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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

RESENHA

 

O sintoma como exigência pulsional

 

Symptom as a drive demand

 

 

Sandra Edler

Psicanalista - Membro Titular da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; Mestre e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: sandravilma@globo.com

 

 

Resenha de:

Barros, Romildo do Rêgo (2012). Compulsões e obsessões, uma neurose de futuro. Coleção para ler Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 115 p.

Lançado ao final do ano de 2012, dentro da "Coleção para ler Freud", Compulsões e obsessões, uma neurose de futuro, de Romildo do Rêgo Barros (2012), traz como fio condutor a história do paciente freudiano conhecido como O homem dos ratos (Freud, 1909/1977). Analisado em curto espaço de tempo, menos de um ano, o jovem advogado Ernst Länzer ganhou este apelido a partir do relato de uma modalidade de tortura que havia chegado aos seus ouvidos e que muito o impressionara: a Introdução de um rato vivo no ânus do supliciado. Ao narrar o caso, Freud (1909/1977: 171) percebe a ambivalência, o embate de extremos entre horror e prazer, e assim a descreve: "a face assumiu uma expressão muito estranha [...]. Eu só poderia interpretá-la como uma face de horror ao prazer todo seu do qual ele mesmo não estava ciente".

Barros toma por inspiração o caso clínico freudiano para percorrer e guiar seus leitores aos primórdios da elaboração da psicanálise: a afirmação da existência do inconsciente. A partir daí, o estranho, o incoerente e o sem sentido passam a ter visibilidade e são desvelados no espaço das sessões pela via da interpretação. O sintoma e seu relato no contexto analítico ilustram a aproximação entre o sintoma e a linguagem; situam também a intervenção terapêutica que, em um primeiro momento, buscava trazer luz diante de algo obscuro e incômodo na vida do paciente. Observa Barros (2012: 23), "este método, criado inicialmente como resposta para a questão do paciente histérico, tenta romper o isolamento em que se situa o sintoma".

A interpretação freudiana visa resgatar o que ficou encoberto, o segundo termo do silogismo que corresponde ao desejo recalcado. Observa o autor: "localizar o termo final do silogismo equivale a trazer à fala um desejo inconsciente" (Barros, 2012: 42). O que impede de o segundo termo se tornar visível é o fato de conduzir à revelação de um gozo do sujeito. O autor recorre a Shakespeare, trazendo Hamlet à cena psicanalítica para exemplificar, no caso desse personagem, que o que Hamlet não podia admitir era, na verdade, haver gozo próprio em prolongar um suposto sofrimento no pai. Nesse momento, Barros (2012) esclarece que é necessário revermos o texto de Freud (1909/1977), que há três anos completou 100 anos, à luz do pensamento de Lacan. Freud não chegou a nomear o conceito de gozo em psicanálise. No entanto, ao chamar a atenção para o ganho secundário do sintoma, abriu caminho para Lacan para defini-lo em diferentes momentos de seu percurso. O gozo, com o passar dos anos, tornou-se um conceito central na obra de Lacan e, para nós analistas, uma ferramenta fundamental à condução do processo analítico hoje.

Sabemos que a prática da psicanálise implica de alguma maneira uma busca de sentido. Como observou Vital Brazil (2004: 46), "o homem não pode não significar". Esta é uma motivação frequente no sujeito que procura a análise: preencher lacunas, linearizar, completar esgarçamentos, e com isso desenvolver uma narrativa histórica da própria vida. Há uma busca incessante, uma fome de sentido. Mas é uma grande ilusão - pondera o autor - acreditar que alguma mudança poderá advir com o acréscimo de sentido: "pelo contrário, a transformação do sujeito se dá na ruptura com o sentido prévio à interpretação" (Barros, 2012: 45). É pela ruptura que emergem o pensamento mágico e a fantasia; pela presença da angústia ou da estranheza, a ruptura sobrepõe a esses um momento de surpresa ou ainda de perplexidade diante do nonsense. A lacuna no sentido, deixando o sujeito no vácuo, poderá promover um sentido novo, uma nova configuração, algo inusitado. Freud mencionava o efeito surpresa que uma interpretação analítica deve provocar mesmo que - comenta nosso autor (citando o mestre de Viena) - venha seguida da constatação: "eu sempre soube disso" (Barros, 2012: 45).

De acordo com Barros (2012: 44), "a análise tem um compromisso com o sentido. A questão é onde ele se produz e qual é o seu limite. A interpretação analítica acarreta tanto uma produção de sentido quanto seu rompimento ao situar seu limite".

No caso do Homem dos Ratos, a apresentação da questão se impunha dentro de uma lógica própria, associando dois pensamentos que não teriam sentido senão em termos imaginários: "se eu caso com a dama, acontecerá alguma coisa com meu pai" (Barros, 2012: 45). Comenta Barros (2012: 45): "o que no pensamento mágico parecia indissociável pode ser separado pela interpretação que dissolve o sentido prévio". Você deseja que algo ruim aconteça ao seu pai mesmo amando-o profundamente...

