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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2013

 

ARTIGOS

 

Ato teórico, ato ético

 

Theoretical act, ethical act

 

 

Anna Carolina Lo BiancoI; Fernanda Costa-MouraII

IPsicanalista; Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica (AMT); Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ). E-mail: teoriapsi@psicologia.ufrj.br
IIPsicanalista; Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica (AMT); Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ). E-mail: fcostamoura@infolink.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo situar o que denomina um ato teórico por homologia com o ato psicanalítico. Reconhece de início duas formas de relação que um texto mantém com a verdade: uma em que se espera que o texto fale o verdadeiro sobre o verdadeiro e outra em que à verdade falta saber, e ela não pode ser toda dita. Demonstra que pela relação que mantêm com a verdade, ambos, ato teórico e ato psicanalítico, emergem da posição ética de um sujeito que se arrisca a fazê-los ao tomar uma decisão conceitual. Conclui que no horizonte de qualquer avanço teórico-clínico em psicanálise há um saber que não sabe a si mesmo em jogo, à espera do ato que o afirmará como um novo conceito.

Palavras-chave: ato psicanalítico; ato ético; ato teórico; verdade; saber.


ABSTRACT

The present paper aims at establishing an homology between a theoretical act and a psychoanalytic one. It starts by acknowledging two modalities of relationship a text may maintain with truth: in the first one it is expected that the text will explain the true about the true. In the second, truth cannot be known and said in its totality. Then it demonstrates that, regarding the relationship with truth, both theoretical and psychoanalytic acts are made possible by the subjective position of the one who risks doing an act when taking a conceptual decision. It concludes by pointing that every theoretical and clinical progress in psychoanalysis entails a knowledge that is not aware of itself.

Keywords: psychoanalytic act; ethical act; theoretical act; truth; knowledge.


 

 

No artigo metapsicológico que formaliza a teoria das pulsões, Freud (1915/1996) dirige-se diretamente ao leitor, como é de seu estilo, logo após ter introduzido importantes considerações acerca do que presidiria a alternância prazer-desprazer, para comentar: "a imprecisão da hipótese é considerável; não obstante, nos ateremos fielmente a ela" (Freud, 1915/1996: 116). Ora, tratava-se de nada menos do que a hipótese princeps do princípio do prazer como tendência à descarga: "o sentimento de desprazer tem a ver com um incremento do estímulo e o do prazer tem a ver com sua diminuição" (Freud, 1915/1996: 116). Postulado esse que situava no cerne do funcionamento psíquico um princípio econômico e que perduraria, em alguma medida, ao longo de toda sua obra como suporte de inúmeros avanços da teoria e da práxis psicanalítica. Se toda reflexão sobre a vida humana sempre tomou em consideração seja o desejo, seja o prazer, a novidade de Freud (1915/1996) foi situar esses termos a partir de uma economia. Sabemos hoje, portanto, o real valor de tal hipótese. Sabemos o quanto esse postulado de um psiquismo sujeito ao princípio do prazer, que "tem por função livrar-se dos estímulos que lhe chegam, ou reduzi-los ao nível mais baixo possível" (Freud, 1915/1996: 115), implicará no limite à radicalização de 1920. Implicará, ainda, a concepção de um sistema que só se conserva até um certo ponto, um sistema cuja finalidade é sua abolição, sua perda e não sua realização e eternização em um "bem" maior. Trata-se, assim, de uma hipótese que, apesar de suportar-se numa evidência ordinariamente confirmada na análise, configura ainda uma afirmação teórica inassimilável, impossível de se perfilar a qualquer regulação vitalista e ao que quer que já se soubesse (ou se saiba hoje) sobre o prazer e o desprazer fora do campo psicanalítico. Há um corte nessa afirmação e um corte que institui o campo psicanalítico como tal.

