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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

ARTIGOS

 

O marciano prateado: normalidade e segregação na peça a Bela Adormecida na geladeira de Primo Levi

 

A silver martian: normality and segregation in Primo Levi's Sleeping Beauty in the fridge

 

 

Paola Mieli

Psicanalista - Presidente da Après-Coup Psychoanalytic Association (New York); Membro do Le Cercle Freudien (Paris), da Insistance (Paris); Membro Honorário da The European Federation of Psychoanalysis (Strasbourg); Pesquisadora Associada do Centre de Recherches en Psychanalyse, Medicine et Société na University of Diderot - Paris VII. Nova York, Estados Unidos. Email: parolapm@yahoo.com

 

 


RESUMO

Em seu testemunho como sobrevivente, na "necessidade" que o levou a tornar-se um escritor e a fazer sua experiência conhecida, Primo Levi transmitiu os efeitos devastadores da experiência desubjetivante dos campos de extermínio. Refletindo sobre as causas e implicações desse "imenso experimento biológico e social", como definiu o Levi contador de histórias, por outro lado pondera sobre o tema da segregação em nosso tempo, sobre a herança que os campos legaram ao presente, estabelecendo uma inquietante continuidade entre as aberrações do passado e a normalidade presente, mostrando além de qualquer dúvida como o presente está sutilmente tecido pela lógica do passado. Em sua peça A Bela Adormecida na geladeira, Levi mostra com grande acurácia e perspicácia a relação entre ciência, novas tecnologias e alienação subjetiva, assim como as formas pelas quais a normalidade e a tranquilidade de uma vida próspera são de fato o produto de uma normatividade biopolítica, universalmente aceita com uma cumplicidade descuidada.

Palavras-chave: alienação; segregação; desumanização; zona cinza; ciência; tecnologia.


ABSTRACT

In his testimony as a survivor, in the "necessity" that moved him to become a writer and make his experience known, Primo Levi has transmitted the devastating effects of the de-subjectivising experience in the Extermination Camps. Reflecting upon the causes and the implications of this " immense biological and social experiment," as he defines it, Levi the story teller, on the other hand, ponders on the issue of segregation in our own times, on the heritage the camps have bequeathed on the present, establishing a disquieting continuity between past aberrations and present normality, showing beyond any doubt how the present is subtly interwoven by the logic of the past. In his play Sleeping Beauty in the Fridge, Levi shows with great acumen and perspicacity the strict relationship between science, new technologies, and subjective alienation, as well as the ways in which normality, and the tranquility of a prosperous life, are in fact the product of a bio-political normativity, universally accepted with careless complicity.

Keywords: alienation; segregation; dehumanization; grey zone; science; technology.


 

 

O mais fácil é sucumbir, basta executar todas as ordens que recebemos.
É isto um homem?
Levi, 1958/1976.

Os campos de extermínio foram o campo de aplicação de novas tecnologias médicas e científicas; a participação da indústria e do sistema médico-acadêmico no projeto nazista os tornaram um lugar nefasto de alienação, de experimentação e de aniquilação, de redução do ser humano a um objeto de consumo - seguindo uma ideologia da produção levada à mais extrema aberração.

Primo Levi soube transmitir o radicalismo e os efeitos dessa experiência de dessubjetivação até o limiar do indizível. É isto um homem? (Levi, 1958/1976), A trégua (Levi, 1963/1989) e Os afogados e os sobreviventes (Levi, 1986/1989) são o fruto de uma necessidade ética de dizer e de divulgar que "obriga" Levi a escrever. Quando Levi (1986/1997) evoca as possíveis razões que lhe permitiram sobreviver, cita o acaso, seu treino na vida de montanha, sua profissão de químico - que lhe valeu alguns privilégios durante os últimos meses de detenção - mas também seu interesse pela alma humana e, especialmente, sua vontade de sobreviver "com o propósito específico de contar as coisas que havíamos sofrido" (Levi, 1986/1997: 315). Uma exigência crucial que se mede abertamente à vontade nazista de destruir, de todas as maneiras possíveis, todas as provas do extermínio e destruir qualquer evidência. Os afogados e os sobreviventes (1986/1989), último livro oriundo desta exigência é, talvez, a mais importante reflexão sobre a condição humana que o século XX produziu.

Sabemos que Levi também escreveu numerosas novelas de natureza singular que não se encaixavam em nenhuma categoria pré-estabelecida. Geralmente definidas como novelas de ficção científica, o selo original de sua escrita se encontra de qualquer forma em cada uma delas: a reflexão sobre as causas e implicações da "gigantesca experiência biológica e social" dos campos (Levi, 1958/197: 133).

Com sutileza e ironia, Levi escritor de novelas enfoca o tema da segregação no mundo atual, no legado dos campos no presente, estabelecendo uma continuidade desconcertante entre as aberrações passadas e a normalidade presente, mostrando o quanto o presente está delicadamente trançado com a lógica do passado. Através de uma ficção alucinada, como no caso da sua peça A Bela Adormecida na geladeira (1966/1986), Levi explora com sutileza os efeitos da aliança entre ciência, novas tecnologias e alienação subjetiva, assim como a maneira pela qual a normalidade, a vida tranquila se revelam produto de uma normatividade biopolítica à qual nos adaptamos com despreocupada simplicidade.

