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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Notas sobre o sujeito da psicanálise1

 

Notes on the subject of psychoanalysis

 

 

Glória Maria Monteiro de CarvalhoI; Alba Gomes GuerraII

IDoutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/UNICAMP), professora e pesquisadora (CNPq) do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAPE). Pernambuco, Brasil. E-mail: gmmcarvalho@uol.com.br
IIDoutora em Psicologia; Psicanalista; Professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pernambuco, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo convoca a uma discussão sobre a assertiva lacaniana de que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência inaugurada por Descartes. O sujeito da ciência e da psicanálise coloca tais campos em uma relação indissociável, porém antinômica. Assim, a subjetividade que a ciência se esforça para suturar, a psicanálise não poderia renunciar ao esforço de mostrá-la. Trata-se, para a psicanálise, da noção de sujeito como função, suspendendo dessa noção a ideia de um cruzamento de qualidades ou propriedades. Procurou-se ilustrar essa discussão através de um caso clínico.

Palavras-chave: sujeito; função; psicanálise; ciência; dúvida cartesiana.


ABSTRACT

This article is an invitation to discuss the Lacanian assertion according to which the subject under psychoanalysis can only be the subject of science as originally conceived by Descartes. The subject of science and psychoanalysis places both fields into an inseparable relationship, notwithstanding antinomic. Thus, the subjectivity that science strives to suture could not be disregarded by psychoanalysis in its effort to show it. Psychoanalysis represents the notion of the subject as a function, and not as a bunch of qualities or properties. For the sake of illustration, a clinical case is presented.

Keywords: subject; function; psychoanalysis; science; Cartesian doubt.


 

 

Introdução

Antes de iniciarmos este artigo, consideramos importante deixar clara a linha com a qual nossas colocações vão sendo costuradas ao longo do texto. Essa linha diz respeito à noção de sujeito da psicanálise, por meio da qual outros temas entrarão em cena e se entrelaçarão. Tais temas consistem nas concepções lacanianas de nó borromeu e de tempo lógico. Para dar visibilidade ao entrelaçamento referido, recortamos da literatura um caso clínico no qual a dúvida, manifestação exemplar do sujeito, do ponto de vista psicanalítico, tornou-se a questão central de uma cena analítica.

Invocamos, então, as palavras de Lacan (1966/1998: 873) em "A ciência e a verdade": "Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência, talvez passe por um paradoxo".

Recorremos a Milner (1995) para uma aproximação a esse sujeito instituído pelo cogito cartesiano - penso, logo existo - que inaugura a ciência. O gesto inaugural, conforme esse autor, significa esvaziar o pensamento das qualidades - por exemplo: afirmação, negação, concepção, intenção, imaginação - que lhe são, comumente, atribuídas. O pensamento é então esvaziado, pelo menos em certo momento da empreitada cartesiana.

A esse respeito, diz Lacan (1961-1962/2003):

Esse penso, do qual dissemos que propriamente falando era um nonsense - e é o que lhe dá valor -, ele, obviamente, não tem mais sentido que o minto, mas ele, a partir de sua articulação, só pode dar-se conta de que logo existo não é a consequência que ele tira, mas é que ele só pode pensar a partir do momento em que verdadeiramente ele começa a pensar (Lacan, 1961-1962/2003: 106).

E mais adiante: "[...] Será que não há bastante disso para suportar esse ponto impensável e impossível do penso, ao menos sob sua forma de diferença radical?" (Lacan, 1961-1962/2003: 107).

Ao que tudo indica, esse ponto impensável e impossível do sujeito se deixa, de algum modo, vislumbrar na dúvida. No entanto, seguindo a formulação cartesiana, duvidar não significa imitar o procedimento dos céticos, os quais dão demonstrações de estar sempre irresolutos (Descartes, 1637/1975). Esse ponto, ao que parece, localiza-se na dúvida cujo conteúdo se perde, ou, em outras palavras, fica sem sentido a reciprocidade entre o ato de duvidar e aquilo sobre o qual esse ato incide. Seria, então, a dúvida como um instante lógico ou, conforme diz Porge (2006), como um momento de suspensão do qual emerge um saber sem qualidades, evocando a expressão lacaniana nada a saber como sendo um saber que emerge do engano.