Freud (1915/1996:113) se escusa no início do artigo por não poder apresentar imediatamente suas observações "em conceitos básicos, claros e definidos com precisão", mas adverte igualmente que "nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições". Evocando a física (Freud, 1915/1996: 113) - como já havia feito no artigo sobre o narcisismo (Freud, 1914b/1996) -, indica como conceitos básicos, apesar de possuírem "um certo grau de indefinição" (Freud, 1915/1996: 113), podem se revelar indispensáveis na medida em que efetuam e permitem cernir um campo novo como efeito da própria operação conceitual. No artigo sobre o narcisismo (Freud, 1914b/1996), discorrendo sobre sua proposta de diferenciação da libido entre libido do eu e libido objetal, ele preconiza: "familiarizemo-nos com a possibilidade de erro, mas não nos abstenhamos de estender de maneira consequente a suposição escolhida em primeiro lugar" (Freud, 1914b/1996: 77). É claro que tal ousadia se fará acompanhar pela posição que Freud (1914b/1996: 76) adotara: "serei suficientemente coerente para abandonar essa hipótese, se o trabalho psicanalítico vier a produzir alguma outra hipótese mais útil sobre os instintos".

Não pretendemos acompanhar os inúmeros desdobramentos das hipóteses e da posição aqui mencionadas; antes nos ateremos a notar que passagens dos artigos freudianos como essas implicam uma decisão teórica: manter-se fiel a uma hipótese, sem sabê-la verdadeira ou falsa, pelo que ela contém de potencial para encaminhar uma dada questão, pelo que possibilita de avanços na conceituação em desenvolvimento. Decisão solitária e, no limite, vertiginosa - Freud (1914b/1996) a sublinha muitas vezes e, por isso mesmo, se endereça, se expõe ao crivo do leitor. Trata-se da decisão de fazer valer uma afirmação pelo que ela permite de reflexão sobre o que se passa com o sujeito e mais ainda por seus efeitos na direção a ser dada num tratamento. Mas, sobretudo, trata-se de responsabilizar-se por afirmar, sem concessões a qualquer ordem de empiria ou consenso já sabido e dado como certo, o que é indicado pela escuta do que é significante na fala dos pacientes.

É sem dúvida essa introdução incisiva de uma ordem significante na esfera conceitual - onde deveriam reinar a exatidão e a clareza -, sem o apoio da intuição e sem o recurso às evidências já dadas no plano do saber, que faz Lacan (1964/1985) aproximar o passo de Freud daqueles de Newton, Einstein e Planck, na medida em que toda a ciência moderna nasce dessa ruptura com a ordem imaginada das coisas. Diversos autores como Koyré (1966/1985) e Kuhn (1970/1998) já ressaltaram que o conceito newtoniano de força bem como a relatividade einsteiniana ou a quântica de Planck não são conceitos que possuem fundação ontológica, tampouco são noções intuitivas, apoiadas na evidência natural, no ser das coisas, na maneira como as coisas são. O próprio Newton dizia ignorar a natureza da força, mas, como se sabe, isso não impediu a teoria newtoniana de fornecer o enquadre teórico através do qual as pesquisas e o saber da dinâmica puderam avançar e se acumular - constituindo um "real" impossível sem eles.

Reconhecendo, pois, a importância de tal procedimento, presente não apenas na teorização freudiana, mas também na de Lacan, e no limite de toda emergência do novo no domínio da ciência, procuraremos examiná-lo tomando como ponto de referência o conceito de ato psicanalítico (Lacan, 1967-1968/2001). Nosso objetivo será situar o que iremos considerar um ato teórico (Lacôte, 1998; Harly, 2002) de Freud por homologia com o ato analítico. Veremos que esse ato é igualmente o de Lacan, e mais radicalmente, de cada analista em sua autorização. Procuraremos demonstrar que ambos - ato teórico e ato analítico - emergem da posição ética de um sujeito que, por arriscar assumir em relação aos mesmos a posição de suporte, ou relais, advém só depois como sujeito (implicado) nesse ato. Sujeito ainda por advir, mas que já aí se arrisca - justamente porque no ponto em que o ato acontece não encontramos a boa intenção de quem o terá feito, nem a prova positiva que o garanta e sustente.

