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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

ARTIGOS

 

A importância do brincar em Winnicott e Schiller

 

The importance of play in Winnicott and Schiller

 

 

Fábio BeloI; Kátia ScodelerII

IProfessor Adjunto de Psicanálise das Relações Objetais (UFMG). Minas Gerais, Brasil. Email: fabiobelo76@gmail.com
IIEspecialista em Teoria Psicanalítica (UFMG). Minas Gerais, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta as semelhanças entre a conceitualização do impulso lúdico e do jogo para Schiller e a teoria do brincar de Winnicott, e sua aplicação na psicanálise. Winnicott afirma que é apenas no brincar que o homem, criança ou adulto, pode desfrutar de sua personalidade de forma integral. Da mesma forma, a filosofia da estética de Schiller aponta o impulso lúdico como o estágio transicional capaz de comportar o jogo entre as forças existentes no homem - o impulso sensível e o racional -, e assim harmonizá-las de modo a permitir a ele ser um homem pleno. Concluímos pela semelhança entre o pensamento dos dois autores não necessariamente para propor uma genealogia, mas para explicitar pontos importantes no pensamento de Winnicott e interrogar sobre as possíveis ligações existentes entre o romantismo alemão e teoria winnicottiana.

Palavras-chave: Schiller; Winnicott; brincar.


ABSTRACT

This article presents the similarities between the conceptualization of play-drive and play in Schiller and the theory of play by Winnicott and its application to psychoanalysis. Winnicott says that it is only by playing that children or adults can fully enjoy their personality. In the same way, Schiller's philosophy of aesthetics affirms play-drive to be the transitional stage able to accommodate the game between the two existing forces in man - the sensible and the rational - and, in that way, to harmonize them so that it enables man to be a complete man. We conclude for the resemblance between the two author's thoughts, not necessarily to propose a genealogy, but to make explicit important points in Winnicott's thought and to question about possible links between German Romanticism and Winnicott's theory.

Keywords: Schiller; Winnicott; to play.


 

 

Introdução

Nossa ideia para este trabalho surgiu a partir da seguinte afirmação de Winnicott em seu livro O brincar e a realidade (1971/1975):

Ao enunciar minha tese, como muitas vezes aconteceu, descubro que ela é muito simples e poucas palavras se tornam necessárias para abranger o assunto. A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é desenvolvido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que ele não é capaz de brincar para um estado em que o é (Winnicott, 1971/1975: 63).

Winnicott tem por costume falar de forma fácil sobre coisas que vão muito além das palavras simples que usa em seu vocabulário técnico - como quando elaborou, juntamente com Isa Benzie, produtora da BBC Londres, o termo mãe dedicada comum, que lhe traria posteriormente várias críticas afirmando que havia nisso uma postura sentimentalista de Winnicott em relação às mães. Sobre isso, afirmava: "Tenho que conviver com estes pequenos inconvenientes, pois não me envergonho daquilo que está implícito naquelas palavras" (Winnicott, 1987/2006: 2).

A definição da palavra "brincar", tal como ela nos é apresentada no dicionário - divertir-se, folgar, foliar -, não poderia de forma alguma encerrar o que Winnicott (1971/1975) queria expressar, e, para não incorrer no erro de uma interpretação simplória e reducionista, buscamos, então, algo que sustentasse essas afirmações aparentemente simples. Descobrimos que aquilo que inicialmente insinua-se simples e fato fechado revela-se, na verdade, com raízes muito profundas e solidamente firmadas em um rico solo de pesquisa e prática clínica.

O que nos interessa neste artigo não é salientar a diferença do brincar para Winnicott em relação a Freud, Klein ou outros psicanalistas, mas, sim, interrogar sobre as possíveis bases teóricas ou uma das bases sobre as quais ele erigiu sua teoria sobre o brincar e sua aplicação na prática clínica. Winnicott era um prático e, como ele mesmo afirmou, boa parte do que escrevia provinha de sua experiência clínica e da observação de seus pacientes. Contudo, ele também era um estudioso, donde concluímos que, apesar de não citar uma fonte como base de sua teoria, poderia haver entre as leituras disponíveis algo de que ele pudesse ter partido. Encontramos o seguinte: "O homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga" (Schiller, 1795/1989: 84). Frase muito semelhante à que Winnicott (1971/1975) escreveu quase duzentos anos depois: "É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem na sua liberdade de criação", e completa: "é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)" (Winnicott, 1971/1975: 79-80).