 

A função sujeito e o nó borromeu

Com fundamento no que foi posto antes, destacamos que o sujeito sem qualidades (pontual e evanescente) do pensamento, da dúvida, do engano - sujeito que funda a ciência e a psicanálise - engendra esse dois campos em uma relação indissociável. No entanto, pelo menos aparentemente, trata-se de uma relação paradoxal, posto que, segundo Lacan (1966/1998), ainda em "A ciência e a verdade":

Ela (a lógica moderna) é, de modo inconteste, a consequência estritamente determinada de uma tentativa de suturar o sujeito da ciência, e o último teorema de Gödel mostra que ela fracassa nisso, o que equivale a dizer que o sujeito em questão continua a ser o correlato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência mostra-se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo (Lacan, 1966/1998: 875).

Nesse sentido, o sujeito que a ciência se esforça (embora sem possibilidade) para suturar, a psicanálise, de algum modo, não poderia renunciar ao esforço de mostrar, configurando, assim, uma relação excludente. Lembremos, contudo, que se trata de um sujeito (evanescente) da dúvida, o qual suspende a noção de sujeito como um cruzamento de qualidades ou de propriedades.

Ao que parece, os vários desdobramentos do sujeito sem qualidades seriam estenografados pela expressão lacaniana função sujeito. Segundo Corrêa (2003), o campo lacaniano é cheio da noção de função (função paterna, função metonímica, função fálica...); no entanto, Lacan retira essa noção de um campo - o da matemática - que é bem rigoroso do ponto de vista da lógica.

Por sua vez, esse rigor lógico pode ser indicado pelo uso que Lacan (1961-1962/2003) faz do número, ou seja, o uso do número como uma função, ou a função do número, expressão utilizada por esse autor.

Vale notar que, no campo da lógica fregeana, o número, como uma função, perde o seu estatuto de referência, ou seja, ele não é mais concebido como representação (quantitativa) dos objetos do mundo, desfazendo-se, então, o seu caráter hierárquico. Nessa perspectiva, concebe-se um lugar vazio do qual os vários números decorrem, isto é, um lugar pelo qual pode passar uma variedade de números, submetendo-se a operações segundo leis determinadas. Como diz o referido lógico: "Ora, então a expressão 'y é uma função de x' não tem nenhum sentido, se não se a complementa indicando a lei pela qual se dá a associação" (Frege, 1975: 124).

Convém realçar que esse sujeito esvaziado - sujeito da função do número - será melhor compreendido a partir formulação lacaniana de nó borromeu, na medida em que as três instâncias subjetivas que se enodam (real, simbólico e imaginário) são simétricas, isto é, não hierarquizadas ou não hierarquizáveis. Em outras palavras, uma das instâncias não possui qualidades que lhe permitam ser colocada em uma posição superior ou inferior às outras duas (Milner, 2002). Essa simetria (essa não hierarquização) pode ser deduzida da condição lógica instituída por Lacan (1972-1973/1985): se um dos três elos se solta os outros dois se liberam. Por sua vez, é pelo desatamento de um dos elos (liberando os outros dois e, assim, desfazendo o nó) que se pode dizer, retroativamente, que os três elos estavam atados à maneira de um nó (borromeu). Explicando melhor, trata-se de uma apreensão lógica: seria através do desatamento - ou mesmo do afrouxamento - que esse nó poderia ser apreendido.

Retomando a noção de sujeito do pensamento cartesiano, o qual aparece como um instante de suspensão, poder-se-ia dizer que o sujeito da psicanálise aparece em um instante em que ocorre a desestabilização do nó - na dúvida, no engano -, instante lógico de dispersão em que se rompem os sentidos predeterminados (Milner, 1983).