Arrisca-se, portanto, aí desde sempre um sujeito, e assim o propomos e repetimos, pela aposta numa escuta (que só depois será a "sua" escuta), mas acima de tudo pela experiência dos efeitos do inconsciente, que mostram que é impossível que se saiba tudo. Há, pois, um saber que não sabe a si mesmo no horizonte de qualquer avanço teórico-clínico (posto que aqui não se separam duas searas) em psicanálise. Submetendo-se a isso, Freud, Lacan e alguns outros puderam tomar decisões conceituais que fundaram o campo e a práxis da psicanálise.

O ponto em que reconhecemos essa tomada de posição na teorização analítica marca a tensão entre essa forma de proceder e uma que almeje apreender o objeto para, a partir daí, assentar a autoridade que melhor possa discorrer sobre ele. Vale dizer: encontramos aqui o conflito entre a expectativa de um texto que fale a verdade sobre o verdadeiro e a presença de um outro texto que indica que à verdade falta saber. Conflito que é expresso no confronto entre duas modalidades diferentes de nos situarmos em relação com a verdade.

Nós nos aproximaremos dessas duas modalidades através da distinção proposta por Lacan (1969-1970/1992) ao distinguir quatro modos de laço social efetivos na cultura ocidental, estabelecendo quatro discursos que indicam ser a realidade social, uma realidade discursiva, atualizada na linguagem. Os discursos fornecem as coordenadas mínimas que permitem divisar os elementos e os lugares ocupados por tais elementos nas operações que caracterizam as relações sociais. Vamos nos ater ao discurso universitário e ao discurso analítico por expressarem, justamente, as duas formas diferentes de relação entre saber e verdade que nos interessam nesse momento. Evitaremos defini-los de antemão, na expectativa de que no decorrer de nosso texto os pontos que revelam uma tensão entre eles se esclareçam e, por aí mesmo, os definam.

Nós nos deixaremos orientar de início por uma lição do Seminário 17 de Lacan (1969-1970/1992), de 21 de janeiro, que aponta as consequências das operações discursivas para o sujeito que emerge dessas operações. Cada discurso - como modalidade de laço social, que comporta uma certa relação ao Outro, ao objeto, ao saber, à lei - faz o sujeito surgir em um lugar diferente. Sendo o discurso universitário o discurso hegemônico nas culturas ocidentais letradas no mundo contemporâneo, de saída estamos apensos ao seu funcionamento. Por esse motivo, Lacan (1969-1970/1992: 61) afirma que "ao querer sair do discurso universitário aí mesmo é que se volta implacavelmente a ele".

O sujeito constituído como efeito do discurso universitário está submetido ao exercício de um saber que se autonomizou e que se dirige a um objeto que esse saber domina, manipula - trata-se do objeto de pesquisa ou de estudo nosso de cada dia nos estudos e nas pesquisas universitárias. Nesse contexto, ainda que o sujeito se entenda como autor, ele só o é em consequência de ter aplicado um saber, de há muito acumulado, a um objeto que faz trabalhar. Ao mesmo tempo, como mencionado, o que ressalta da concepção de Lacan (1969-1970/1992) do discurso como laço social é que por esse funcionamento ele, o sujeito, é determinado.

Por sua vez, se o discurso do analista se torna prevalente, o que só pode acontecer de forma pontual, o que temos é um sujeito que se constitui por seu trabalho, por sua fala, ou melhor, por seu dizer causado pelo objeto que o terá feito desejar. Esse dizer guarda a estrutura do ato, que inaugura algo de novo, que faz as coisas se mexerem, que traz o risco da falha e que por ser ato se sustenta em um arbítrio com o qual temos que nos haver, sem poder prever as consequências (Lacan, 1967-1968/2001). Assim, dada a estrutura do discurso do analista, desvelam-se as condições para reencontrarmos o ato não apenas no domínio da clínica, como ato analítico, mas também no momento em que se produz um texto a partir do que se lê de significante nessa clínica.

Sobressai aqui a menção ao arbítrio, de resto feita várias vezes na aula lacaniana. Arbítrio que decorre não de alguma vontade, domínio ou tirania, mas sim de um constrangimento fulgurante, derivado do encontro com uma verdade de que não se tem como evadir. Examinemos o que pode estar implicado aqui, tomando da concepção de ato analítico (Lacan, 1967-1968/2001) as coordenadas estruturais. Estas permitirão a homologia com um ato que, sendo laico, isto é, não ocorrendo no âmbito estrito do dispositivo da análise, ainda assim não deixa de portar a mesma característica transgressiva, imprevisível, não garantida por um saber estabelecido previamente, pela qual o teórico que desse ato terá emergido deverá se responsabilizar.

