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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro dez. 2013

 

ARTIGOS

 

A dor como sinal da presença do corpo

 

Pain as a sign of the body's presence

 

 

Isabel Fortes

Professora da Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida; Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo desenvolve a hipótese de que, na teoria freudiana, a dor pode ser concebida como um sinal que indica a presença do corpo para o ego. Para demonstrar esta relação, propomos três vias teóricas nas quais as duas noções encontram-se entrelaçadas: na formação do ego na segunda tópica, no quadro clínico da hipocondria e na forma que podemos entender o órgão em psicanálise. Assim, tal associação é considerada importante no que concerne à formação do ego na proposição da segunda tópica porque, nesse contexto, o componente da dor comparece nas elaborações teóricas acerca do ego em sua articulação com a ordem corporal. O segundo assinalamento será feito a partir da hipocondria, articulando-a à compreensão que ela pode trazer para a hipótese proposta. Em terceiro lugar, destaca-se como a conexão entre a dor e o corpo é inerente à especificidade do registro do órgão em psicanálise.

Palavras-chave: corpo; dor; ego; hipocondria; psicanálise.


ABSTRACT

The article develops the hypothesis that, in the Freudian theory, pain can be conceived as a sign that adverts the ego to the presence of the body. To establish this relationship, three theoretical approaches are proposed in which those two notions intertwine: the formation of the ego in the second topic; the hypochondriacal clinical condition; and the way the organ can be understood in psychoanalysis. Thus, this association is important for the formation of the ego as proposed in the second topic because, in this context, the pain is present in theoretical considerations about the ego in its relation to the body. The second indication comes from hypochondria, due to the understanding it can bring to the proposed hypothesis. Thirdly, the article shows that the connection between pain and body is inherent to the specificity of the organ to psychoanalysis.

Keywords: body; pain; ego; hypochondria; psychoanalysis.


 

 

INTRODUÇÃO

No presente artigo, buscaremos demonstrar como a dor comparece ao longo da obra freudiana como um elemento importante não somente para a constituição do corpo, mas também para o conhecimento e para a percepção que o eu tem do corpo próprio. Propomos a ideia de que a dor é um índice, um sinal que indica a presença do corpo para o eu.

A função da dor adquire maior relevância para a formação do eu na tessitura da segunda tópica, quando Freud (1923/1976) descreve o id como o polo pulsional e demarca a parte inconsciente do eu. É importante ressaltar que é nesse quadro teórico que a dor passa a ocupar um lugar de destaque, associada à noção de trauma e à presença da pulsão de morte na compreensão do psiquismo. Mas a condição clínica da hipocondria já mostrava desde os primeiros escritos freudianos que o corpo dói tanto física quanto psiquicamente. O órgão dolorido do hipocondríaco é dor corporal, mas é também fonte de angústia e sentimentos de estranheza. Nas neuroses atuais descritas nos anos 1890 e, mais tarde, em 1914, no ensaio sobre o narcisismo, a hipocondria traz ao centro da cena a presença do corpo, apresentando-o como entrelaçado à dor psíquica. Não há nessa experiência um limite nítido entre a dor física e a dor psíquica. Há, sim, um órgão dolorido que é ao mesmo tempo fonte de angústia e de sentimentos de estranheza.

A não separação entre a dor física e a dor psíquica remete ao estatuto do órgão em psicanálise, que é atravessado necessariamente pela pulsão e pela linguagem, diferenciando-se radicalmente do órgão da anatomia médica.

 

A DOR COMO ÍNDICE DE PRESENÇA DA DIMENSÃO CORPORAL

Dessa maneira, tanto a dor física como a dor psíquica podem se materializar como índices que sinalizam a presença do corpo. O órgão investido de angústia pelo hipocondríaco ou mesmo uma parte corporal que apresenta uma doença orgânica propiciam, por meio da dor que produzem, a percepção de que ali há corporeidade. Cabe notar, apesar de que esse não será o foco principal do presente artigo, o quanto essa relação entre dor e corpo comparece de forma contundente em vários quadros clínicos considerados graves, nos quais o sujeito tem necessidade de produzir em si mesmo uma dor corporal para se sentir existente, como, por exemplo, nos casos de automutilação, ou na paranoia, quando o corpo toma o lugar de um objeto exteriorizado que se torna persecutório. Esse segundo exemplo será desenvolvido no artigo, assinalando o fato de ser comum a ocorrência de episódios de hipocondria na paranoia. Estes seriam as configurações mais radicais do fato de que por meio da dor o eu tem o conhecimento do corpo próprio. O presente artigo buscará relacionar dor e existência, ao demonstrar que a dor pode ser uma via para a assunção do corpo próprio e, portanto, para a coesão entre o eu e o corpo.