Assim, um real que é trazido pelo simbólico para o imaginário por um instante provoca rupturas nesse imaginário, quebrando os sentidos predeterminados. É, desse modo, um movimento que desestabiliza o enodamento entre os elos. No entanto, de acordo com Milner (1983), é preciso se apressar para concluir, ou melhor, é preciso pressa para restaurar o nó. Nessa perspectiva, retomando o que foi dito antes, o instante de suspensão no cogito, ao ser confrontado por Descartes, foi apressadamente elaborado, tendo sido, então, recuperado o nó, ou melhor, tendo sido esquecido o sujeito do pensamento (esvaziado). Vale notar que o sujeito, ao se confrontar com a dúvida, com a impossibilidade de decidir, com a quebra instantânea de sentido, confronta-se, em última instância, com o seu próprio esvaziamento. Em outras palavras, confronta-se com a sua condição de sujeito sem qualidades. Permanecer no confronto com a ruptura de sentidos - olhar fixamente a dispersão -, isto é, permanecer frente a frente com esse sujeito sem qualidades, levaria um dos elos - o lugar (imaginário) dos sentidos predeterminados - a se desatar e o nó se desfaria. A pressa em restaurar o nó (a pressa de concluir) seria, portanto, necessária, na medida em que, acrescenta Milner (1983), não se poderia olhar fixamente a dispersão, a não ser na psicose, o que, portanto, tem um preço.

 

Antes de suspender a discussão: uma breve ilustração

Para atribuir maior visibilidade à noção de sujeito como função, isto é, como ausência de qualidades e não como um conjunto de propriedades, chamaremos à discussão um caso clínico extraído do texto "Histerização de um obsessivo" de Carlos Augusto Nicéas (1992).

José e sua dúvida

Quando José já completava um ano de idas ao consultório do analista, sempre anunciando o seu projeto de interromper o tratamento, numa transferência assim marcadamente negativa, produz ele um lapso, expressão maior do movimento equívoco do seu desejo e por isso mesmo crucial para sua cura. Ao entrar certo dia no consultório resiste a deitar no divã e sentando diante do analista assim se expressa: "a última sessão foi a gota d'água... vou deixá-lo sozinho com seus interesses. Não vou mais ficar aqui somente repetindo a minha vontade de interromper esta análise... e nem preciso mais ouvir a sua opinião sobre isso. Hoje eu vim decidido: vou procurar o mesmo analista". De imediato, se dá conta de que dissera "o mesmo analista" no lugar de "outro analista" (um segundo nome que guardava no bolso desde o começo). Num visível desconforto fica a se indagar: "e agora José? Eu não queria dizer isso!". Ao fitar o analista num olhar indagativo, ouve dele a seguinte resposta: "mas foi dito. Agora, volte para o divã que eu vou levar a sua análise até o fim". Voltou para o divã e lá permaneceu em silêncio até o fim da sessão. Na saída, murmurando diz: "isso nunca me aconteceu antes...".

No seu primeiro encontro com o analista, José disse que há treze anos pensou em fazer análise, mas sempre adiou a decisão. Agora um fato que só diz respeito à vida profissional o trouxe à presença do analista. É enfermeiro e economista. Por escolha, dirige os negócios de uma pequena empresa médica, onde recentemente fracassou na execução de um projeto de grande importância para o futuro da clínica, da qual é um dos sócios. Em certo momento, faz uma rápida alusão a uma tendência que tem para agir contrariamente ao que lhe dita a razão. Mas logo emenda: "não estou aqui para remexer velhas tendências, estou porque o fracasso atual me deixou por baixo perante os médicos, meus sócios, e eu preciso refazer as minhas forças. De qualquer modo, não dá mais para mudar... se fosse há treze anos...". E passa a um sistemático relato dos fatos para que o analista possa fazer uma análise "objetiva" para ajudá-lo a tomar a decisão de: "ficar ou sair". Seu discurso tem uma forte característica que se repete sistematicamente no modo de referir-se às coisas: comenta e enumera os defeitos e em seguida as qualidades; positivo, negativo, dizendo mesmo que é para que o analista "possa ter os dois pratos da balança no mesmo nível".