Como ele nos lembra, fazendo-nos refletir sobre a nossa situação atual, "os monstros existem, mas eles são muito pouco numerosos para serem realmente perigosos; os mais perigosos são os homens comuns, os funcionários dispostos a crer e obedecer sem questionar" (Levi, 1958/1976: 311).

 

A Bela Adormecida

A Bela Adormecida na geladeira (Levi, 1966/1986) é uma curta peça de teatro que põe em cena oito personagens e faz parte da coleção de novelas Histórias naturais, escritas entre 1964 e 1967 e publicadas em 1967 sob o pseudônimo Damiano Malabaila.

A cena acontece em Berlim em 2115, em um ambiente burguês. O clima é o de todos os dias, reconfortante e repetitivo. O evento é uma reunião entre amigos ("la solita festicciola") (Levi, 1966/1986: 91) que faz parte de convites enviados várias vezes por ano. Lotte, a dona da casa, nos informa de imediato que não está particularmente entusiasmada. Entediada e vagamente irritada, ela nos guia pela cena como vista pelos seus olhos cansados. Seu marido, porém, parece entusiasmado pelo decorrer dos acontecimentos.

A ocasião especial é o aniversário da Patrícia, "o habitual" aniversário do dia 19 de dezembro. Patrícia é, em primeiro lugar, uma herança passada de pai para filho por várias gerações dentro da família Thörl. É uma centenária. Ao longo da peça, aprendemos que, em 1975, ela foi escolhida para hibernar pelo Comitê Científico, presidido pelo ilustre Hugo Thörl, o descobridor da quarta lei da termodinâmica e o avô do dono da casa.

Entre 1975 e 2115, Patrícia foi tirada do seu sono e congelada por mais ou menos 300 dias. Em Berlim de 2115, os Thör são os orgulhosos proprietários desse objeto de atração social. Lotte explica que alguns têm um Renoir, um Picasso ou um Caravaggio, outros um "furacão condicionado", outros até mesmo um gato ou cão vivo; os Thörl têm Patrícia, a bela centenária congelada.

Desde o início, adivinhamos que Peter tem uma queda por Patrícia: pois, como diz Lotte, Peter mudou nos últimos anos - tornando-se menos acolhedor, mais sério e mais chato -, e somos rapidamente levados a tomar conhecimento das razões dessa transformação, da paixão secreta que Peter alimenta por Patrícia, bela como uma escultura de gelo, se bem que um pouco "passada". Tomamos rapidamente conhecimento dos descongelamentos clandestinos e dos ataques de Peter sobre Patrícia, registrando-se, eles também, como uma tradição familiar transmitida de pai para filho.

Os primeiros convidados que chegam para comemorar o aniversário são Robert e Maria Lutzer. Eles representam o conforto burguês e a qualidade do dinheiro, que, nas palavras de Peter, são herdados por sangue. Enfim, atrasado, como de costume, chega o jovem casal de noivos ideais Baldur e Ilse, ele doutorando e ela porta-voz da besteira diária, apaixonados no início da noite e definitivamente separados à meia-noite, por causa da sedução irresistível que Patrícia exerce sobre a curiosidade erótica e científica de Baldur.

O destaque da noite é o descongelamento de Patrícia. Desde seu renascimento, a imaculada e corajosa Patrícia, que se entregou ao experimento científico e à eterna juventude, parece principalmente entediada, astuta e calculista.

O ato dura o tempo de uma noite e de um início da manhã. No final da noite, Patrícia decide fugir com Baldur e abandonar para sempre a casa de sua detenção voluntária, enquanto Baldur rompe o seu noivado com Ilse. Finalmente livre, Patrícia confessa não ter nenhum interesse por Baldur: ela se voltou para ele com o único objetivo de se desembaraçar de sua centenária escravidão. No final, Lotte nos informa que Patrícia decidiu deixar o país e reencontrar um semelhante, outro corajoso hibernado que devotou sua vida à ciência e à juventude. Onde reencontrá-lo? Na América.

 

Continuidade

Essa é a fachada do conto. Mas, por trás da fachada, existe um tecido de observações e de referências pertinentes e aterrorizantes que fazem da representação de um futuro banal um espelho da normalidade presente e ligam a realidade na qual estamos mergulhados às atrocidades da história que marcaram o século XX. O tom da peça é velado de ironia; o ponto de vista é aparentemente o ponto de vista acrítico de quem se limita a constatar uma série de fatos e a anotar o simples desenrolar de uma transação social banal. Mas sua reconstituição vira um diagnóstico sutil e perspicaz da alma humana, de suas aceitações, de suas contradições, de seus compromissos. Este tipo de ponto de vista é característico do senso de humor de Levi, um senso de humor recheado de amargura, assim como de seu talento de bom observador, de psicólogo e de analista hábil. Sua vivência nos campos o levou a aplicar sua paixão pela observação científica à realidade humana.