Em O ego e o id (Freud, 1923/1976: 40), quando formula a segunda teoria do aparelho psíquico, Freud afirma que o eu é "antes de tudo um eu corporal". Observamos, então, que a dor se encontra intrinsecamente correlacionada ao eu, e a ideia que buscamos sustentar no presente artigo é que ela pode se constituir como uma via para a aquisição da percepção do eu acerca do corpo.

A dor desempenha uma função central no processo de percepção do próprio corpo, pois a maneira pela qual percebemos nossos órgãos durante as doenças dolorosas pode se constituir em um modelo de como chegamos à ideia do próprio corpo, conforme assinalado por Freud (1923/1976):

A psicofisiologia examinou plenamente a maneira pela qual o próprio corpo de uma pessoa chega à sua posição especial entre outros objetos no mundo da percepção. Também a dor parece desempenhar um papel no processo, e a maneira pela qual obtemos novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças dolorosas constitui talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à ideia de nosso corpo (Freud, 1923/1976: 39-40).

Freud demonstra nessa citação que a maneira pela qual obtemos o conhecimento dos nossos órgãos quando eles estão doloridos pode ser paradigmática da forma pela qual podemos chegar ao conhecimento da dimensão corporal. Nesse sentido, a dor seria um sinal que indica a presença do corpo para o eu.

Vale nos determos um pouco nessa compreensão da dor como índice. Qual seria exatamente o estatuto da dor que permite concebê-la como um índice? Aproximamo-nos aqui das teorias do linguista Charles Peirce (Ferrater-Mora, 2001), que ampliou a noção de signo e, consequentemente, a noção de linguagem. Nessa concepção, o signo não se restringe ao signo verbal, pois se refere ao signo em geral, sendo este último definido como uma coisa que representa alguma outra coisa para alguém. O índice, na compreensão peirceana, aponta para a presença de algo, de uma alguma coisa. Ora, a dor, no ensaio de 1923 (Freud, 1923/1976), é vista como algo que representa o corpo para o eu. Entendemos então a dor como um sinal, um índice, um signo não verbal que estaria inscrito no registro da sensorialidade.

Por outro lado, além de ser um sinal que indica a presença do corpo, a dor pode, também, ser uma via de apropriação do corpo. É interessante notar que o que está em jogo aqui não é necessariamente a percepção da unidade corporal, mas uma percepção do corpo enquanto fragmentário, que pode ser feita através da sensação da dor. O órgão dolorido oferece o conhecimento de partes do corpo e não da sua imagem unificada. Portanto, pode ser entrevisto aqui que a assunção do corpo não possui como pressuposto necessário a busca da unificação do mesmo. É possível obter o conhecimento do corpo através das suas partes, valorizando-se, portanto, a dimensão do fragmento na constituição corporal. Essa análise aponta, a nosso ver, um caminho fecundo para pensarmos a constituição corporal, compreendida, nessa perspectiva, sob o prisma da fragmentação. É, portanto, no contexto mesmo do caráter fragmentário que a dor se torna caminho para a assunção corporal.

No entanto, vale ressaltar que esse esforço para demarcar uma cartografia conceitual para a constituição corporal na obra freudiana implica diferenciá-la daquelas de outros autores. A proposta para o conhecimento do corpo próprio não é muito evidente ao longo da obra freudiana. Como assinala Assoun (2009), não há em Freud uma teoria do corpo próprio ou uma teoria da imagem corporal como observamos em Lacan, Schilder, Baldwin e Wallon. Na metapsicologia freudiana não há a questão de se fiar em uma imagem espacial unificada. O corpo não é uma noção teórica em Freud, o que leva Assoun (2009: 158) a dizer que a noção de corpo encontra-se "à prova da metapsicologia", isto é, o corpo perpassa vários conceitos metapsicológicos, mas não se constitui ele mesmo como um conceito. Uma teoria do corpo, segundo Assoun (2009), necessitaria ter como parti pris o desenvolvimento de uma unidade corporal, o que, como estamos vendo, não é o caso, já que o estatuto do corpo na teoria freudiana sustenta-se na concepção de que o corpo é um ser fragmentário.

