esta comparação. A identificação entre a projeção característica da paranoia e a projeção em um sentido mais genérico é um artifício plausível que Freud encontra, mas não suficiente para esgotar o caráter enigmático do fenômeno na psicose, restando algo não apreensível. Vale acrescentar a observação do autor na qual pondera que, na paranoia, o eu projeta mais intensamente coisas que lhe são assustadoras e das quais não quer saber, revelando conteúdos que, na vida ordinária, tende-se a manter oculto. Este apontamento lembra uma das características do estranho elencadas por Freud (1919/1996), ao considerar que o Unheimlich trata de algo que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz.

Freud retomou, entre 1911 e 1914, a questão das psicoses, avançando, inclusive, em hipóteses acerca da etiologia. Estas se fizeram na articulação com suas construções acerca do desenvolvimento psicossexual humano. Ele entendia que, se a defesa psicótica se dava contra uma pulsão sexual, esta guardaria características próprias de uma etapa arcaica no desenvolvimento infantil. Referia-se à etapa narcísica, equidistante do autoerotismo e do aloerotismo, na qual o eu - que, conforme sua compreensão, ainda se apresentava, nesta etapa da constituição psíquica, em estado nascente - toma a si e ao próprio corpo como objeto de seus investimentos libidinais (Freud, 1914/1996).

Nas psicoses, por razões não esclarecidas, haveria uma fixação particularmente intensa da libido na etapa narcísica, o que estaria associado, segundo Freud (1911/1996), às desconcertantes manifestações apresentadas por estes pacientes. Seu desencadeamento se daria por uma regressão da libido até este ponto do desenvolvimento, e ela seria retirada dos objetos em direção a este "eu" arcaico. A dificuldade em estabelecer um laço com o clínico, por exemplo, é vista pelo autor como efeito da retirada da libido dos objetos externos, ficando esta retida, fixada no próprio eu.

Importa lembrar aqui que, além do que elucida nestes casos, o narcisismo assumiu na obra freudiana o status de noção central no modo como, em termos gerais, é concebida a constituição do psiquismo. Mais precisamente, se por um lado, como Freud (1914/1996) afirma, foi a observação de casos de psicose que o levou a pensar no narcisismo, por outro este permitiu a compreensão de vários fenômenos até então pouco inteligíveis, que iam muito além do campo das psicoses. De todo modo, por mais elucidativa que seja, a teorização sobre o narcisismo não esgota a questão das psicoses para Freud.

 

A teorização das psicoses por Freud: a incidência de modificações na teoria

Com a extensão das hipóteses que introduzem as psicoses, o caráter enigmático que elas ostentam no texto não se dissipa, mas se desloca. Vale notar que, neste movimento, como no caso justamente da hipótese do narcisismo, referida primeiramente ao exemplo das psicoses, dá-se uma reformulação não apenas do modo como estas últimas são concebidas, mas da teoria psicanalítica como um todo. Ao tomar, portanto, isto que resta nas psicoses não inteiramente assimilado aos recursos de sua teoria como mote para o trabalho, Freud acaba fazendo avançar a teoria.

Outro exemplo que encontramos de hipóteses desenvolvidas a partir da consideração de casos de psicose pode ser encontrado no artigo "O inconsciente" (1915/1996). Como dissemos, trata-se de hipóteses que, apesar de partirem da observação das psicoses, não tiveram alcance restrito a estas na teoria freudiana. No exemplo agora considerado, ao se deter nos casos de esquizofrenia, Freud (1915/1996) propôs um refinamento em sua teorização do aparelho psíquico, introduzindo a ideia de que um representante psíquico (um objeto) pode ser dividido em representação de coisa e representação de palavra. No sistema Ics, teríamos apenas a representação de coisa, enquanto que, no sistema Cs/Pcs, teríamos a representação de coisa associada à representação de palavra. A qualidade consciente de um objeto se daria pela hipercatexização da primeira por associação com a segunda. No sentido inverso, o que o recalcamento realiza seria a separação das duas, ou o impedimento de sua associação, isto é, que a coisa seja posta em palavras.