Esse fato não parece, a nosso ver, mera coincidência, tendo em vista a rica educação que Winnicott recebeu e o convívio, segundo Outeiral (1995/1996), com um seleto grupo intelectual inglês, conhecido como Bloomsbury. Desse grupo, fizeram parte intelectuais importantes do período conhecido como "eduardiano", pessoas como Virginia e Leonard Woolf, Lipton Strachey, R. Keines, T. S. Eliot, dentre outros destacados participantes, de diferentes setores do pensamento britânico da época. Virginia e Leonard Woolf, escritores e donos da Hogarth Press, editaram as obras de Freud em inglês traduzidas do alemão por James Strachey, analista de Winnicott, assim como editaram algumas de suas obras. Winnicott pôde desfrutar intensamente dessa atmosfera de liberdade de pensamento e riqueza cultural.

Schiller, muito antes desse período, foi um genial escritor e filósofo alemão, integrante do movimento Sturm und Drang que veio a dar origem ao Romantismo alemão. Goldman (1993) sustenta que há muitas semelhanças entre o pensamento de Winnicott e o romantismo. São elas: a importância do indivíduo espontâneo que expressa sua autenticidade; uma valorização da criatividade; uma apreciação da emoção como fonte de saber; a visão do artista como um criador individual, "cujo espírito criativo é mais importante que a estrita aderência às regras formais" (Goldman, 1993: 97) e uma ênfase na imaginação.

Ao buscar uma possível base filosófica para o conceito de brincar de Winnicott (1971/1975) na filosofia romântica alemã, além do problema da não contemporaneidade dos autores resta, ainda, o entrave da língua e a questão da tradução da obra para o português que poderia ser facilmente apontada como agente de discordância da semelhança aqui assinalada, uma vez que Winnicott escreveu em inglês e Schiller, em alemão. Para dirimir essas questões, buscamos as fontes nas línguas originais. A expressão to play da obra de Winnicott foi traduzida para o português como "brincar"; e zu spielen, de Schiller, foi traduzida para o inglês como to play e para o português como "jogar". A partir disso, concluímos que brincar é o mesmo que jogar, e que ambos os autores estavam falando de um mesmo conceito ao postularem que o jogo ou brincadeira têm a mesma função, qual seja, integrar partes dissociadas da natureza humana: dentro e fora, realidade externa e interna, razão e afeto.

Importante ressaltar, antes de passarmos aos pontos convergentes das teorizações de Schiller e Winnicott, que, no Brasil, o pensamento winnicottiano tem sido aproximado do pensamento de Heidegger por autores como Loparic (1994) e Santos (2007), dentre outros. Assim, o objetivo deste artigo é apontar para uma direção alternativa, não necessariamente excludente, para a leitura e compreensão da obra do autor inglês, mais precisamente, aqui, no que se refere ao brincar.

 

A estética schilleriana - A importância do jogo

Há temperamentos que só podem andar erguidos sobre a terra, pois,
sem isso, a vida não teria para eles nenhum valor. Em cada linha de
Schiller se percebe desde o primeiro momento esta atitude de homem ereto,
altivo, que se levanta como uma chama.

Dilthey, 1945: 218

 

"1759, 10 de novembro. Meu filho Johann Christoph Friedrich (Fritz) nasceu em Marbach" (Salvado & Ávila, 1972: 9): é dessa forma que Johann Caspar Schiller, um cirurgião aspirante a oficial, em meio às tropas de Vurtemberg alinhadas contra o exército do rei da Prússia durante a Guerra dos Sete Anos, registra o nascimento de seu filho.

Reale (2005) distingue três períodos na vida de Schiller: o primeiro, no qual ele é considerado um dos maiores Sturmers como demonstram suas obras Os salteadores, A conjura de Fieschi em Gênova, Intriga e amor e Dom Carlos; o segundo, em que foi um grande estudioso de filosofia - Kant em particular - e de história, por mais de uma década, fato que lhe possibilitou assumir a cátedra de História na Universidade de Jena; e o terceiro, marcado por sua volta ao teatro com a trilogia de Wallenstein, Maria Stuart e Guilherme Tell.