Como demonstra Leclaire (1979), o corpo erógeno se constrói a partir do caráter fragmentário. A parte erógena surge de maneira indiscriminada neste ou naquele ponto da superfície corporal. Tal acento dado à equivalência das partes se refere a um conjunto que ignora a totalidade, que desconhece aquilo que seria da "ordem do Um totalizante, do Um articulador, desconhece um processo de globalização que mantenha um todo único bem articulado" (Leclaire, 1979: 60). Esse modo de entender o corpo erógeno o inscreve na ordem da dispersão e da anarquia, não sendo remissível ao domínio de uma totalização.

Portanto, quando falamos do corpo erógeno aludimos às partes do corpo e não à totalidade corporal. O que chama mais a atenção aqui é a possibilidade de a dor conduzir ao sentimento de propriedade do corpo através dos órgãos doloridos, mas sem necessariamente promover o sentimento de unidade corporal. A dor oferece a possibilidade de apropriação do corpo, mas mantendo neste o seu caráter fragmentário. Se, em um primeiro momento, a assunção do corpo ficaria atrelada à construção de uma unidade do mesmo, nossa proposta é que, ao apontar a dor como índice de conhecimento geral do corpo, Freud não faz deste uma entidade unificadora, mantém a referência a ele enquanto constituído por partes.

 

A DOR HIPOCONDRÍACA

A constatação de que é por meio dos órgãos doloridos que chegamos ao conhecimento geral do corpo se associa ao destaque dado à dor do hipocondríaco. A angústia hipocondríaca foi descrita desde os primeiros escritos de Freud (1895/1977) como uma modalidade de recurso psíquico que ocorre quando não se dá a produção delirante. Seria uma espécie de projeção voltada para o corpo: em vez de reconhecer que o seu mal seria endógeno, o hipocondríaco prefere concebê-lo como uma mal exógeno. Ou seja, quando não é possível descarregar a angústia através das produções psíquicas, sejam elas neuróticas ou psicóticas, a descarga da angústia toma o corpo como alvo, fazendo dele o local por excelência para a expressão da dor (Freud, 1895/1976). A hipocondria, portanto, já apontava desde o início para a relação que se faria em textos posteriores entre o órgão dolorido e o conhecimento do próprio corpo.

No artigo "Uma introdução ao narcisismo" (Freud, 1914/1974), a doença orgânica é vista como uma via privilegiada para tornar evidente a perturbação econômica pela qual se delineia o narcisismo. Isso introduz considerações relevantes sobre a hipocondria. A oposição entre a doença real e a doença dita "imaginária" encontra-se relativizada pelo fato de que em ambas ocorre uma retração narcísica, oriunda da estase libidinal do eu. O paciente hipocondríaco retira a libido dos objetos do mundo exterior para concentrá-la de modo narcísico sobre o órgão que o incomoda. O deslocamento da energia do domínio dos objetos em direção ao investimento no próprio corpo define na base da hipocondria um retorno narcísico para o eu, inscrevendo a angústia hipocondríaca do lado da libido do eu, enquanto a angústia neurótica estaria mais do lado da libido do objeto.

Nesse ensaio de 1914, Freud (1914/1974) faz um paralelo entre a hipocondria e a parafrenia, pois o delírio de grandeza característico da segunda realiza o mesmo movimento de redirecionamento da libido de volta para o eu que se dá na primeira. É interessante notar que a hipocondria ocorre quando não há o recurso dos delírios de grandeza e da megalomania, o que caracteriza a parafrenia como uma doença com melhores recursos psíquicos do que a hipocondria, já que nesta a estase libidinal do eu não se transforma em produções delirantes que, bem ou mal, oferecem uma sustentação psíquica ao sujeito. Na hipocondria, a libido é dirigida para o corpo e o sujeito estabelece com ele uma relação persecutória.