Especialmente na fala dos esquizofrênicos, Freud (1915/1996) disse ser observável que as palavras são tomadas como coisas, o que aproxima a estrutura do que dizem ao que seria próprio do sistema Ics. Neste mesmo artigo, o autor ainda ressaltou que "[...] muito do que é expresso na esquizofrenia como sendo consciente, nas neuroses de transferência só pode revelar sua presença no Ics através da psicanálise" (Freud, 1915/1996: 202). Esta fórmula leva-o a interrogar de modo mais agudo o que poderia haver em comum entre o recalcamento nas neuroses e o que seria próprio das esquizofrenias (Freud, 1915/1996). Se, em 1894, ele pensava em um mecanismo comum que permitia o agrupamento das "neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/1996) e, em 1896, cogitava apenas um recalcamento especial nas psicoses (Freud, 1986/1996), agora, ressaltando a diferença, põe em questão ser possível tratar-se de uma mesma coisa. Nos termos em que desenvolvemos o argumento deste trabalho, vemos certa confiança em reunir o que é próprio das neuroses e das psicoses para dar lugar à ênfase em uma diferença talvez inconciliável.

Antes de seguir com a obra na sequência cronológica, vale ressaltar uma observação de Freud na análise do Caso Schreber (Freud, 1911/1996): "a investigação psicanalítica da paranoia seria completamente impossível se os próprios pacientes não possuíssem a peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente aquelas coisas que outros neuróticos mantêm escondidas como um segredo" (Freud, 1911/1996: 21). Mais uma vez, a ideia de que as psicoses esboçam algo que deveria permanecer oculto nas neuroses. Freud considera que o caráter angustiante que está na base da produção do delírio deve-se à ameaça de castração, sendo o próprio delírio um efeito manifesto, se bem que distorcido, da mesma. No texto em que trata do estranho, como vimos, Freud (1919/1996) o tomará, e a seus efeitos de angústia, como estando relacionados precisamente a esta mesma ameaça de castração que, nas psicoses, entende estar parcialmente desvelada.

Freud, em 1924, já tendo introduzido as hipóteses que delinearam sua "segunda tópica", veio a realizar um trabalho de comparação, por analogias, entre neurose e psicose. No artigo "Neurose e psicose" (Freud, 1924a/1996), tomou ambas como resultado de um fracasso do eu em sua função mediadora entre o isso e o mundo externo, em sua impossibilidade de satisfazer plenamente as pulsões sexuais face às condições impostas pelo mundo externo. Objetivando uma contraposição, Freud (1924a/1996) afirmou que, no caso das neuroses, o eu toma o partido do mundo externo, recalcando a pulsão. Já nas psicoses, inversamente, o eu tomaria o partido da pulsão, afastando ou se desligando do mundo externo. Este afastamento do mundo externo é sucedido por uma tentativa do eu de restabelecer esta relação, o que se manifesta pelas alucinações e produções delirantes. Nas neuroses, por sua vez, dada a impossibilidade de o eu manter a pulsão recalcada, ocorre o retorno disto que foi recalcado, o que leva à formação dos sintomas.

Já é possível verificar que a presença, no título, dos termos neurose e psicose, separados pela conjunção "e", encontra no texto duas possibilidades de esclarecimento. Tanto podemos tomar o título no sentido da conjugação quanto no sentido da separação, visto que Freud (1924a/1996) aproxima neurose e psicose ao pensar uma em contraste com a outra, mas enfatiza o elemento distinto aí em jogo. Nesta via, ele ainda acrescentou que, tanto na neurose quanto na psicose, a solução do conflito seria parcialmente malsucedida, dado que o mundo externo recriado nas psicoses não pode satisfazer plenamente a pulsão, assim como os sintomas neuróticos também não. Em meio a esta analogia, uma distinção importante: o efeito patológico nas neuroses se dá em um segundo momento, pelo retorno do recalcado que sucede o recalcamento; ao passo que nas psicoses ocorre o inverso, sendo a primeira etapa de desligamento do mundo externo o processo propriamente patológico. Isto levou Freud (1924a/1996) a tomar o segundo momento da psicose já como uma tentativa de restabelecimento.