Certo dia, o analista o surpreende indagando-se sobre algo que ele parecia não haver ainda contabilizado no seu livro caixa da vida: "seria ele mais feliz ou menos feliz tendo filhos?". Aí o analista pergunta: "não ter filhos foi uma opção?" (José não os tinha dos seus dois casamentos). Num estado de visível mal-estar, José nada responde, só minutos depois diz: "é estranho eu nunca ter falado disso aqui... na próxima vez eu conto".

Os principais movimentos de José podem ser assim destacados:

- Um relato objetivo do cotidiano da empresa em que trabalha, a fim de que o analista pudesse ajudá-lo na decisão: ficar ou sair da empresa;

- Movido pela transferência, parecia tentar destituir o analista tornando-o cúmplice da sua resistência em entrar em análise, indagando-lhe: "você estaria de acordo que eu procurasse um outro tipo de tratamento?". Assim tentava José livrar-se da dúvida entre: ficar ou sair da análise;

- Numa explícita manifestação do inconsciente, produz um lapso, ao expressar sua pretensa intenção de procurar um outro analista. Desse modo, José revelava, pelo equívoco, o desejo velado de: ficar com o mesmo analista;

- Mais uma vez resistindo a se desfazer da couraça obsessiva e resistindo, também, a desistir do processo, abandonando o analista, propõe uma outra maneira de fazer trabalhar o mesmo analista, indagando: "você aceitaria que eu continuasse aqui, mas recebendo, ao mesmo tempo, um outro tipo de ajuda?". Com isso expressa o seu movimento de: ficar com o mesmo analista de uma outra forma;

- Acreditando ter o controle dos diferentes aspectos da situação analítica, no que apreendeu como regularidade (hora, dia, exigência de tudo dizer, etc.), viu-se, contudo, ameaçado pelo descontínuo tempo de duração das sessões e assim interpela o analista: "aqui, a única coisa que me escapa são as regras em relação ao tempo de duração de cada sessão. Quais são as suas intenções com esse método?". Desse modo, põe em questão as intenções do analista;

- Numa possível indicação de que a armadura de defesa obsessiva estava sendo de algum modo abalada, aproxima de si mesmo as questões até então afastadas e, mesmo servindo-se de um tom ainda defensivo, dessa vez de caráter irônico, solicita do analista uma avaliação sobre o seu caso, assim o interrogando: "seria ele um caso interessante? quem sabe, ainda, um caso não para a psicanálise mas no qual o analista insistia em persistir no erro de tê-lo recebido em tratamento?". Assim apela numa última questão: "então, que caso sou eu?". Parecia solicitar um apoio para chegar a formular sua dúvida em relação a si mesmo.

A dúvida constitutiva de José, "que caso sou eu" - nada mais que quem sou eu - está no núcleo da estrutura que se circunscreve ao ponto da indissociável relação entre as três instâncias lacanianas: real, simbólico e imaginário. Esse núcleo, por sua vez, está circunscrito a um tempo que excede a mera duração, enquanto se ramifica nos momentos de olhar (tempo instantâneo), de compreender (tempo de duração) e de concluir (tempo intervalar), configurados em um tempo lógico, tempo do inconsciente, segundo a proposta teórica de Lacan (1966/1998). Em outras palavras, nesse tempo intervalar, sujeito/analista e sujeito/analisante se constituem, de maneira indissociável, numa mesma matriz subjetiva, condição para a emergência fugaz do inconsciente.

Como José poderia ilustrar essa constituição subjetiva a partir de uma estrutura temporal? Mais ainda: como vislumbrar José no intervalo entre a ilusão de controle (ficar ou sair da empresa... ficar ou não com o mesmo analista...), a certeza antecipada e a retroação da palavra significante, que emergiria como resto de uma vivência inconsciente (ficar com o mesmo analista, querendo dizer com outro...) que parece retornar?

É de se indagar como se poderia, de fato, vislumbrar os possíveis deslocamentos temporais de José nessa estrutura. Vale lembrar que essa indagação se imporia com maior força se considerássemos que somente se poderia localizar um sujeito a partir de um vislumbre, ao mesmo tempo que, também, somente em um vislumbre se poderia constituir a subjetividade do analista.