A peça abunda de referências mais ou menos implícitas a outros textos de Levi, e de implicações de ordem antropológica, política e social: para ressaltar sua natureza complexa e determinada seria necessária uma longa e minuciosa análise do texto. Limitarei minha análise a algumas observações sobre a maneira como a peça, embora se encontre em um registro radicalmente diferente daquele da análise política e do testemunho, atesta uma reflexão que tem raízes na experiência nos campos. Como outras novelas de Levi, A Bela Adormecida na geladeira (Levi, 1966/1986) acha na atualidade - sob a forma de um futuro de ficção-científica - os sintomas de um comportamento social e subjetivo que alimentaram a "razão" nazista, estabelecendo uma continuidade entre a lógica do passado e a lógica atual, percebendo no presente a busca de uma trama passada. A modalidade do futuro permite estudar os efeitos do passado: uma lição que aproxima imensamente a posição de Levi daquela de Freud.

Deste ponto de vista, a escolha do título da coletânea na qual figura A Bela Adormecida na geladeira (Levi, 1966/1986) - Histórias naturais - toma toda sua magnitude. A palavra "naturais", em contraste com o conteúdo bizarro e a ficção científica das novelas, enfatiza o natural e a evidência intrínsecos dos fatos expostos, assim como a indiferença que os rodeia. De maneira paradoxal, ele chama a atenção para a maneira pela qual a integração social das descobertas científicas e tecnológicas se torna uma segunda natureza e se sedimenta na normalidade, na rotina diária, mostrando como a ideia de "natural" se confunde como a de habitual.

Sabemos que para Levi o tema da ciência é central, e isto de modo profundamente íntimo, pois sua formação como químico e o prazer que lhe proporciona a química representam um traço essencial de sua relação com o mundo, com a vida, com o trabalho. Ele atribui em grande parte à sua função de químico o fato de ter sobrevivido nos campos; ao seu relacionamento com a química ele confere o que há de mais característico na sua escrita, o seu próprio estilo. Nos campos, sua paixão pela ciência, por uma racionalidade inteligente, analítica e produtiva, se encontra brutalmente confrontada ao outro lado da ciência, o de sua utilização para fins destrutivos a alienantes. A química é o instrumento fundamental da destruição, da solução final. Esta confrontação não deixará de levá-lo a um ponto de vista subterrâneo, crítico e desiludido sobre as possíveis implicações das tecnologias científicas.

Levi (1966/1986), no editorial da primeira edição de Histórias naturais, afirma ter escrito estas novelas em uma tentativa de dar uma forma narrativa a uma intuição:

Escrevi por volta de 20 contos e não sei se escreverei outros. Eu os escrevi, na maior parte, de um jato só, tentando dar uma forma narrativa a uma intuição pontual, tentando contar em outros termos (se eles são simbólicos o são inconscientemente) uma intuição que não é rara hoje em dia: a percepção de um rompimento no mundo onde vivemos, de uma brecha pequena ou grande, um "vício de forma" que torna inválido um ou outro aspecto da nossa civilização ou de nosso universo moral... Quando eu os escrevo, sinto um vago sentimento de culpa, como quem comete conscientemente uma pequena transgressão...

Entrei (inesperadamente) no mundo da escrita com dois livros sobre os campos de concentração: não me cabe julgar seu valor, mas foram, sem dúvida, livros sérios para um público sério. Oferecer a este público um volume de novelas-piadas, armadilhas morais, talvez divertidos, porém destacados, frios, não é enganar sobre a mercadoria, como vender gato por lebre? São questões que eu me fiz enquanto escrevia e publicava essas Historias Naturais. Bem, eu não as teria publicado se não tivesse notado (de fato, não imediatamente) que entre o Lager e suas invenções existia uma continuidade, uma conexão: o Lager, para mim, foi o mais grave dos "vícios", as sublevações das quais falava há pouco, o mais ameaçador dos monstros gerados pela razão (Levi, 1966/1986: 15).

Levi faz uma conexão lógica entre o projeto segregativo do qual foi vítima e a alienação cotidiana atual, tendo como corolário o sentimento de solidão abissal que acompanha o advento e o triunfo da era da técnica a serviço da produtividade reificada. Tudo funciona, tudo está perfeitamente adaptado, organizado, estetizado, ao preço da redução do ser humano a objeto de consumo.

 

Alienação

A Bela Adormecida (1966/1986) acontece em Berlim, o que contextualiza a cena com precisão. Poderíamos observar que cada personagem da peça representa de maneira emblemática uma forma de alienação, pois cada um encarna mais ou menos bem o seu papel burguês, cada um fazendo parte da engrenagem de um sistema do qual é o suporte, mas também, simultaneamente, o efeito e o objeto: o traficante rico, sua esposa hiperconsumidora e desmiolada, a dona de casa cúmplice e traída, seu marido aproveitador e patético, o jovem doutorando esmagado pela burocracia que ele mesmo alimenta, sua namorada jovem e boba, semelhante a todas as bobas que podemos encontrar nas ruas de Berlim e de Nova York.

A peça começa com uma imagem sarcástica e horripilante, o casaco de pele do marciano prateado que Maria usa, provocando imediatamente elogios e ciúmes de Lotte. Trata-se de uma prenda da última moda, de uma roupa que exibe imediatamente toda a violência do consumo e do mercado que o sustenta. Isto põe imediatamente em cena a relação entre exploração, colonialismo e racismo, assim como o desapego individual e coletivo em torno de seus crimes.