Pensando nos elementos estranho-familiares que a comparação da psicose com a neurose evidencia, e tomando, para tanto, o artigo "A perda da realidade na neurose e na psicose" (Freud, 1924b/1996), que estende essas construções, podemos ainda deter-nos em dois pontos da discussão efetuada em 1924. O primeiro deles diz respeito às perturbações na relação com a realidade em uma e outra. Quanto a isto, Freud (1924b/1996) afirmou que, nas neuroses, o retorno da pulsão recalcada obriga o eu a fazer concessões, tendo que se desligar de elementos da realidade que entram em conflito com esta pulsão que retorna. A energia aí desprendida incide sobre traços mnêmicos, levando à produção da fantasia, através da qual o eu manterá uma ligação imprópria, distorcida com a realidade. Nas psicoses, por sua vez, a energia liberada pelo afastamento da realidade também retorna sobre traços mnêmicos, levando à produção do delírio como uma forma do eu restabelecer, mesmo que de maneira distorcida, alguma relação com a realidade. Verificamos, assim, que a fantasia, na neurose, e o delírio, na psicose, são assimilados como tentativas parcialmente bem-sucedidas de manter ou restabelecer a relação com a realidade através do investimento libidinal em traços mnêmicos. Todavia, há uma sensível distinção entre uma e outro, prefigurando uma relação de estranha familiaridade no modo como fantasia e delírio são abarcados pela teoria de Freud.

O segundo ponto diz respeito à estrutura do eu. Começando pela diferenciação proposta por Freud (1924b/1996), é sustentado que, nas neuroses, ao recalcar a pulsão, o eu mantém sua unidade, seu caráter sintético e sua função sintetizadora. Com o retorno do recalcado, trabalha no sentido de garantir esta unidade, tarefa na qual Freud (1924a/1996) dá a entender que o eu tem considerável sucesso. Já nas psicoses, o eu se fragmenta e é projetado para o exterior como forma de lidar com o conflito que o ameaça. Os conteúdos do delírio na paranoia, as vozes na esquizofrenia e as queixas na melancolia dão a Freud base clínica para esta conclusão. Temos aí um elemento aparentemente distinto entre neuroses e psicoses - nas primeiras, um eu unificado, enquanto que, nas outras, ele se apresentaria fragmentado.

Através de um exame adicional na obra de Freud (1914/1996), esta demarcação pode ser aprofundada. Apesar da sugerida distinção das psicoses pela fragmentação do eu, o autor registra que também nas neuroses podem ser identificados processos de regressão ao narcisismo, etapa do desenvolvimento na qual o eu se apresenta de maneira rudimentarmente unificada. Fora das psicoses, o eu também não teria sua unidade garantida, o que implicaria estabelecer melhor as fronteiras desde este critério. A fragmentação do eu própria à psicose, que se reporta ao autoerotismo, tem que ser distinguida de uma divisão do eu e de uma regressão ao narcisismo associadas às neuroses e perversões (Freud, 1927/1996).

Mesmo com a constante retomada por Freud da questão das psicoses, mesmo com o saber que pôde construir sobre elas e a partir delas, com as modificações na teoria psicanalítica, algo de obscuro, de enigmático, de estranho persistiu. Longe de considerar a questão encerrada, ele apostou em empreendimentos futuros, não necessariamente a serem realizados por ele, que dessem continuidade ao trabalho. A relação estabelecida por Freud entre sua clínica, suas próprias experiências e sua teoria e a honesta apresentação das dificuldades aí encontradas, dão testemunho de um trabalho sempre sustentado por uma inquietação. No caso das psicoses, tal inquietação fez avançar o saber da psicanálise; não estritamente, como vimos, no que concerne a elas. Mais do que isso, quanto ao que as psicoses lhe ensinaram, entendemos que o modo como as articulou em seus escritos denota, conforme argumentamos, a experiência de um resto irredutível ao saber, que a psicanálise, com Freud, consignou.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 05 de dezembro de 2011
Aceito para publicação em 29 de janeiro de 2013