E o que significa dizer que os lugares de sujeito/analisante, tanto quanto o de sujeito/analista, são produções fugazes que ocorrem no tempo? Segundo a ótica lacaniana, isso corresponde ao tempo de concluir, e portanto, ao intervalo entre a antecipação e a retroação do significante (Lacan, 1966/1998).

 

Mais algumas palavras

Com base no caso ilustrativo aqui enfocado, poder-se-ia dizer que, por mais racional que José se supusesse - em suas demandas na relação com o analista - a sua fala sinaliza, contudo, algo que lhe escapa ao controle, o que Lacan (1972-1973/1985) chamou de emergência do real na estrutura.

Cabe tentar, mesmo que sumariamente, explicitar um pouco esse conceito nuclear de estrutura no quadro da psicanálise lacaniana, uma vez que ele é, também, axial nos vários campos do conhecimento, assumindo, pois, as mais diferentes conotações.

Sobre essa base comum do conceito, a psicanálise lacaniana caracteriza esses elementos dando à ideia de estrutura a sua singularidade. Nesse sentido, os elementos constitutivos dessa nova conceituação - no caso: o real, o simbólico e o imaginário -, como já dito no item anterior, a tal ponto se articulam entre si, de modo indissociável, que ela foi por Lacan (1972-1973/1985) designada, metaforicamente, como nó (borromeu). Portanto, na ótica lacaniana, falar em estrutura é, necessariamente, referir-se ao entrelaçamento radical entre as três dimensões - real, simbólico e imaginário - nos efeitos do seu funcionamento de contínuo movimento de equilíbrio/desequilíbrio/reequilíbrio, onde cada corte momentâneo marca a prevalência de uma dimensão sobre as outras duas.

Trazendo a noção conceitual para a leitura do caso clínico por nós recortado, poder-se-ia pensar que, na fala de José, aparentemente restrita a questões objetivas - ficar ou sair da empresa, por exemplo -, ter-se-ia o funcionamento do simbólico, produzindo efeito sobre as suas buscas imaginárias de decisões traídas nas suas demandas, pretensamente racionais, apontando, portanto, para um real impossível de se submeter ao controle racional. Esse real, concebido como o impossível de se dizer, parece vislumbrado, em José, nos seus lapsos de linguagem, como por exemplo "ficar com o mesmo analista", quando, conscientemente, queria dizer "com outro analista". Esses lapsos, como fulgurações do inconsciente/desejo, sinalizam, talvez, um duplo movimento do simbólico pela ligação de um significante com o outro, à maneira de uma cadeia (metonímia), bem como pela substituição de um significante por outro (metáfora). Portanto, o simbólico fez com que o real furasse a instância imaginária, na estrutura de José, apontando, na encenação do caso, para a indissociabilidade das três instâncias constitutivas da estrutura, como já foi mencionado antes. Em uma palavra, diríamos que o fragmento do caso José parece ilustrar, de modo exemplar, a emergência/volta do real na estrutura, através do simbólico, mediante a retroação da palavra significante, sem controle, sobre um fundo imaginário de ilusões, suposições e expectativas, portanto repetição com diferença, como efeito de um funcionamento estrutural (Guerra & Carvalho, 2002).

Portanto, essa emergência do real/furo na estrutura que esvazia o sujeito, apontando para a sua condição de função, lugares por onde poderiam deslizar várias representações, sem entretanto se fixarem, definitivamente, em qualquer um desses lugares, contrapondo-se, então, a uma subjetividade constituída por propriedades.

 

Referências bibliográficas

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Porge, E. (2006). Jacques Lacan, um psicanalista: percurso de um ensino. Brasília: Editora Universidade de Brasília.         [ Links ]

 

 

Nota

1 Este estudo faz parte de um Projeto de Pesquisa apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

 

Recebido em 20 de fevereiro de 2013
Aceito para publicação em 15 de março de 2013