Encontra-se na segunda fase da vida do autor o ponto de maior interesse para nosso texto, uma vez que ela constitui o locus nascendi de sua ideia de jogo. Partindo de um estudo da estética kantiana, ao mesmo tempo que a critica, Schiller amplia a ideia exposta por Kant. Eagleton (1993) afirma que Kant, ao elaborar seu conceito de estética, separou de modo muito severo a natureza e a razão, ao passo que a estética proposta por Schiller irá uni-las, sem negá-las, através de um estágio transicional ou intermediário, entre o sensual bruto e o sublimemente racional, denominado por ele de "impulso lúdico" (Eagleton, 1993: 79). Salta aos olhos a semelhança entre as teorias de Winnicott e Schiller quanto ao desejo de pensar em um espaço transicional. Não bastasse isso, esse "estado intermediário", nos dois autores, será melhor representado pelo jogo e pela arte. Pensemos, por exemplo, como Schiller (1802/1991) pensa no teatro como uma prática que vai colocar justamente essas duas partes da alma humana - o sensível e a razão - juntas em um espaço intermediário.

A partir de meados do século XVIII, o termo estética passa a fazer distinção não mais entre arte e vida, mas entre material e imaterial, entre coisas e pensamentos, entre sensações e ideias. A estética passa a abranger a totalidade da vida sensível, o movimento dos afetos e aversões, do modo como o mundo externo pode afetar o corpo sensório, "é como se a filosofia acordasse subitamente para o fato de que há um território denso e crescendo para além de seus limites e que ameaça fugir inteiramente à sua influência" (Eagleton, 1993: 17).

"A revolução no mundo filosófico abalou o fundamento sobre o qual a estética estava assentada, e seu sistema anterior, se é que se pode dar-lhe esse nome, foi deixado em ruínas" (Schiller, 1795/1989: 11). Dessa forma Schiller descreve ao príncipe de Augustenburg o estado em que se encontra a estética desde que seus alicerces foram abalados pela crítica kantiana (Mota, 2010).

Kant preparou os fundamentos, contudo faltou-lhe um acabamento, e Schiller se propõe como tarefa completar o sistema deixado: "Com efeito, eu jamais teria tido a coragem de tentar solucionar o problema deixado pela estética kantiana se a própria filosofia de Kant não me proporcionasse meios para isso" (Schiller, 1795/1989: 12). Assim, em busca dos resultados últimos da estética kantiana, se inserem os ensaios estéticos de Schiller.

Longe de considerar-me aquele a quem isso esteja reservado, quero apenas experimentar até onde me leva a trilha descoberta. Se não me levar diretamente à meta, ainda assim não está de todo perdida a viagem pela qual se busca a verdade (Schiller, 1795/1989: 12).

Para Schiller (1795/1989), o homem é dotado de dois impulsos (Triebe) básicos, o sensível e o racional. A origem do impulso sensível coincide com a origem do homem, enquanto o impulso racional surge com a lei e os conceitos de justiça e verdade que são expostos ao homem de modo inevitável, indelével e incompreensível. Somente após os dois impulsos existirem no homem é que está erigida a humanidade; "até que isso aconteça, tudo nele se faz segundo a lei da necessidade" (Schiller, 1795/1989: 103).

Apenas quando os dois impulsos estão presentes no homem é que, então, ele está completo. Contudo, o impulso sensível, que atua evidenciando a necessidade, deve ceder seu lugar para que o pensar exerça poder sobre o homem impondo a ele a necessidade lógica ou moral. Schiller (1975/1989: 106) afirma que "o homem não pode passar imediatamente do sentir para o pensar; ele tem que retroceder um passo, pois somente quando uma determinação é suprimida pode entrar a outra que lhe é oposta"; "a tarefa portanto, é destruir e conservar a um só tempo a determinação do estado, o que só é possível se lhe opusermos uma outra", e ilustra esse movimento da seguinte forma: "os pratos da balança equilibram-se quando vazios e também quando suportam pesos iguais".

Segundo Schiller (1795/1989), trata-se de uma luta inglória tentar elevar o homem moralmente, racionalmente, sem ao mesmo tempo elevar sua sensibilidade. Na tentativa de encontrar algo que pudesse conciliar as forças moral e sensível, Schiller elabora o conceito de jogo, que, segundo ele "suportará o edifício inteiro da arte estética e da bem mais dificultosa arte de viver" (Schiller, 1795/1989: 16).