No início da lição de que nos ocupamos, Lacan (19691970/1992: 52) enfatiza: "verdade não é uma palavra a ser manipulada fora da lógica proposicional". É certo que nesse domínio seu valor se encontra reduzido, no limite, ao manejo de um símbolo, a inscrição V (por oposição a F); mas Lacan (1969-1970/1992) acrescenta justamente que se trata de uso sadio, saudável!, porque desprovido de esperança.

Com efeito, o encaminhamento pela lógica de imediato põe a verdade em um lado formal, seco, sem paixão e, em suma, sem telos. Na lógica proposicional se trata ainda de colocar o verdadeiro ao lado do que é dito, mas aqui será necessário desde logo precisar que a verdade, como mostra a experiência analítica desde Freud (1925/1996), mas também com Lacan (1973/2001), não está do lado do dito pelo dito e sim de que se diga.

O lugar dado à proposição na lição, indica portanto que é no âmbito do que é dito que o verdadeiro pode se alojar. Mas o que é dito é a frase, e a frase se sustenta somente no significante - posto que o significante não remete senão a outros significantes, sem jamais cernir ou concernir o objeto (Lacan, 1969-1970/1992). É, pois, atrelada ao ato de dizer que a verdade pode se presentificar. Se, em anos anteriores, Lacan (1968-1969/2008: 24) tinha recorrido à prosopopeia justamente para acentuar o caráter imprevisível da verdade, anunciando que a verdade fala - "Eu, a verdade, falo - sou pura articulação, emitida para embaraço de vocês" -, podemos afirmar que há que dizer para que a verdade fale. Nossa dificuldade de dizer - e quanto a essa não é preciso nem recorrer à litote afirmando que essa dificuldade não é sem relação com a verdade - é justamente sinal franco e direto de uma evitação do ato que leva ao encontro com a verdade. Por isso retornamos sempre para o discurso universitário, porque justamente a verdade inclui o inconsciente e, portanto, implica o que nos é estranho e queremos evitar. Deslocamento do lugar em que nos encontramos idênticos a nós mesmos, na região em que nos instalamos com conforto por termos nos assegurado da continuidade do Eu, que nada quer saber do estranho que habita em cada um.

Lacan (1969-1970/1992) considera que a frase, que se sustenta no significante, concerne portanto ao sentido, ao mesmo tempo que dele se esquiva. Colocando em pauta o sentido, refere-se à dialética de onde parte como um pas-de-sens - que podemos traduzir, aproveitando toda a ambiguidade da palavra pas, por um passo-de-sentido, i.e., um passo em direção ao sentido, mas um passo que não ignora o limite do sentido, que comporta, no âmbito do sentido, o sentido algum.

Passo-de-sentido e sentido algum colocam em perspectiva o sentido e nos levam diretamente ao chiste, tão caro à tradição psicanalítica. Retomemos portanto, nesse ponto, uma das formulações iniciais de Freud (1905/1996) para falar do chiste, quando começava a inventar a psicanálise: mostra como a tirada espirituosa se assenta sobre uma palavra sem sentido ou com sentido falho que à primeira vista se apresenta como "mera formação léxica defeituosa, como algo ininteligível, incompreensível, enigmático" (Freud, 1905/1996: 15) e, por isso, desconcertante. Ao percebermos o equívoco, ao nos darmos conta de que a palavra nos deslocou pelo seu sem sentido, ao mesmo tempo, temos acesso à palavra correta. Nesse intervalo entre a palavra estranha e a palavra familiar, é novo ver surgir outra significação que não estava apenas na palavra estranha e sim no jogo que se jogou entre essa e a palavra familiar. O exemplo clássico de Freud (1905/1996) sobre o encontro do Barão de Rothschild e um pobre agente de loteria, em que este narra como foi tratado pelo milionário como um dos seus, familionariamente (Freud, 1905/1996: 14), nos dá a ideia de uma operação que não se faz pela referência a uma lógica discursiva cujos elementos seriam previstos e encadeados intencionalmente para dar mais clareza à afirmação. Além de apontar para o jogo de sentido/não-sentido, vemos aí um elemento de transgressão presente em todo ato, por inantecipável, igualmente, no ato analítico. Vale dizer, nos deparamos no chiste analisado por Freud (1905/1996) com a invenção de uma palavra inexistente no léxico, com uma criação que surge exclusivamente do jogo significante e às expensas do desejo (da posição) de um sujeito que advém do que esse jogo articula.