O paralelo entre hipocondria e paranoia é uma constante nas elaborações acerca da hipocondria. Na descrição do caso Schreber, em 1911, as ideias persecutórias encontravam-se sempre associadas a preocupações hipocondríacas (Freud, 1911/1969). Nos seus delírios, Schreber sentia seu corpo se transformando e tomado por várias doenças, protagonista privilegiado de suas ideias salvacionistas ou persecutórias. Como salienta Volich (2002), as fantasias hipocondríacas de Schreber são verdadeiros operadores de seu sistema delirante. Nesse caso clínico, o funcionamento megalomaníaco se apoiava sempre no corpo, visto como condição essencial de sua missão salvadora. Schreber descreve suas doenças e seu sofrimento corporal como uma espécie ao mesmo tempo de redenção e de testemunho da sua imortalidade:

Durante os primeiros anos de sua moléstia, alguns de seus órgãos corporais sofreram danos tão terríveis que inevitavelmente levariam à morte qualquer outro homem, viveu por longo tempo sem estômago, sem intestinos, quase sem pulmões, com o esôfago rasgado, sem bexiga e com as costelas despedaçadas; costumava às vezes engolir parte de sua própria laringe com a comida etc. Mas milagres divinos ("raios") sempre restauravam o que havia sido destruído e, portanto, enquanto permanecer homem, é inteiramente imortal (Freud, 1911/1969: 32).

A angústia hipocondríaca de Schreber, como vemos, sinaliza um retorno do investimento para o próprio corpo, movimento característico tanto da psicose como da hipocondria. A presença da hipocondria na paranoia faz operar uma projeção patológica sobre o espaço corpóreo, que adquire caráter persecutório no paciente hipocondríaco.

O tema da hipocondria, como foi dito antes, já estava presente em escritos bem anteriores, em que esta síndrome foi incluída no rol das neuroses atuais, junto com a neurastenia e a neurose de angústia. No Rascunho B: etiologia das neuroses (Freud, 1893/1977), a neurose de angústia é descrita detalhadamente como uma neurose independente da neurastenia, na medida em que apresenta manifestações de angústia que estão relacionadas ao corpo. São mencionados vários sintomas corporais presentes nesse quadro clínico, dentre eles a hipocondria, citada aqui não ainda como uma terceira neurose atual, mas como um modo da angústia que se descarrega diretamente no corpo. Observamos aqui como o esforço de Freud (1893/1977) em delimitar os sintomas corporais nos diversos quadros de neurose de angústia demonstra sua intuição quanto às estreitas relações entre angústia e corpo, que terão papel essencial ao longo de sua obra.

A hipocondria se caracteriza pela sua relação com a paranoia, pois o corpo passa aqui a ocupar o lugar do objeto perseguidor. No Rascunho H (Freud, 1895/1977), com o título Paranoia, Freud apontou a proximidade entre hipocondria e paranoia, mostrando como o hipocondríaco não percebe o seu mal como vindo de dentro, considerando-o, ao contrário, como exógeno, causando-lhe satisfação pensar que seu mal não é endógeno.

Assim, aponta por essa via um mecanismo similar à projeção que, no caso da hipocondria, não se dirige ao mundo dos objetos, mas ao próprio corpo, fazendo deste uma entidade exteriorizada em relação ao eu.

Tausk (1919/1990), em "Da gênese do "aparelho de influenciar" no curso da esquizofrenia", descreve de forma bem ilustrativa esta associação entre hipocondria e paranoia, batizando de "paranoia somática" os sentimentos de perseguição em relação ao próprio corpo. A paranoia somática direciona os núcleos persecutórios para o corpo do sujeito, produzindo, inclusive, alterações físicas e psíquicas. O inimigo, nesse caso, não se encontra encarnado em uma pessoa do mundo exterior, mas no próprio corpo do paciente, vivido como estranho ao sujeito. A exterioridade aqui não está no mundo de fora. O lugar da exterioridade é remetido ao corpo, percebido pelo eu, portanto, como um estrangeiro. Esta análise oferece um estatuto de estrangeiridade radical do corpo, na medida em que ele não é reconhecido como integrando uma unidade psíquica com o eu.