Schiller (1795/1989) denomina impulso lúdico (Spieltrieb) uma área ou estágio transicional que permite que razão e sensibilidade atuem juntas sem que haja a sobreposição de uma à outra. Assim, "o homem é como que recriado em todas as suas potencialidades e recupera sua liberdade tanto em face das determinações do sentido quanto em face das determinações da razão", de modo que assim o homem pode de fato experimentar um estado de liberdade (Schiller, 1795/1989: 17).

Assim, Schiller (1795/1989: 79) afirma que o impulso lúdico, "no qual ambas atuam juntas, tornará contingentes tanto a nossa índole formal, quanto material, tanto nossa perfeição, quanto nossa felicidade", isto porque, "na medida em que toma às sensações e aos afetos a influência dinâmica, ele os harmoniza com as ideias da razão, e na medida em que despe as leis da razão de seu constrangimento moral, ele as compatibiliza com o interesse dos sentidos".

Por ter a capacidade de harmonizar as forças opositoras existentes dentro do homem, sem que uma se submeta a outra e sem que se restrinja sua força, o impulso lúdico permite ao homem a experiência de uma vida inteira, plena em sua humanidade (Martins, 2008). Por isso sua afirmação de que o homem só é homem no pleno sentido da palavra quando joga. Complementando sua ideia, ele afirma: "Quando as duas qualidades se unificam, o homem conjuga a máxima independência e liberdade, abarcando o mundo em lugar de perder-se nele" (Schiller, 1795/1989: 73).

Winnicott também advoga contra a dependência, como mostraremos adiante. Para o momento, percebam que Schiller acompanha Kant no grande projeto da Aufklärung: tornar o homem independente e livre, não submisso a ninguém. Schiller despreza a ideia de que "as máximas da passividade e da obediência doentia valham como a suprema regra de vida" (Barbosa, 2004: 25). A ideia de jogo é importante aqui, pois é o impulso lúdico que permite ao homem não ser dominado nem pela sensibilidade, nem pela razão. Saber transitar entre esses dois espaços é ser livre (Caminha, 2007-2008).

Eagleton (1993) afirma que Schiller antropologiza inteiramente a categoria epistemológica estética ao concebê-la como capaz de produzir a reconciliação entre sensação e espírito, entre matéria e forma, entre mudança e permanência, finitude e infinitude. Mais uma vez, notamos uma semelhança com o pensamento de Winnicott. Também para o autor inglês está em questão, ao longo de sua obra, reconciliar opostos, mostrar pontos transicionais, por assim dizer, onde víamos campos distintos. A primazia do estético em Schiller é tão importante como a teoria do brincar e da criatividade em Winnicott.

Uma palavra final sobre a tendência ao jogo em Schiller: Spieltrieb, seja traduzido por tendência ou impulso, é algo não natural, não se trata de um instinto (Duflo, 1999). O jogo entre o sensível e o moral não se estabelece ex nihilo: é um trabalho de cultura ou, para já nos aproximar de Winnicott, de maternagem.

 

O homem como um "vir a ser"

Para Winnicott, todo indivíduo possui uma tendência inata ao amadurecimento e, para que essa tendência se concretize, é necessária a adaptação do meio ambiente ao bebê e suas necessidades (Outeiral, 2005). Essa adaptação é exigida mais intensamente no relacionamento do bebê com sua mãe (ou alguém que faça esse papel), que aceite a ideia de ser responsável por um bebê inicialmente absolutamente dependente dela.

Existe certamente um fator de crescimento inerente, mas a dependência inicial a um ambiente adaptado às necessidades é tão grande que esse fator de crescimento fica encoberto. No desenvolvimento corporal o fator crescimento é mais claro; no desenvolvimento da psique, por contraste, há a possibilidade do fracasso a cada momento, e na verdade é impossível que exista um crescimento sem distorções devidas a algum grau de fracasso na adaptação ambiental (Winnicott, 1988/1990: 47).

Freud demonstrou que a neurose tem seu ponto de origem no relacionamento inicial, pertencente à época da lactação, e Winnicott (1963/1982), em sua obra O ambiente e os processos de maturação, retoma a aplicação da teoria freudiana à infância. Com base em seus estudos e prática clínica, Winnicott (1963/1982) formulou a ideia de que distúrbios mentais que necessitam de hospitalização são desencadeados por falhas ambientais ocorridas durante a primeira infância. Para ele, o distúrbio psiquiátrico, a doença propriamente dita, se instala não como um algo a mais no desenvolvimento do ser, mas, sim, como algo que faltou para que o desenvolvimento fosse alcançado. Essa falta do ambiente para com o processo de desenvolvimento não necessariamente implica ausência de atitude, mas, muitas vezes, um excesso, uma invasão na apresentação de um conteúdo em um momento em que o bebê ainda não estava pronto para acessá-lo.

