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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro dez. 2013

 

ARTIGOS

 

Anna Freud e Melanie Klein: o sintoma como adaptação ou solução?

 

Anna Freud and Melanie Klein: the symptom as adaptation or solution?

 

 

Maria Gláucia Pires Calzavara

Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); Membro do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise - NUPEP (UFSJ); Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: glauciacalzavara@mgconecta.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo parte de uma questão que se introduz na prática clínica com crianças e nas discussões acadêmicas de casos clínicos em referência ao sintoma. Trata-se de se perguntar se essa prática privilegia a formação do sintoma e sua articulação com a dimensão pulsional, ou se a mesma se limita a uma prática de adaptação do sintoma ao social. Iniciaremos nosso percurso com Freud e a nova formulação pulsional proposta por ele em 1920, procurando destacar como essa formulação provocou certa inflexão no que concerne ao sintoma na clínica, e aqui, especificamente na clínica com crianças, com as pioneiras Anna Freud e Melanie Klein.

Palavras-chave: sintoma; clínica com crianças; adaptação.


ABSTRACT

This article takes as its point of departure a question on the symptom that emerges in the clinical practice with children and in academic discussions of clinical cases. Does this practice favor the formation of the symptom and its articulation with the drive dimension or is it merely a practice of social adaptation of the symptom? We will begin at the new drive theory proposed by Freud in 1920, trying to highlight how this formulation caused a slight change in relation to the symptom, focusing here in the clinic with children of the pioneers Anna Freud and Melanie Klein.

Keywords: symptom; clinic with children; adaptation.


 

 

Partimos de uma questão que, de maneira insistente, se introduz nas discussões acadêmicas sobre os casos clínicos tanto na prática da supervisão de casos, quanto nos espaços institucionais dos núcleos de pesquisa em psicanálise com crianças. Trata-se de se perguntar, em cada caso, se a aplicação da psicanálise com crianças se mostra uma prática que, como aquela com sujeitos adultos, privilegia a formação do sintoma e sua articulação com a dimensão pulsional, ou se a mesma se limita a uma prática de adaptação da criança ao social.

No intento de elucidar tal questão, faremos um percurso pelas produções teóricas das duas eminentes psicanalistas de crianças2, Anna Freud e Melanie Klein, que se destacavam, no movimento psicanalítico, no que diz respeito ao conhecimento e à prática psicanalítica com crianças no ano de 1920. Nessa data, cada uma a seu modo fez sua inserção no movimento, propondo novas práticas para a clínica com crianças. Essas práticas permitiram o início da formação de duas escolas de pensamento cujo objetivo se ancorava em práticas clínicas próprias para se haver com o sintoma da criança, mas que, sobretudo, nos parece se afastarem dos fundamentos clínicos da teoria freudiana, principalmente em referência à dimensão pulsional do sintoma.

Alguns autores contemporâneos que se dedicaram ao tema da psicanálise com crianças sinalizam esse desvio da referência ao sintoma em detrimento da adaptação. Santiago (2005), por exemplo, em seu livro A inibição intelectual na psicanálise, demonstra uma inflexão ocorrida na prática com crianças concernente à referência central de Freud sobre a fobia da criança, que perde espaço para uma perspectiva mais profilática do tratamento de crianças, notadamente na prática das analistas Anna Freud e Melanie Klein, que se dedicaram a essa clínica nos anos 1920. Naquela época, que pode ser situada como o momento do nascimento e desenvolvimento da psicanálise com crianças, as formulações sobre o sofrimento infantil desconsideraram o paradigma da fobia e privilegiaram a presença constante da problemática da inibição, sinalizando uma desordem neurótica. Essa inflexão, segundo Santiago (2005: 67), "que se opera na temática da fobia para a inibição, tem como pano de fundo o questionamento sobre a eficácia e os limites no tratamento com crianças".

Destacando este momento, o ano de 1920, encontramos, também, a referência ao conceito freudiano de pulsão de morte como questão que provocou certa inflexão na prática clínica com crianças em Anna Freud e Melanie Klein (Calzavara, 2012). Consideramos que o modo particular de apreensão do conceito de pulsão de morte levou Freud a um certo encaminhamento de sua prática que possibilitou aos seus seguidores a ideia de cura na medida da adaptação da criança ao social. Permitiu, desse modo, uma abertura para práticas que privilegiam o sintoma naquilo que ele se adapta ao social, ou seja, desconsiderando a referência à dimensão pulsional presente nele.

Iniciaremos nosso percurso com Freud e a nova formulação pulsional proposta por ele em 1920, procurando destacar como essa formulação provocou certa inflexão no que concerne ao sintoma na clínica, e aqui especificamente na clínica com crianças.