A que espécie pertence um marciano? Ele não é nem um ser humano nem um animal. Ele é certamente algo de fundamentalmente "outro" - o que evoca todas as implicações do comportamento racista para com o que é "diferente". Mas quem ele é não vale, o que vale é o que ele é: ele é sobretudo um ser que podemos explorar e transformar, reduzir a um objeto de consumo - ele não é nem mesmo uma raridade, já que os russos importaram uma grande quantidade deles e que conseguimos encontrá-los no mercado negro. Como não pensar na exploração sistemática e cuidadosa dos cadáveres nos campos, nos corpos tratados como qualquer matéria-prima, o exemplo mais extremo do uso do corpo como um objeto, de sua retificação? Uma mercadorização que, sob formas obviamente diferentes, mas nem tão distantes logicamente, impregna a realidade atual, muitas vezes patrocinada pela ciência e pelo mundo médico. Pensemos em algumas aplicações da farmacologia ou do mercado de órgãos vitais:

pensamos enfim na exploração infame dos cadáveres, tratados como uma matéria-prima qualquer, que fornece ouro dos dentes, tecidos do cabelo, fertilizante das cinzas, dos homens e mulheres cobaias nos quais eram experimentados remédios antes de eliminá-los (Levi, 1958/1976: 307).

A posição de objeto de consumo é a mesma ocupada por Patrícia. Ela também pertence à categoria do "radicalmente outro": mas Patrícia é um monstro singular, fruto da ciência mais sofisticada. Seu lado freak, sua memória secular e intermitente, sua beleza eterna, sua juventude antiga e imaculada a tornam um objeto de atração especial. Como diz Baldur, seduzido por esse encontro dramático, em sua presença ele se sentia como diante das Pirâmides. Ao contrário do marciano, reduzido a um casaco de pele, Patrícia desempenha o seu papel de objeto deliberadamente; isso não impede que degradação e retificação os unam sutilmente.

Levi (1966/1986) descreve com sarcasmo refinado os requisitos do concurso para a hibernação organizado em Berlim em 1975, e do qual Patrícia levou o primeiro lugar: "Ela atende todos os requisitos: o coração, os pulmões e os rins em perfeita condição. Um caráter imperturbável e bem resolvido, uma emotividade limitada e enfim uma inteligência e cultura de boa qualidade" (Levi, 1966/1986: 20).

Levi aponta um instrumento essencial da lógica do poder e do controle: a avaliação, instrumento que, na contemporaneidade, está presente em todos os setores do mercado de trabalho, da escola, da formação, da cultura.

Graças à avaliação, o controle atinge a sua forma pura; ele é nada mais que a livre circulação da obediência. Da avaliação Michel Foucault disse que ela é um saber-poder. A expressão deve ser vista pelo ângulo da força. Pela virtude do hífen, Foucault apreendia a domesticação mútua do saber pelo poder e do poder pelo saber. Todos escravizados no mesmo grau, essa é a nova forma da liberdade e da igualdade (Milner, 2005).

A série de condições requeridas pelo concurso de Berlim faz pensar nas condições requeridas pelo Consortium para os candidatos ao training psicanalítico nos institutos afiliados à American Psychoanalytic Association. Para o Consortium (uma coalizão patrocinada pela American Psychoanalytic Association, compreendendo a American Psychoanalytic Association, a American Academy of Psychoanalysis, o National Membership Committee on Psychoanalysis in Clinical Social Work, e a Divisão 39 da American Psychological Association) a avaliação é o critério essencial para a admissão de um candidato ao programa de training em psicanálise, e isto independentemente da análise pessoal. Os critérios de admissibilidade enumerados pelo Consortium compreendem

as qualidades pessoais do candidato que são consideradas necessárias para empreender a formação psicanalítica. O candidato deve demonstrar integridade de caráter, personalidade madura, capacidade de autorreflexão, de motivação, de atenção psicológica, de atitude clínica e de qualidades intelectuais apropriadas. Os institutos terão procedimentos para apreciar estes atributos (Accreditation Council for Psychoanalytic Education, 2001).

A avaliação é o primeiro passo para a seleção. Na peça, a palavra "seleção" não aparece, ainda que ela esteja intrinsecamente presente na escolha dos ditos candidatos. Essa palavra não pronunciada ganha, no universo de Primo Levi, uma ressonância emblemática. É a palavra chave do horror dos campos, a que expressa a lógica mais feroz, a lógica da deportação, da atribuição de trabalho nos campos, da escolha humana para os experimentos científicos, até o passo final para as câmeras de gás. Essa palavra joga sobre a noção de avaliação todo o peso da história e toda a implicação de seus efeitos segregativos.

Heroína da ciência, Patrícia tem uma missão específica: a de ser porta-voz de eventos essenciais da história. O programa do qual ela faz parte prevê que ela seja acordada algumas horas todos os anos, em seu aniversário, assim como outros despertares em intervalos irregulares em ocasiões especiais tais como importantes expedições planetárias, crimes e julgamentos famosos, casamentos de soberanos ou de estrelas da televisão, encontros internacionais de baseball, desastres telúricos ou ademais: enfim, tudo o que merece ser visto e enviado para o futuro distante.