Mencionamos o chiste e seu efeito cômico porque o mecanismo que o atualiza ressalta o fundo de não sentido que dá voz a uma afirmação qualquer. Traz à baila a operação da fala, que, proferida, porta sempre em alguma medida um sentido novo, não previsto e, acima de tudo, não contido no momento anterior, que se instalaria por uma explicação qualquer. É o chiste, o equívoco que este traz, que mostra o peso do não-senso - como o ponto em que aparece uma "interferência" na proposição. Para atingir o que está em jogo no chiste e que afeta o sujeito, a referência à proposição se faz necessária, mas é necessário também um passo além dela - um passo para que, daí, a verdade escape. Um sonho, diz Freud, segundo Lacan (19691970/1992: 54) "desperta [o sonhador] justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade". No momento em que, podemos dizer, a verdade escapulindo da censura se apresenta, se esgueira num ponto - e em seguida torna a escapar.

No entanto, o que a questão do chiste, da verdade que aí se produz e que escapa do (e ao) sentido revela ainda de mais importante é o que introduz quanto à estrutura de outra formação do inconsciente: o ato falho. Dimensão que, do sentido (que rateia), remete ao ato - e mais uma vez, a esse passo-de-sentido, esse sentido algum, que está na base do ato. "No ato, seja ele qual for, o importante é o que lhe escapa" precisa Lacan (1969-1970/1992: 55). Nesse mesmo ponto encontramos o que escapa e que não está contido necessariamente no interior da verdade, posto que a verdade vigora apenas como um dizer que por estrutura o evoca. Trata-se do unheimlich. O encontro com o unheimlich é o que apavora no ato, posto que do ato só restam os efeitos - que mal podem ser entrevistos no momento em que ele ocorre, ultrapassando aquele que (supostamente) o faz nesse momento em que se lança em ato, sem saber. A "verdade parece-nos mesmo ser estranha, refiro-me à nossa própria verdade. Ela está conosco, não há dúvida, mas sem que nos concirna a um ponto tal que se queira dizê-la" (Lacan, 1969-1970/1992: 59). A verdade traz consigo essa presença unheimlich, estranha, familiar. Ela se anuncia no meu dito, emerge do meu dizer, mas não é minha e nem, muito menos, sou eu que a provoco intencionalmente. Da verdade que pode situar para mim algum real e prover algum "lastro", ainda que transitório, à minha errância de sujeito, eu sofro; não me aproprio. Não tenho absolutamente a posse da verdade, não posso acumular a verdade nem fazê-la durar (o que faria dela um saber). Por isso mesmo, a verdade, se não a evitamos, encontramos por um ato, da mesma ordem de um dizer. E é desse mesmo lugar estranho e no entanto tão íntimo, a um tempo familiar e desconhecido que, havendo ato, ela terá procedido.

Retomando mais uma vez as operações discursivas que produzem o sujeito no âmbito dos laços sociais, vemos que o trabalho que ele realiza a partir de uma instância que o comanda gera sempre um resto. Na operação analítica, o desejo do analista sob a forma de semblant do objeto que causa o sujeito incide sobre um sujeito a trabalhar, a falar, levando a que ele se encontre com os significantes que primeiro o constituíram. A tais significantes esse sujeito não tem como não estar submetido, atravessado por uma espécie de impotência causada por essa submissão. Na estrutura do matema dos discursos, vemos que só se passa do denominador à direita como lugar da verdade para a fração à esquerda, que situa a produção, por um ato que nos tire da impotência a que chegamos, ao constatar que não se trata de nossas melhores intenções quando se trata de usar a linguagem, pois antes de tudo é ela que nos determina. É pelo ato, portanto, que o sujeito passará da impotência à verdade que enfrentará como (sua) verdade; ou melhor, como a verdade que abriga o saber inconsciente (esse mesmo que Freud apostava que seus pacientes exalariam).