Um exemplo do corpo concebido como estrangeiro pode ser entrevisto no relato do caso de uma paciente de Tausk que diz se encontrar em estado de total submissão a um aparelho, ao qual ela alude como sendo uma "máquina de influenciar" cuja engrenagem encontra-se conectada ao seu corpo. Ela não sabe muito bem como é feita a ligação da máquina, mas percebe que tudo que acontece ao aparelho se passa também no nível do seu próprio corpo, havendo uma correspondência direta entre a máquina e o seu corpo:

Ela sente as manipulações no aparelho, nos locais correspondentes em seu próprio corpo. Sente-as como qualitativamente idênticas. Os efeitos provocados no nível do aparelho aparecem igualmente no corpo da doente. O aparelho não tem mais órgãos genitais desde que a doente não tem mais sensações sexuais, e o aparelho teve órgãos genitais enquanto a doente tinha consciência destas sensações (Tausk, 1919/1990: 51).

O espaço corpóreo encontra-se, desse modo, conectado ao aparelho, mas ao mesmo tempo encontra-se do lado de fora e por isso, desde esse lugar exterior, pode manipular a paciente, que se sente a ele subjugada. A máquina teria, assim, uma enorme influência sobre o seu ser, por isso ela a denomina "máquina de influenciar". Trata-se de um mecanismo de projeção, mas de uma projeção que é feita sobre o corpo, visto pelo eu como um ente de fora. No relato da paciente, a dor é vista como aquilo que anuncia a interação entre a máquina e seu corpo:

Quando espetam o aparelho, ela sente a dor no local correspondente em seu próprio corpo. [...] O interior do aparelho é constituído por bactérias elétricas cuja forma é provavelmente a dos órgãos internos do homem. Os malfeitores que manipulam o aparelho provocam na doente secreções nasais, odores repugnantes, sonhos, pensamentos, sentimentos (Tausk, 1919/1990: 49).

Ali onde dói, há, para a paciente, a sinalização da presença do aparelho. Observa-se aqui, portanto, uma concepção de corpo sobre o qual podemos dizer não somente que se trata de uma exterioridade, mas que pode ser conectado ao eu por meio do componente da dor.

A elaboração de Tausk, discípulo de Freud, é bem próxima das proposições freudianas. Como dissemos anteriormente, já em 1895, no Rascunho H, Freud (1895/1977) mostrou que a vinculação entre projeção e paranoia seria a essência da compreensão da hipocondria, que estaria diretamente ligada à paranoia, compreensão que foi ratificada pela análise do caso Schreber e pelo artigo sobre o narcisismo.

Tausk entende a projeção somática de maneira correlata ao funcionamento da projeção simples. Se na paranoia a libido é dirigida para o ego, na "paranoia somática" a projeção se volta para o corpo como uma posição libidinal que teria como meta defendê-lo. Essa projeção tem a ver com o corpo e não com o ego, encontrando-se a serviço da defesa da libido que pertence ao corpo próprio: "libido esta que se tornou forte demais, ou demasiado inoportuna para que possa ser reconhecida pelo sujeito como sendo sua. Seria lógico admitir que essa projeção concerne apenas à libido, tendo a ver com o corpo e não com o ego psíquico" (Tausk, 1919/1990: 59).

Desse modo, a dor hipocondríaca que manifesta a estase libidinal no eu tem, paradoxalmente, a função de proteger o corpo, já que o investe de energia psíquica. A concentração de libido narcísica acaba sendo uma proteção e um modo de assunção do corpo próprio.

 

A DIMENSÃO DO ÓRGÃO

Ao afirmar que a dor é via para a percepção corporal, Freud (1923/1976) diz que isso se dá quando um órgão se encontra doente ou dolorido. Isso levanta um ponto importante: como compreender o órgão em psicanálise?

Ortega (2008) mostra como o advento da medicina moderna se forjou a partir do momento em que passou a ser possível, com a dissecação dos cadáveres, o exame do corpo interior. Para a psicanálise, no entanto, a dimensão do corpo interior é inexistente, pois, nesse campo clínico-conceitual, o corpo é concebido desde sua superfície. As bordas corporais oferecem a ele a consistência possível; os orifícios, a pele e as membranas dão os contornos para o circuito da pulsão. Mas, se não se trata aqui da visibilidade médica que invade o corpo e examina os órgãos, qual a compreensão que se tem acerca do órgão na teoria psicanalítica? Qual a especificidade do órgão em psicanálise, se não se trata de concebê-lo na ordem da anatomia?