Tomando como base um desenvolvimento emocional saudável, teremos um bebê sem complicações ou limitações físicas, que foi acolhido por um ambiente estável e por uma mãe capaz de reconhecer suas necessidades e entrar em sintonia com ele, sem que isso traga muito sofrimento para si. A mãe que consegue desenvolver essa capacidade é denominada por Winnicott (1963/1982) de mãe suficientemente boa e o ambiente propiciado por ela será denominado ambiente facilitador. Essa mãe vai fornecer naturalmente as provisões necessárias para que o bebê - tido aqui como um vir a ser dotado de uma tendência inata ao desenvolvimento - consiga se constituir como uma unidade que continuará sua jornada partindo da dependência absoluta para a dependência relativa, seguindo rumo à independência. Assim, Winnicott coloca o desenvolvimento humano como uma jornada cuja estrela guia é a independência jamais atingida, como o navegante que guia seu barco pela estrela sabendo que jamais a alcançará (Brett, 1998).

É necessário esclarecer que o desenvolvimento emocional está ligado à maturidade, e maturidade para Winnicott é igual a saúde: "O ser humano saudável é emocionalmente maduro tendo em vista a sua idade no momento. A maturidade envolve gradualmente o ser humano em uma relação de responsabilidade para com o ambiente" (Winnicott, 1988/1990: 30).

Winnicott (1958/2000) descreve as tarefas do meio facilitador em termos de: holding, handling e apresentação do objeto. Desse modo, o ambiente fornece sustentação adequada, manuseio adequado e apresentação do mundo externo ao bebê de maneira adequada, ou seja, apresentando a este apenas o que ele está pronto para descobrir em seu tempo, sem invasões nem precipitações.

Como fora anteriormente colocado, é praticamente impossível que não ocorram falhas na adaptação do ambiente e, portanto, podemos entender que o indivíduo torne-se, na idade adulta, mais ou menos saudável ou doente. A variável nesta "relativa saúde" se deve a alguns fatores como a data da falha, sua gravidade, a capacidade de o indivíduo lidar com ela no momento em que ocorre e se houve ou não medidas reparadoras que possibilitaram outro olhar para o ocorrido, evitando a paralisação do desenvolvimento. Quanto mais precoce a falha, maior o comprometimento do processo de desenvolvimento causado por ela. Nesse sentido, o distúrbio esquizofrênico é, para Winnicott, tido como uma grande falta para a constituição do ser, devido à precocidade da inadaptação do ambiente frente às necessidades do bebê (Winnicott, Shepherd & Madeleine, 1959/1994).

Assim, nessa jornada rumo à independência, tendo o ambiente cumprido de forma suficiente seu papel de facilitador do processo, o indivíduo consegue um nível suficientemente bom de saúde:

Na saúde, que é quase sinônimo de maturidade, o adulto é capaz de se identificar com a sociedade sem sacrifício demasiado da espontaneidade pessoal; ou, dito de outro modo, o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades pessoais sem ser anti-social, e, na verdade, sem falhar em assumir alguma responsabilidade pela manutenção ou pela modificação da sociedade em que se encontra (Winnicott, 1963/1982: 80).

Essa maturidade alcançada em um processo de desenvolvimento que deu certo o suficiente não é algo imutável e inabalável que, depois de alcançado, não retrocede; ao contrário, é um processo contínuo, passível de quebra - ou seja, em algum momento, uma determinada situação pode pôr em risco a saúde alcançada e deixar toda uma estrutura abalada. Ocorrendo uma regressão no processo do desenvolvimento, essa regressão tanto pode chegar a seu desfecho naturalmente e o indivíduo voltar para sua jornada sem maiores exigências do meio, quanto precisar de intervenção para que possa se recuperar e dar sequência a sua jornada (Winnicott, 1958/2000).

 

O brincar na psicanálise winnicottiana

O natural é o brincar e o fenômeno altamente
aperfeiçoado do século XX é a psicanálise.
Para o analista, não deixa de ser valioso que se
lhe recorde constantemente não apenas aquilo que é devido a Freud, mas
também o que devemos à coisa natural e universal que se chama brincar.