Então, Lacan (1969-1970/1992) começa a encaminhar a questão da verdade com a lógica proposicional, mas introduz alguma coisa que escapa a ela. Aí se apresenta algo de paradoxal, porque se ele começa dizendo que a verdade não pode ser manipulada fora da lógica proposicional, acrescenta adiante que uma verdade só pode ser localizada no campo onde ela se enuncia - e conclui: "só se encontra o verdadeiro fora de toda proposição" (Lacan, 1969-1970/1992: 59). Entre uma afirmação e outra, vale ressaltar, o que aparece é o inconsciente como efeito da própria linguagem: "Dizer que a verdade é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tais é incluir aí o inconsciente" (Lacan, 1969-1970/1992: 59).

Ao abordar a proposição, Lacan (1969-1970/1992) faz um breve contraponto com Wittgenstein (1921/2008). A referência a esse autor - que, segundo Lacan, se desloca numa esfera que é estritamente a da cogitação, "sem buscar ali nenhum fruto" (Lacan, 1969-1970/1992: 55) - serve para evocar que o verdadeiro corresponde, no âmbito da proposição, à adequação a uma estrutura que Lacan não define sequer como lógica (o que já seria um atributo), mas simplesmente como gramatical. De fato no contexto de isomorfismo entre mundo e sintaxe que compõe o Tractatus (Wittgenstein, 1921/2008), a linguagem tem uma estrutura lógica subjacente que demarca os limites do que se pode dizer clara e significativamente. A importância disso é que para Wittgenstein (1921/2008) o que pode ser dito é o mesmo que pode ser pensado, de modo que, tão logo se apreenda a natureza da linguagem, apreende-se também o que pode ser pensado, e assim o limite a partir do qual a linguagem e o pensamento tornam-se absurdos. Em suma, não há verdadeiro senão numa proposição elementar cuja validação como verdadeira ou falsa deve assegurar a verdade (ou falsidade) da proposição composta. Desse modo, comenta Lacan (1969-1970/1992), problematizando essa posição, é a tautologia do discurso (na medida em que um enunciado possa ser enunciado como verdadeiro ou como falso obrigatoriamente será verdadeiro) que constitui o mundo. Uma vez que a validade, e não a veracidade de uma proposição, constitui o fiel da lógica, o verdadeiro seria interno à proposição - onde não se anuncia senão o factício da linguagem. Assim, não se trata aqui de que tal signo ou sequência de signos sejam falsos; a questão é que não dizem absolutamente nada, não conseguem retratar nada do mundo. Para sair da tautologia, as proposições significativas deveriam ser figurações válidas da realidade, mas tanto para Wittgenstein (1921/2008) como para Lacan (1969-1970/1992), não existe uma metalinguagem que possa assegurar o factício da linguagem.

Para Wittgenstein (1921/2008, T6.54), é o caso de jogar fora a escada [da filosofia e da lógica] depois de subir por ela: "Minhas proposições são elucidativas na medida em que aquele que me compreende as reconhece ao final como não-senso, após ter escalado através delas, por elas, para além delas. Deve por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela."

Para Lacan (1969-1970/1992) não há outra metalinguagem senão a canalhice. Isto é, "querer ser o Outro de alguém, ali onde se delineiam as figuras em que seu desejo será captado" (Lacan, 19691970/1992: 57). Se Wittgenstein foi, para Lacan (1969-1970/1992: 57), quem "formulou com mais força o que resulta do empreendimento de postular que não há verdade que não esteja inscrita em alguma proposição, e de articular o que, do saber [como fundamento da proposição] pode funcionar como verdade", isso não impede Lacan de qualificar seu encaminhamento como uma "uma detecção da canalhice filosófica" (Lacan, 1969-1970/1992: 57) empreendida com uma "ferocidade psicótica" (Lacan, 1969-1970/1992: 58).