Não podemos deixar de nos debruçar sobre a ironia amarga de Levi, que certamente conhece diretamente o peso e impacto do esquecimento na história, sua instrumentalização política e suas consequências individuais e coletivas.

 

A zona cinza

Respondendo à curiosidade ingênua e insaciável de Baldur sobre a experiência da qual ela é a protagonista - o que ela pode dizer, o que está acontecendo, como é o nosso mundo visto pelos seus olhos? - Patrícia responde: "Não há nada de extraordinário, nos acostumamos em seguida" (Levi, 1966/1986: 52).

Essas palavras parecem familiares. Com clareza e certa sensação de vertigem, uma afirmação de Levi proveniente de um de seus textos fundamentais vem à minha mente. Trata-se de Os afogados e os sobreviventes (1986/1989). No capítulo intitulado A zona cinza, no qual Levi (1986/1989) se debruça sobre a pungente questão dos Sonderkommandos (grupos especiais de prisioneiros, judeus principalmente, aos quais era confiada a gestão dos crematórios, o assassinato dos prisioneiros nos fornos e a triagem dos cadáveres), ele cita as palavras de um dos poucos sobreviventes desta tarefa funesta: "Quando fazemos esse trabalho, ou enlouquecemos no primeiro dia, ou nos acostumamos em seguida" (Levi, 1986/1989: 52)

Apesar da ousadia da comparação, sua literalidade revela uma rede de envolvimento que é o fundamento da escrita de Levi, a relação que ele estabelece entre contextos diferentes, entre exceção e norma, entre os diferentes "monstros" engendrados pela razão, sejam eles frutos do nazismo ou do discurso da ciência no regime democrático.

As equipes especiais de Sonderkommandos são um "caso extremo" (Levi, 1986/1989: 49) da zona cinza, dessa famosa zona híbrida dos prisioneiros/funcionários, magistralmente analisada por Levi, que constituiu o próprio quadro do sistema totalitário nos campos. É uma área universalmente presente nos regimes governados pelo poder, a hierarquia e os privilégios, e que lhes é consubstancial. "É uma zona cinza, com seus contornos mal definidos, que separa e liga os dois campos, de mestres e escravos" (Levi, 1986/1989: 42). É a zona de compromisso, da colaboração, da ponte entre oprimidos e opressores - em que nos descobrimos sendo produtos de um sistema no qual desempenhamos o papel de dobradiças.

A análise da zona cinza, o estudo detalhado de suas facetas é certamente uma das maiores contribuições psicológicas, políticas e etnográficas1 de Primo Levi. É uma ferramenta essencial que permite refletir sobre as consequências da relação entre poder e alienação, de todas suas formas, em regimes totalitários, mas também naqueles que não o são.

Patrícia poderia ser considerada como um exemplo dessa zona cinza em tempos de paz? E, se fosse o caso, não seria o fato de a forma ter mudado, mas não a essência, a razão de ser dessa zona que existe no sistema biopolítico atual? Não haveria aqui um convite para que o leitor/espectador reflita sobre o vício de que ele próprio participa?

"Não há nada de extraordinário, você se acostuma em seguida" (Levi, 1966/1986: 56) é a afirmação que condensa simplesmente e com aridez a compactação da indiferença, onde o extraordinário e o inaudível se esvaziam de toda surpresa. A aceitação não começa onde eventualmente terminam a surpresa, a curiosidade, o escândalo? O hábito mostra, assim, suas implicações políticas: é a trama da falta de reflexão, da adaptação, do abandono: o que há de mais íntimo da alienação. Ele mora na ética da colaboração tácita.

Levi oferece a Patrícia uma saída, a fuga - o que não faz necessariamente dessa história de alienação uma história com um final feliz. Mas isto introduz um sentido, uma esperança, e faz com que o ato da Patrícia se torne um ato radical, a interrupção de um destino preestabelecido, um passo em direção à saída da zona cinza. O programa é interrompido, a cena se desfaz. Retomar o seu próprio destino nas mãos é uma mensagem política. Para que isso possa ser feito, a tarefa é acima de tudo ética, e está baseada no desejo de saber, no raciocínio para não capitular, no confronto de seu próprio papel com a alienação da qual somos o produto. Levi (1958/1976) escreveu sobre os campos e o ódio nazista:

Talvez o que aconteceu não possa ser entendido, e nem deva ser compreendido, na medida em que compreender é quase justificar [o ódio nazista]. Nós não podemos entendê-lo; mas podemos e devemos entender de onde saiu, e ficarmos atentos. Se compreender é impossível, conhecer é necessário porque o que aconteceu pode recomeçar, as consciências podem novamente serem desviadas e obscurecidas: as nossas também (Levi, 1958/1976: 310-311).

Querer entender, não parar de tentar entender, até mesmo lá onde a compreensão termina, é uma necessidade histórica e política. Como observa com precisão Domenico Scarpa, o que leva Levi a escrever é o desejo de mudar o mundo; e entender o mundo é o que permite transmutar seus valores (Belpoliti, 1991).