Winnicott, 1971/1975: 63

 

Tendo Winnicott optado pela saúde como foco de seus estudos, tudo o que está relacionado ao processo de aquisição da saúde e do amadurecimento emocional passa a requerer um olhar mais atento. Nesse movimento de colocar uma lupa sobre os processos facilitadores do desenvolvimento, Winnicott se viu diante da tarefa de olhar mais de perto o brincar, considerando-o não só como uma atividade do setting terapêutico passível de análise ou como restrita às crianças, mas como algo terapêutico em si mesmo e que em tudo se aplica ao adulto: "A característica essencial do que desejo comunicar refere-se ao brincar como uma experiência, sempre criativa, uma experiência na continuidade espaço tempo, uma forma básica de viver" (Winnicott, 1971/1975: 75).

Primeiramente, vale ressaltar que, para Winnicott (1988/1990: 130), o homem, além de dotado de uma tendência inata ao amadurecimento, como já fora colocado, é também dotado de uma criatividade primária: "ao menos enquanto não viermos a saber mais, devo presumir que existe uma criatividade potencial". Para o autor, todo bebê tem uma contribuição pessoal a ser dada já na primeira mamada teórica: "O mundo é criado de novo por cada ser humano que começa o seu trabalho, no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento e da primeira mamada teórica" e continua: "Gradualmente, surge uma compreensão intelectual do fato de que a existência do mundo é anterior à do indivíduo, mas o sentimento de que o mundo foi criado pessoalmente não desaparece" (Winnicott, 1988/1990: 130).

Para Winnicott (1988/1990), a questão da criatividade potencial e a experiência vivida através dela são de fundamental importância para o estudo de várias questões, entre elas a importância do manejo do bebê nas primeiras horas e dias que seguem ao nascimento, os sentimentos de irrealidade das pessoas esquizoides e dos doentes esquizofrênicos e, entre outras citadas, uma de maior importância para o estudo do brincar propriamente dito, "a reivindicação da religião e da arte, considerando a ilusão como algo valioso por direito próprio" (Winnicott, 1988/1990: 131).

Tomando como certa a questão da criatividade primária como ingrediente particular e constituinte básico para o desenvolvimento da capacidade de brincar, passa-se então para a questão de situar o brincar em um espaço no qual ele se torna possível. Para isso, é necessário esclarecer que uma das características do brincar é que ele não é nem da ordem da realidade externa nem da realidade interna propriamente dita, está em um meio entre ambos.

Winnicott (1971/1975: 15) sustenta que, para todo ser que chegou a se constituir como uma unidade, existe uma realidade interna, um mundo interno que pode ser rico ou pobre. Contudo isso não é suficiente, sua reivindicação "é que se existe um enunciado duplo, há também um triplo: a terceira parte da vida de um ser humano, uma terceira área de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa". Assim temos a delimitação do espaço em que se situa e se desenrola o brincar.

O brincar então se desenvolve dentro de um espaço potencial, numa zona intermediária, nem dentro, nem fora, nem realidade interna, nem realidade objetivamente percebida, nem no Eu, nem no Não-Eu, mas no entre ambos, de modo que, ao mesmo tempo que não está contido neles, os preserva e harmoniza.

Esse processo de percepção do Não-Eu, do mundo externo, é naturalmente ansiogênico e vai requerer o desenvolvimento de recursos para lidar com ele. Tal recurso é a capacidade de brincar, que se constitui a partir da criação de objetos transicionais e a experiência de fenômenos transicionais.

Para Winnicott (1971/1975), transicional não é o objeto ou o fenômeno propriamente dito, mas sim uma característica de seus usos. É algo que transita entre o mundo interno e o mundo externo que o bebê acaba de encontrar, sem pertencer objetivamente a nenhum dos mundos. O objeto transicional harmoniza os aspectos conflitantes e possibilita que o bebê experimente uma nova realidade sem que ocorra um excesso de tensão que poderia ocasionar uma quebra nesse processo de "vir a ser".

Sendo o brincar o meio pelo qual se torna possível para o homem integrar aspectos dissociados dentro de si e possibilitar uma experiência de viver seu verdadeiro self, usufruindo da espontaneidade e da capacidade criativa, fica esclarecido por que ele afirma que seria somente através do brincar que o indivíduo poderia usufruir de sua personalidade de forma integral. Também justifica o fato de que, para que a psicanálise ocorra, é preciso que o indivíduo, antes, seja capaz de brincar, pois é necessário que ele esteja pronto para ser criativo perante o velho problema e para integrar os aspectos dissociados de sua personalidade. Sem estas características do que aqui se apresenta por brincar, a psicanálise de fato, parece não poder ocorrer (Fulgencio, 2008).