Lacan (1969-1970/1992: 56) nesse ponto se vale da distinção entre enunciado e enunciação, a qual não hesita "em classificar de arbitrária", para se contrapor à démarche wittgensteiniana pela qual esse autor localiza o fato como o atributo da "proposição crua". Tal proposição, afirma Lacan (1969-1970/1992), se porá entre aspas, como enunciado. A psicanálise recolhe a verdade incidindo sobre o registro do sentido - e, na medida em que "não há sentido que não seja do desejo" (Lacan, 1969-1970/1992: 58), faz emergir ao mesmo tempo, pelo escopo do sentido, o passo de sentido, o sentido algum e o não-senso, que tem peso de verdade.

Nós nos detivemos nesse ponto não apenas pela consequência que o recurso a essa distinção entre enunciado e enunciação terá para a questão que está sendo discutida acerca da proposição (voltaremos ainda a ela), mas pelo que ela implica do que Lacôte (1998) chama um ato teórico - no contexto de uma decisão conceitual. Ao introduzir a diferença enunciado/enunciação, tirando disso todas as consequências que viriam a produzir, Lacan (1964/1985) se situara, como ele mesmo admite, não perante uma necessidade teórica, mas no registro de um achado. Uma trouvaille, que ocorre também no procedimento do inconsciente (no arranjo que produz um sonho, por exemplo). A fecundidade dessa escolha de Lacan (1964/1985) é garantida somente a posteriori, por seu ato, que é ao mesmo tempo teórico e ético. Afastando-se da busca da coerência e da consistência entre as premissas, e das conclusões que se imporiam como necessárias, ou, pelo menos, não se apoiando primariamente nisso, encontra-se aqui com um ato que mantém a estrutura do ato analítico uma vez mais realizada. O que resulta daí é um procedimento que, se de um lado aproxima a psicanálise da ciência - na medida em que toda ciência comporta um fundamento em ato, que não se deixa reduzir inteiramente ao encaminhamento dedutivo -, repele, por outro lado, o discurso universitário.

Passemos a considerá-lo. Voltando à distinção entre enunciado e enunciação, encontramos o que tal distinção traz para a maneira de Lacan (1969-1970/1992) tomar a proposição. Introduzir essa diferenciação na proposição faz com que uma asserção, por si só, pelo simples fato de ser enunciada, não possa se anunciar como verdadeira, uma vez que a isso corresponderia a tautologia do discurso, a anulação do sentido. Lacan (1969-1970/1992: 60) remete à unglauben - com a qual Freud define a posição psicótica - a recusa da verdade, "nada querer saber do recanto onde a verdade está em jogo", implicada na posição de Wittgenstein (1921/2008), segundo a qual coisa alguma existe se não for sustentada por uma trama de fato. Para Wittgenstein (1921/2008), no Tractatus, o isomorfismo é totalitário e não admite uma correspondência parcial ou vaga entre proposições e fatos - ou uma proposição relata algo do mundo, ou não diz nada. Por sua vez o fato é dito - vale dizer, é fato o que se diz dele. O que se pode dizer, se pode dizer clara e distintamente; e o que não se pode dizer, ali onde a correspondência falha, se deve calar. Wittgenstein (1921/2008) considera que submetendo-se a essa limitação resolveu de vez todos os problemas filosóficos. Mas, é claro, ele situa o valor de seu trabalho, sobretudo, em mostrar como importa pouco resolver esses problemas.

Lacan (1964/1985), por seu lado, ao submeter-se à distinção enunciação/enunciado, desvia-se dessa discussão correspondentista sobre a verdade e o fato, para considerar a verdade como inseparável dos efeitos de linguagem. Mantendo-se na mesma via que valoriza a materialidade da proposição, Lacan (1969-1970/1992: 61) introduz outra sentença: "uma criança é espancada". Justamente a frase de Freud (1919/1996) que constitui a fantasia do sujeito e que permite - ao sujeito que somos, cada um de nós, tanto quanto a Lacan, em seu ato teórico - o passo ético que franqueia ultrapassar a querela do verdadeiro e do falso. "Não se pode vincular a fantasia ao que quer que se designe com os termos verdadeiro e falso", diz Lacan (19691970/1992: 61). Implicando com isso cada um de nós na injunção ética de tomar a (sua) fantasia como real ao qual estamos apensos. Não é simples fazê-lo; é mesmo todo o trajeto de uma análise que aí está imbricado.