 

Integrado perfeito

Entre os personagens de É isto um homem? (1958/1976) temos Elias, o integrado perfeito. Ao contrário de Patrícia, ele é um monstro completamente adequado ao papel que executa. É um anão que possui a corpulência de um Hércules e um vigor bestial, de idade indeterminada entre 20 e 40 anos; um trabalhador desconcertante para o qual nada parece impossível. Mesmo os alemães param para admirá-lo e solicitar seus serviços. Elias canta, declama constantemente em polonês e em ídiche, fazendo "uma mímica excessiva de desequilibrado" (Levi, 1958/1976) em meio aos aplausos e risos da plateia numerosa. Ele rouba sistematicamente, e com toda inocência, sem nunca ser apanhado no ato. "É um bom trabalhador e um bom organizador, qualidades que o protegem das seleções e asseguram o respeito de seus chefes e colegas" (Levi, 1958/1976: 151). O termo "organizador" refere-se a organizar, que, no contexto, toma o significado de procurar de maneira ilegal. Como Levi (1958/1976) explica em uma nota de autor no original italiano:

O termo [organizado] tomou este curioso significado durante a segunda guerra mundial não só nos Lager, mas também em outros países europeus, referindo-se talvez ironicamente à famosa "organização" alemã que se alimentava de roubos e fraudes contra os países ocupados (Levi, 1958/1976: 106).

No Lager, Elias triunfa e prospera, e é provavelmente feliz. A questão que Levi enuncia - é isto um homem? - se dirige para Elias:

Poderemos agora nos perguntar quem é o homem Elias. Se é um louco, um ser incompreensível e extra-humano caído por acidente no Lager. Se nele se exprime um atavismo que se tornou estranho em nosso mundo moderno, mas melhor adaptado às condições básicas da vida do campo. Ou se isso não é um produto puro do campo, o que estamos destinados a nos tornarmos se não morremos no campo, e se o próprio campo não acabar até lá (Levi, 1958/1976: 150-151).

Há alguma verdade nestas três suposições. Elias sobreviveu à destruição de fora porque ele é fisicamente indestrutível; ele resistiu à destruição de dentro porque é louco. Ele é antes de tudo um sobrevivente: o espécime humano mais apropriado ao modo de vida do campo. Se Elias conseguir a liberdade, será relegado às margens da comunidade humana, em uma prisão ou em um asilo de alienados. Mas, aqui no Lager, não há mais criminosos assim como loucos: não há criminosos, pois não há lei moral que possa ser violada; não há loucos, pois todas as nossas ações são determinadas, e cada uma delas, em seu tempo e lugar, é essencialmente a única possível.

Elias é o produto perfeito da lógica do campo; adaptação e satisfação são o resultado de uma operação baseada no totalitarismo, na violência, na dessubjetivação. Para essa operação, as categorias interpretativas do mundo livre não têm valor, pois a ação é completamente determinada aqui pelas circunstâncias que a produzem. Mas esse laboratório de alienação diz muito sobre a alienação em geral. Levi não interrompe o seu pensamento e continua:

Tudo isso poderia levar-nos a tirar conclusões e até mesmo regras que se aplicariam a nossa vida cotidiana. Existem alguns Elias entre nós? Já não vimos alguns com nossos olhos aqueles indivíduos que vivem sem propósito algum, resistentes a qualquer forma de consciência e de autocontrole? E que vivem, apesar das suas deficiências; mais precisamente, como Elias, graças a elas. O assunto é sério (Levi, 1958/1976: 151).

Esta grave pergunta levantada em Auschwitz ficou pendente após Auschwitz e não parou de inspirar, de maneira mais ou menos subterrânea, a escrita de Levi e o seu ponto de vista sobre o mundo dito livre. Apesar de todas as diferenças, Elias e Patrícia pertencem à mesma zona. E se é verdade que Patrícia entrou por si mesma, podemos questionar em que medida sua escolha não foi determinada pelo sistema no qual está totalmente integrada - sua identidade, como a de muitos meninos e meninas que abraçam com entusiasmo um ideal, uma identidade mediática ready-made, assegura seus próprios papéis de pequenos monstros consumidores e colaboradores. O fato de que Patrícia deixe a zona por estar entediada não diminui o efeito surpreendente de seu ato, porque em um mundo mecanizado, repetitivo e determinado, ele restabelece a possibilidade do livre arbítrio - o que, aos olhos de Levi, parece impensável no caso de Elias.

A chegada ao campo envolvia uma espoliação imediata: desnudação, corte dos cabelos, marcação e eliminação do próprio nome, do próprio idioma. Ela continha uma destruição sistemática do envelope narcísico e libidinal que apoia o sujeito da linguagem, seu direito de se proteger por trás de uma imagem construída à sua medida, onde o pudor encontra a dignidade humana. O recém-chegado era imediatamente violentado, insultado, humilhado e desorientado. Com grande lucidez, Levi (1958/1976) mostrou que este movimento voluntário de desenraizamento e de espoliação tinha como finalidade principal quebrar a capacidade de resistência dos recém-chegados ao campo, considerados sempre e antes de qualquer outra coisa como adversários, e dissipar assim qualquer ideia de rebelião. Seu motivo implícito era claro, a exploração de todos os recursos humanos e o extermínio.