O órgão, para a psicanálise, é importante como parte corporal que pode ser atravessada pela libido. Assoun (2009: 129) denomina "organologia freudiana" a premissa de que os órgãos, de modo geral, podem adquirir valor sexual tanto quanto os órgãos genitais, isto é, podem se transformar em zonas erógenas. Estas são independentes da função genital e ganham significação sexual ao serem enredadas aos fantasmas originários. A parcialidade aqui em jogo é o que torna possível a erotização do órgão, retomado na psicanálise em sua singularidade e em sua literalidade, ou seja, como instrumento que permite o transporte da libido.

O "órgão parcial" (Assoun, 2009: 119) teria um regime próprio quando reenvia a experiência de satisfação aos registros do "prazer do órgão", da "excitação do órgão" e da "libido do órgão", termos que, segundo Assoun (2009), teriam sido também empregados por Freud ao fazer alusão à satisfação proveniente das partes do corpo. Esse regime é a própria condição da pulsão, que só é possível porque há a excitação do órgão, fonte por excelência do processo pulsional, que encontra satisfação em um corpo que se torna erógeno pela variabilidade das suas partes. O registro do órgão na teoria freudiana liga-se às dimensões de prazer, de dor e de excitação, indicando que o órgão é portador de excitabilidade, sendo esse o caráter que interessa no órgão quando investigado pela psicanálise.

Portanto, vemos como o órgão envolve diretamente a dimensão da excitabilidade e como esta engloba como condição de sua existência a parcialidade das pulsões. A noção de "prazer de órgão" indica esta parcialidade, pois consiste no próprio modo de satisfação das pulsões parciais que emanam de diversos lugares e regiões do corpo. Pelo "prazer de órgão", a zona erógena encontra o caminho da satisfação no próprio lugar onde ocorre a excitabilidade, de maneira independente das outras zonas (Freud, 1905/1972). Tal noção amplia o modo como compreendemos a sexualidade, na medida em que se contrapõe à função vital, já que esta se encontraria necessariamente associada a uma região corporal específica.

Em "Os instintos e suas vicissitudes" (Freud, 1915/1974), a variabilidade da pulsão sexual é reafirmada pelo fato de as pulsões serem numerosas, nascerem de variadas fontes orgânicas e encontrarem sua satisfação através do prazer de órgão. Tal noção encontra-se entrelaçada à parcialidade das pulsões e à distância destas em relação aos instintos. Nesse sentido, as pulsões parciais que emergem das localidades corporais encontram no prazer de órgão um modo de satisfação que é "desfinalizada" (Assoun, 2009: 120) em relação a uma função sexual integrada que seria ligada à atividade genital. Entende-se aqui que o prazer genital seria nada mais do que um prazer de órgão que, no caso, encontra-se associado às atividades genitais.

Assim, o órgão na psicanálise é visto a partir da lógica do prazer, da excitação e da libido, interessando na medida em que se constitui como veículo de dor, prazer e libido. Portanto, analisar o registro do órgão em psicanálise implica também valorizar o lugar do corpo enquanto partes, concebendo-as como estando sempre atreladas ao campo da libido, do prazer, da dor e da excitação.

 

CONCLUSÃO

Em suma, levantamos neste artigo a hipótese de que a dor, segundo as elaborações teóricas freudianas, tem uma função central para a percepção do corpo próprio. Quando um órgão ou uma parte do corpo encontram-se atravessados pela sensação dolorosa, essa região ocupa um espaço grande no psiquismo e oferece ao eu a indicação de que ali há corporeidade. Através da dor, sente-se o corpo próprio, não se diferenciando com nitidez, nesse domínio, a dor psíquica da dor física, pois tanto o psiquismo quanto o corpo são impelidos a responder de alguma forma à percepção da dor.

A ideia de que a dor oferece um conhecimento geral do corpo é elaborada no texto "O ego e o id" (Freud, 1923/1976), mas a conexão entre a dor e o corpo comparece com predominância na síndrome da hipocondria. A angústia produzida nesse quadro clínico remete ao mesmo tempo às dores físicas e psíquicas, trazendo à baila as fantasias do sujeito e a inquietante estranheza quando é transportado a uma proximidade com a dimensão do corpo, que poderá ser trilhado e mapeado através das regiões corpóreas acometidas pela dor.

 

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Recebido em 24 de junho de 2013
Aceito para publicação em 26 de outubro de 2013