 

O SINTOMA E A DIMENSÃO PULSIONAL

O ano de 1920, especificamente o texto "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1980), representou, com a postulação da pulsão de morte, a grande virada nos fundamentos freudianos no que concerne à clínica e seus efeitos. É relevante recordarmos que, anteriormente ao ano de 1920, a clínica psicanalítica, fundamentada nos moldes da interpretação com o objetivo de tornar consciente o inconsciente, começava a se apresentar insuficiente. Isso porque o sentido do percurso analítico e da cura analítica proposto por Freud se ancorava ainda, nessa data, na proposição tão recorrente em "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1980) - tornar consciente o inconsciente -, que era a expressão do modo de funcionamento do psiquismo e tinha como fim, pela interpretação, fazer o inconsciente se apresentar, permitindo, desse modo, o esvaecimento do sintoma. Ainda anteriormente, o foco tinha sido o sintoma: "o momento em que o médico desvenda a ocasião da primeira ocorrência do sintoma e a razão de seu aparecimento é exatamente o momento em que o sintoma se esvai" (Freud, 1893/1980: 47). O sintoma, nesse momento específico dos estudos de Freud, se apresentava no tratamento analítico como mensagem cifrada a ser interpretada pelo analista e decifrada pelo analisando.

Todavia, nessa data, as manifestações inconscientes do sintoma e do sonho se diferenciavam entre si. Embora ambos sejam produções do inconsciente, Freud (1900/1980) observava que havia uma fixidez do sintoma em contraposição ao efêmero do sonho, o que dificultava o trabalho analítico. Freud (1915/1980) reconheceu que a proposição tornar consciente o inconsciente não poderia se reduzir a uma simples decifração dos elementos censurados e excluídos da consciência. Isso porque a interpretação do material inconsciente por parte do analista, ampliando o campo do saber do sujeito, não garantia a produção de resultados efetivos.

Já então Freud (1915/1980) destacou que a insistência e a constância do sintoma revelavam a presença de outra dimensão para além do saber inconsciente que precisava ser investigada. Essa dimensão representava algo da ordem da pulsão.

O sintoma, já na primeira tópica, se caracterizava por ser uma formação de compromisso que tanto distorcia o desejo recalcado para que não fosse reconhecido como o satisfazia imaginariamente A partir da segunda tópica, a qualidade de uma satisfação é reafirmada. Assim, define Freud (1925-1926/1980: 112), em "Inibição, sintoma e angústia": "um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente; é uma consequência do processo de repressão". Essa nova elaboração destaca a dimensão do sintoma sob a vertente da pulsão. A força da dimensão pulsional se inscreve como impossibilidade adaptativa do sintoma.

Além do mais, a nova postulação da pulsão de morte representou também um divisor de águas entre os freudianos, provocando dissensões, como nos diz Ernest Jones (1979: 606): "essa nova teoria deparou-se com uma receptividade bastante desigual entre os analistas". Isso nos leva a considerar que a referência ao conceito freudiano de pulsão de morte nos parece ter sido de difícil e diversa apreensão para os psicanalistas da época, inclusive os analistas de crianças.

Se considerarmos as produções realizadas pelas alunas de Freud, Anna Freud e Melanie Klein, a partir de 1920, podemos notar uma preocupação com a terapêutica do sintoma em detrimento da importância que tem o conceito de pulsão para a psicanálise. Essa posição em relação ao sintoma na clínica nos leva a considerar duas possíveis interpretações acerca da nova postulação pulsional tanto por parte de Anna Freud quanto de Melanie Klein: uma, objetivando a eliminação do sintoma e a normalização do comportamento do sujeito ao social; a outra, propondo dar a esse ponto de resistência, ou seja, ao sintoma, uma solução possível, por meio de seus efeitos, como produção do inconsciente. O sintoma como solução é uma produção particular do sujeito, orientando-se por seu desejo (Calzavara, 2012).

A seguir investigaremos, em alguns textos de Anna Freud e Melanie Klein, como cada uma dessas duas pioneiras da prática psicanalítica com crianças articulou a referência ao sintoma a partir da postulação da pulsão de morte em sua prática clínica com crianças.

 

ANNA FREUD: O EU EM DETRIMENTO DA REFERÊNCIA À PULSÃO

Anna Freud, pedagoga de formação, exerceu essa profissão nos anos de 1914 a 1920 (Bruehl, 1992). O ofício de pedagoga e a ênfase na observação do comportamento das crianças tornaram-se precedentes importantes que nos parecem ter influenciado sua formação e atuação na prática clínica com crianças. Sua prática com crianças parece se encaminhar no sentido de uma ênfase aos aspectos conscientes dos comportamentos das crianças.