A magnitude desta operação, a aplicação das tecnologias industriais para alcançar o desejo de eliminar uma raça inteira, o número de pessoas exterminadas fazem dos campos nazistas uma realidade sem precedentes na história, uma linha divisória das águas que traça um antes e após radical. Todos fomos afetados por este "após". E a dessubjetivação sistemática realizada nos campos continua fazendo parte de nosso horizonte; ela não para de dar peso aos seus efeitos no presente, em traços transmitidos de uma geração para outra pelos sobreviventes e vítimas, mas também pelos executores e cúmplices.

Não é por acaso que, depois do silêncio, no pós-guerra imediato, sobre É isto um homem? (1958/1976), e a fria recepção da sua publicação por Einaudi em 1955, tenha sido justamente o psiquiatra Franco Basaglia - o fundador do movimento da antipsiquiatria na Itália - que enfatizou a importância crucial da observação de Primo Levi, fazendo-o assim sair de sua "concha de testemunha e guardião da memória" (Bucciantini, 2011: 69), dando ao seu discurso uma primeira e profunda ressonância social. Basaglia reconhece imediatamente, na análise de Levi sobre a subjugação e a exclusão, implicações semelhantes às que ele já havia vivido no mundo psiquiátrico. Se é verdade que, se referindo a Levi de maneira parcialmente interessada, Basaglia tende a homologar aspectos de experiências não homologáveis - o campo e a instituição psiquiátrica - é verdade também que ele acha no texto de Levi elementos cruciais do processo de desumanização próprio a qualquer condição segregativa.

Que o excluído dos campos nazistas tenha a mesma cara que o doente mental não significa que - por meio de privações, sentenças e torturas - o internado enlouqueça. Mas, confinado em um espaço onde as privações, as humilhações, o arbitrário são a regra, o homem - qualquer que seja a sua condição mental - se objetifica gradualmente nas leis da internação, e se identifica com elas. Construir uma carapaça de apatia, de desinteresse, de insensibilidade seria, portanto, seu extremo ato de defesa contra o mundo que primeiro o exclui e depois o aniquila: o último recurso pessoal que o doente, tal como o internado, opôs para se proteger da experiência insuportável de viver conscientemente como excluído (Bucciantini, 2011).

Compreensivelmente, Levi reage com relutância e irritação à exportação de sua reflexão sobre a experiência dos campos de concentração nazistas para outros contextos sociais alienantes. A diferença dos campos permanecia fundamental e irredutível, pois, nos campos, a primeira meta da subjugação era a morte e não o encarceramento. Contudo, foi o próprio Primo Levi que retraçou a continuidade entre a lógica da dessubjetivação do qual foi objeto e testemunha e a lógica da alienação na contemporaneidade.

 

Ruídos de descongelamento

Radicalmente, Primo Levi demonstra que o ser humano não pode ser reduzido ao orgânico, a uma pura materialidade genética ou fisiológica; o ser humano é sujeito da linguagem, fruto do relacionamento coletivo do qual ele emerge em relação transferencial perpétua com o outro. É no interior da lógica desta relação que o ser humano pode expressar ou não seu próprio livre arbítrio e seu estilo próprio, o que tem um impacto radical sobre a realidade fisiológica e corporal.

E observar: "o sentimento de nossa existência depende para muito do olhar que os outros têm sobre nós: também podemos qualificar de não humana a experiência de quem vivenciou dias em que o homem era um objeto aos olhos do homem" (Levi, 1958/1976: 270). Isto vale primeiro para a realidade dos campos, mas também para a exploração e segregação do homem em geral, bem como para um certo discurso da ciência tão popular na contemporaneidade, e abraçado com imprudência por muitos (intelectuais, cientistas, mídia, consumidores e assim por diante). Amplamente apoiado pela indústria médica e pela farmacologia, esse discurso reduz o ser humano à pura causalidade material e a comportamentos e emoções neurofisiológicas e químicas. Ignorando a maneira pela qual a linguagem impregna a substância humana viva, este discurso foraclui o sujeito da linguagem e sua relação de transferência com o mundo.

Não é coincidência se Levi associa o aspecto mais desolador da desumanização no campo à subtração da linguagem, à impossibilidade de comunicar, de compreender e se fazer compreender, uma incapacidade que, de fato, levava diretamente à morte. A fala, esse "mecanismo necessário e suficiente para que o homem seja homem" (Levi, 1986/1997: 723), era proibida, esmagada, eliminada. A fala, reduzida a zero na garganta das vítimas, se acompanhava do rugido feroz das ordens gritadas, incompreensíveis, incoerentes, não-palavras numa língua própria, "orts- und zetgebunden" (Levi, 1986/1997:728), ligada ao tempo e ao lugar - variante barbarizada da língua Tertii Imperii, na qual o som da voz se reduzia ao que há de mais essencial e enigmático na fala: o imperativo, puro, indecodificável. Um imperativo que, sendo incompreensível e ineficaz, era seguido por espancamento e assim por diante até a morte. Como ocorre quando nos dirigimos aos animais, não havia diferença significativa entre o gesto e a fala. "Todas as raças humanas falam; nenhuma espécie não humana sabe falar" (Levi, 1986/1997: 721); é isso que define o universal ao qual o homem pertence. Foi precisamente este universal que foi agredido e provocado nos campos com a intenção de desfazê-lo, de demonstrar seu caráter insignificante - uma tentativa cuja sombra não para de perseguir a contemporaneidade.