Ao pontuar o elemento de gozo, a interpretação analítica atinge o ponto crucial, destacando, ao mesmo tempo, a responsabilidade do sujeito e desvelando o sintoma como exigência pulsional. Estamos na dimensão trágica da psicanálise. Talvez por isso, a todo momento, Barros (2012) trace analogias entre o percurso de Länzer em análise e a tragédia shakespeariana. A tragédia humana é o excesso pulsional. É desse excesso que todos, e cada um de nós, temos que dar conta. Mas, será possível atingir ou tangenciar a pulsão pela via interpretativa? O próprio Freud em 1920 demonstrou um "além do princípio do prazer", apontou "um ponto de resistência, de exterioridade, chamado mais tarde por Lacan de real" (Barros, 2012: 106).

Antes dos anos 70, Lacan abordou o sintoma a partir do simbólico como uma manifestação da divisão do sujeito. No caso do obsessivo, por exemplo, uma divisão entre dois significantes: "estou vivo" / "estou morto". Nesse momento do seu percurso, com o sintoma referido ao simbólico, está nítida a relação entre o sintoma e o significante, que vai representar essa divisão e que, em princípio, seria accessível pela via da interpretação.

Depois dos anos 70, em particular nos Seminários 22 e 23, Lacan (1974-1975; 1975-1976/2007) vai situar o sintoma como real a partir não mais do significante e, sim, da letra. Isto é, aquilo que do sintoma, não cessa de se escrever. E que está sempre ali. Você pode tentar decifrar, elaborar, reelaborar, mas ela vai permanecer idêntica a si mesma. A letra vai apontar para o núcleo irredutível do sintoma, aquilo além do que não poderemos ir adiante e que também não desaparece. Surge e se manifesta no cotidiano da repetição. Para Lacan (1975-1976/2007) o sintoma como real, referido a uma articulação entre o gozo e o inconsciente, tem que ser trabalhado pela via da equivocação.

Em um percurso analítico, o sintoma é encharcado de mil e um sentidos. É nutrido das mais variadas ideias. É por isso ou por aquilo. Ao fim do caminho, não há mais o que dizer. Só resta identificar-se ao sintoma, assumi-lo. Ou se reinventar com ele!

Na segunda parte do livro - Tempos modernos - o autor revê a questão das obsessões, compulsões, toxicomanias e depressões, tendo como pano de fundo a cultura em que vivemos e indagando se essas manifestações clínicas ainda responderiam ao tratamento freudiano estrito senso. Ele aborda as transformações recentes ocorridas na cultura e sua repercussão na subjetividade: a aceleração do consumo que alterou o cerne das relações humanas e as mudanças na própria estrutura das famílias. Exemplificando, aborda as inovações trazidas pelo Código Civil brasileiro promulgado em 2002 a partir do qual, entre outras mudanças, o casamento não é mais a base exclusiva da constituição da família e fica consagrada a igualdade entre mãe e pai. Essas modificações não são apenas arranjos formais, afirma Barros (2012: 91): "São pelo contrário, tentativas de responder às transformações que já vem sofrendo a autoridade nos nossos tempos". São apenas exemplos.

Muita coisa tem mudado. Em consequência, de uma forma ou de outra, aparecem as respostas pelas novas expressões do sofrimento psíquico. Em relação a isso, finalizando sua exposição, nosso autor deixa uma série de questionamentos em aberto, estimulando o leitor a pensar e envolver-se com problemas e questões que nos cercam: a busca ao hedonismo, a violência, o risco de dessimbolização nas redes sociais, a crise de autoridade nas escolas e, em seguida, estende o desafio ao psicanalista: como prosseguir sua prática? E faz um alerta: "O psicanalista tem forçosamente que buscar outra base sobre a qual operar, que não será exatamente a mesma que nos foi proposta por Freud. É um grande desafio, mas dele depende a sobrevivência da psicanálise" (Barros, 2012:107).

Escrito de maneira clara, sem artifícios de retórica, o livro destina-se tanto a não especialistas que podem absorver os conceitos psicanalíticos apresentados de forma não hermética, quanto aos colegas, aos psicanalistas que se confrontam hoje, em sua clínica, com os desafios das novas formas de sofrimento psíquico e que, no claro-escuro de seus consultórios interrogam-se, como nosso autor, sobre os dispositivos teóricos estabelecidos e o respectivo efeito em um contexto tão diverso. Será possível à psicanálise reinventar-se?

 

Referências bibliográficas

Freud, S. (1909/1977). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. Obras completas, ESB, v. X. Rio de janeiro: Imago.         [ Links ]

Lacan, J. (1974-1975). O seminário, livro 22: R.S.I. Inédito.         [ Links ]

Lacan, J. (1975-1976/2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Vital Brazil, H. (2004). O sujeito subversivo do desejo e a alienação significante. In: Psicanálise 100 anos depois e outros ensaios (pp. 138-159). Rio de Janeiro: Booklink.         [ Links ]