Concluindo, Winnicott (1971/1975) salienta:

O que quer que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também aos adultos; apenas, a descrição torna-se mais difícil quando o material do paciente aparece principalmente em termos de comunicação verbal. Sugiro que devemos encontrar o brincar tão em evidência na análise de adultos quanto o é no caso de nosso trabalho com crianças. Manifesta-se, por exemplo, na escolha das palavras, nas inflexões de voz e, na verdade, no senso de humor (Winnicott, 1971/1975: 61).

 

Conclusão

É sobre os conceitos propostos por Schiller (1795/1989; 1802/1991), de jogo, impulso lúdico e o homem sentido como uma totalidade e experimentando um pleno estado de liberdade, que este estudo trata. Estariam aí as raízes do que posteriormente foi desenvolvido por Winnicott em suas formulações psicanalíticas sobre o brincar, sobre a própria psicanálise como método especializado do brincar?

A aproximação entre Schiller e Winnicott que propomos não precisa necessariamente de um atestado genealógico. Não é o caso de se perguntar se Winnicott leu Schiller. O que nos interessa é pensar nos pontos de convergência entre esses dois autores a fim de ampliar a compreensão da obra winnicottiana. As duas teorias ocupam-se não apenas com dentro e fora, razão e emoção, realidade compartilhada e realidade interna. Elas vão além dessas dualidades, apresentando uma terceira área na qual essas forças e realidades tão distintas desfrutam de liberdade e igualdade de ação, dando ao homem um sentimento de integração, de unidade psique-soma, de um "ser" propriamente constituído, como uma pessoa singular e capaz do gesto espontâneo.

Assim o brincar na teoria winnicottiana nos parece também servir a um fim semelhante ao proposto pelo jogo na filosofia schilleriana, qual seja, o de harmonizar aspectos por si mesmos dissociados da natureza humana, tendo ambos, como campo de ação, uma zona intermediária que possibilita essa harmonização entre o dentro e o fora, entre realidade interna e o real compartilhado.

Partindo de uma criatividade primária e tendo sido adequadamente estimulado por um ambiente suficientemente bom, o indivíduo consegue preservar ao longo de sua jornada sua espontaneidade, sua contribuição pessoal a cada experiência e dessa forma senti-la como real e sentindo-se real dentro dela.

Através da capacidade de brincar, o indivíduo consegue, a cada novo contato com a experiência, lançar sobre ela um novo olhar, tendo a possibilidade de encontrar saídas criativas para velhos problemas. Neste ponto é que se dá o trabalho do psicanalista: possibilitar uma ambiência suficientemente boa para que o brincar se torne possível. Dessa forma, o brincar aqui apontado não se finda apenas como uma pré-condição para a análise, ou sua finalidade, seu meio ou seu objetivo, engloba todos esses aspectos, sendo terapêutico em si mesmo por preservar no indivíduo aquilo que lhe é genuinamente seu.

Uma perspectiva importante do presente trabalho é pensar na dimensão política da interlocução proposta. Como mostramos acima, Schiller participa da Aufklärung, ao lado de Kant, propondo a "maioridade moral" do humano (Santos, 2004). Se lermos a teoria do brincar de Winnicott com essa perspectiva, também encontraremos no autor uma crítica radical à submissão. Ele considera que "imoralidade para o lactente é se submeter, à custa de seu modo pessoal de viver" (Winnicott, 1963/1982: 95). É tarefa dos adultos propiciarem à criança a oportunidade de ser criativa na arte da vida de tal forma que ela não precise copiar nem se submeter, mas que possa desenvolver "genuinamente uma forma de autoexpressão" (Winnicott, 1963/1982: 98). Essa autoexpressão, pensamos, se dá no brincar pessoal.

O presente texto pretende ser também uma pequena contribuição ao debate já iniciado por diversos autores (Bezerra Jr. & Ortega, 2007; Graña, 2003) que tentam fazer dialogar a teoria winnicottiana com outras perspectivas, do campo da filosofia, a fim de esclarecer seu pensamento e enriquecer a prática clínica advinda dessa discussão.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em de 9 de outubro de 2012
Aceito para publicação em 07 de fevereiro de 2013