Em A Bela Adormecida na geladeira (Levi, 1966/1986), existe um oitavo personagem, Margareta, a filha de Lotte e Peter Thörl. Ela não aparece na cena: sua voz está em off. Ela fala apenas uma vez para perguntar à sua mãe, do quarto ao lado, se a tia Patrícia despertou, e o que ela lhe trouxe de presente neste ano. Detalhe curioso que se soma à lista de várias figuras de alienação burguesa retomadas na peça, o personagem da jovem representante do consumo infantil. Mas sua voz em off convoca as das futuras gerações, de todos os que nascem inocentemente em contextos específicos, encontram-se a lidar com o mundo que os determinou e devem articular neste mundo uma palavra própria, um arbítrio próprio.

Finalmente, há uma outra presença na sala que é particularmente importante, uma vez que adota seu ritmo e escansão. É o barulho da ciência e da tecnologia. É o ruído das máquinas que acompanham a operação de descongelamento de Patrícia; o batimento do metrônomo, o ranger da porta, o som das tesouras e assim por diante. Logo se segue uma série de detalhes químicos e mecânicos relativos ao processo aberto que Peter e seus convidados trocam com participação intensa. Ciência e tecnologia são protagonistas, irônica e seriamente. Como outras novelas de ficção de Levi, esta peça é uma reflexão ética sobre as aplicações da ciência e das novas tecnologias do mundo capitalista. Pelo fato de acontecer em Berlim, ela levanta implicitamente um ponto crucial: em que medida o advento do nazismo e seu credo esteticizante e higienizante são parte e efeito de uma aberração do discurso científico na supremacia da era da técnica? Em que medida fazemos parte e colaboramos todos neste discurso? Patrícia, fugindo para encontrar com um de seus semelhantes hibernado na América, sublinha o eixo Alemanha/ América da experimentação científica e traz ao espírito as pesquisas dos Estados Unidos sobre a eugenia no início do século XX, exportadas com sucesso para os centros de internamento alemães. Em lugares como Ellis Island, zona de triagem para a mão de obra estrangeira que desembarca nos EUA, a conivência entre sistema de produção e sistema médico para a exploração dos recursos humanos já havia demonstrado amplamente que seus efeitos segregativos está claramente presente.

Levi levanta uma questão ética sobre a modernidade. É enquanto homem de ciência que Levi (1966/1986) intervém no debate sobre a responsabilidade dos cientistas na contemporaneidade:

Seja você crente ou não, seja "patriota" ou não, se você tem a faculdade de escolher, não se deixe seduzir pelo interesse material ou intelectual, mas escolha no perímetro que possa tornar menos dolorosa ou menos perigosa a trajetória de seus contemporâneos e dos que virão depois de você. Não se esconda atrás da hipocrisia da ciência neutra: você é sábio o bastante para poder avaliar se do ovo que você está chocando sairá um pombo, uma cobra, uma quimera ou talvez nada (Levi, 1966/1986: 61).

 

Falar em vão

Levi (1958/1976) conta que, em Auschwitz, ele e muitos outros tinham o mesmo sonho recorrente: o de voltar subitamente para casa e de poder finalmente falar e contar o horror, a fome, os golpes, a morte, toda a realidade da experiência assustadora e inimaginável que eles estavam tendo de aturar. Mas o sonho se transformava em pesadelo: os membros da família, as pessoas amigas não escutavam os relatos, ficavam indiferentes, falavam sobre outros assuntos, iam-se embora. A angústia levava ao despertar; vivia-se então uma pena desolada, uma "dor em estado puro" (Levi, 1958/1976: 90). A realidade insustentável da surdez humana despertava assim para o real da experiência do campo de extermínio. Isso nos evoca a particularidade da função do despertar, e o papel que nela joga o real. "O real, é além do sonho que temos que procurá-lo - nisso que o sonho vestiu, envelopou, escondeu atrás da falta da representação, da qual não há senão um representante" (Lacan, 1963-1964/1973: 59).

Espera-se que, face ao esforço ético feito por Levi para indicar a continuidade entre aberrações passadas e lógicas presentes, seus leitores contemporâneos não se comportem como as pessoas amigas nos pesadelos supracitados, que não recuem frente a uma questão torturante para se refugiar na normatividade cotidiana.

 

Referências bibliográficas

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Notas

1 Para utilizar um termo usado por Lévi-Strauss que comenta a escrita de Levi no momento da publicação da edição francesa La clé à molettes, em 1980. Paris, Julliard, 1980.

 

Recebido em 03 de janeiro de 2013
Aceito para publicação em 08 de maio de 2013

 

 

Tradução: Ivanisa Teitelroit Martins