De qualquer modo, encontramos assim refletido e encaminhado pelo tratamento que Lacan (1969-1970/1992) dá à proposição o embasamento para o ato de Freud (1919/1996) ao se decidir por sustentar a hipótese do princípio do prazer a despeito da fragilidade que esta parecia apresentar. No passo de Freud, bem como no de Lacan, observamos um deslocamento do julgamento feito com base na tabela da verdade para a introdução arbitrária de um novo conceito - nesse caso, a fantasia.

Surpreende a manobra lacaniana, ademais, pela proximidade que demonstra com outra do próprio Freud (1914a/1996) quando este também havia introduzido a fantasia, em sua reflexão sobre a etiologia da neurose. Freud, como se tem notícia, chega (diríamos, hoje, a posteriori quando já conhecemos a necessidade e a centralidade do conceito) relativamente "tarde" e atribuladamente ao conceito de fantasia - e através disso ao conceito propriamente freudiano de sexualidade, que inclui a sexualidade infantil. Constatando a inverossimilhança da hipótese fantasiosa da sedução, postulada anteriormente como base dos traumas sexuais infantis, confessa a Fliess, em carta famosa de 1897, sentir faltar-lhe o apoio da realidade - o que pode passar por um paradoxo (Freud, 1897/1996). É notável que se refira à hipótese fantasiosa da sedução como o seu apoio na realidade. Primeiramente, porque a decepção de Freud (1897/1996) demonstra como a realidade, o que julgamos como a realidade, aproxima-se da fantasia. E, além disso, por mostrar exemplarmente seu trajeto com a verdade, que ele tem que cernir com a teoria: à medida que se aproxima do hiato da verdade, que marca justamente a relação do saber ao real, denuncia-se a falta de chão sob os pés e Freud (1897/1996) tem diante de si o abismo que separa a verdade (que incide e se faz notar, mas não se referencia) do saber, da realidade das coisas e sentidos positivos do mundo.

Acompanhamos nesse episódio, considerado "desconcertante" pelo próprio Freud (1914a/1996), sua posição ética de reconhecer que ninguém "tem o direito de se acovardar quando suas expectativas não se cumprem" (Freud, 1914a/1996: 17). É preciso revê-las, acrescenta. E foi revendo-as que chegou às formulações sobre a fantasia e a realidade psíquica na vida sexual infantil.

Freud (1897/1996), podemos dizer, havia se deparado com a querela do falso ou do verdadeiro, do V ou do F, de sua teoria do trauma sexual e a enfrentou com o ato de reconhecer o caráter de fantasia presente nas cenas reveladas por seus pacientes e elevá-lo à dignidade de um conceito da teoria psicanalítica.

Da mesma maneira, para voltarmos à questão com que começamos o presente artigo, com Lacan podemos divisar Freud dando um passo além na sua teorização do sujeito do inconsciente e do desejo - um passo que ultrapassa a hipótese inicial de um sujeito regulado exclusivamente pelo princípio do prazer (hipótese à qual, como enfatizamos, havia se mantido fiel durante anos), para finalmente encontrar uma nova lógica para o sofrimento do sujeito na figura de um além do princípio do prazer (Freud, 1920/1996). Trata-se, agora, de reconhecer outros fenômenos que não encontravam explicação até então: a repetição de sonhos e pontos traumáticos, resistências que persistem e falam de um sujeito enquistado na repetição engendrada por um comando mortífero que lhe escapa e que ao mesmo tempo o determina e constitui. Apenso a seu ato, sustentado por sua posição ética, portanto, Freud avança em suas decisões conceituais, em seu entendimento das vicissitudes do humano, para deixar o legado que é a psicanálise.

 

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Recebido em 15 de outubro de 2012
Aceito para publicação em 07 de setembro de 2013