No campo da análise com crianças Anna Freud embrenhou-se definitivamente nos anos de 1926 e 1927, com o livro O tratamento psicanalítico de crianças (Freud, A., 1926-1927/1971), considerada sua obra principal. Todavia, uma vez tendo se deslocado da prática pedagógica para a analítica, Anna Freud continuou a privilegiar a observação direta do comportamento, agora no tratamento com crianças.

Em seus textos posteriores (Freud, A., 1946/1986; 1965/1980), acresce-se à importância da observação no tratamento com crianças o fato de privilegiar o conhecimento pedagógico e os aspectos do desenvolvimento. Dessa maneira, a ênfase no comportamento do sujeito a encaminha em direção a uma prática que vai privilegiar a adaptação do comportamento da criança ao social em detrimento das questões estruturais concernentes ao inconsciente.

No entanto, em referência à segunda tópica freudiana, Anna Freud depara-se com o problema da pulsão de morte. Esse conceito se insere em uma perspectiva da clínica psicanalítica que não nos deixa dúvidas da dimensão estrutural e seus efeitos no sujeito. Para Anna Freud, parece-nos que, a partir daí, houve um verdadeiro impasse em sua clínica: como introduzir a questão da pulsão de morte em uma perspectiva educativa?

Cabe-nos verificar como se deu, para Anna Freud em sua clínica, a entrada da segunda tópica freudiana com a nova postulação da pulsão. Dessa maneira, destacar qual perspectiva Anna Freud irá utilizar no que se refere ao sintoma: o sintoma como adaptação, utilizando o recurso da adaptação da criança ao social e, desse modo, desconsiderando a pulsão, ou o sintoma como solução para o sujeito, ou seja, como produção particular do inconsciente? (Calzavara, 2012).

 

O SINTOMA NA PERSPECTIVA DE ANNA FREUD

Na perspectiva clínica da criança em desenvolvimento, o sintoma se apresenta como resultado dos conflitos intrapsíquicos e de elementos externos ao desenvolvimento (Freud, A., 1965/1980). Quando o eu se vê em dificuldades pela invasão dos impulsos instintivos do id, utiliza o sintoma como defesa contra essas moções inconscientes. Esses conflitos são "subprodutos normais do desenvolvimento estrutural comuns a todos os indivíduos que suplantaram, em seu crescimento, o nível primitivo de indiferenciação" (Freud, A., 1965/1980: 191). O sintoma, então, é resultado de uma defesa quando o eu se vê confrontado por uma exigência pulsional particular (Freud, A., 1946/1986).

Do mesmo modo, o sintoma é tomado por Anna Freud (1946/1986) num contexto em que a determinação de aspectos do desenvolvimento da criança tem função coadjuvante. Qual é a idade adequada de determinado comportamento? Por esse motivo, no transcurso do tratamento analítico, Anna Freud (1965/1980) coloca em suspensão a condição de melhora do sintoma da criança devido a um impasse: saber se a melhora do sintoma se deu pelo tratamento realizado ou simplesmente porque o processo de maturação da criança, que se apresentava insuficiente no início do tratamento, se completou.

Por essa posição, todo o empreendimento realizado para o tratamento com crianças na prática de Anna Freud nos direciona a um viés adaptativo da criança ao social, sobretudo por meio da utilização de práticas que se preocupam com futuras dificuldades que poderiam colocar em desequilíbrio o eu infantil.

Nesse sentido, a biógrafa de Anna Freud, Elizabeth Young-Bruehl (1992), destaca em seu livro uma passagem de uma carta de Anna Freud a Lawrence Kubie em janeiro de 1955, na qual Anna Freud explicava a ela, sua contemporânea, como "vacilava" ao introduzir para seus alunos a integração da teoria estrutural com a hipótese dos dois instintos contrários formulados pelo pai dela:

Cresci, como você, com as hipóteses de trabalho da divisão do espírito em inconsciente, pré-consciente e consciente. Aquilo era para mim um terreno familiar e, como você, hesitei e senti dificuldade quando meu pai formulou a nova divisão de id, ego e superego. [...] - mesmo quando eu recorria a termos estruturais ao escrever e falar - no pensamento eu ainda continuava visualizando o assunto nos velhos termos tópicos (Bruehl, 1992: 145).

Anna Freud sublinha nessa passagem que, embora tenha adotado os termos estruturais como id, ego e superego, ainda fazia referência ao que lhe era mais familiar, à primeira tópica.

Do mesmo modo como a segunda formulação do aparelho psíquico apresentou dificuldades para Anna Freud, a postulação da pulsão de morte em 1920 também. É o que nos relata Bruehl (1992):

Clinicamente, ela falou de agressão, presumindo que o instinto de morte não é necessariamente a fonte da agressão ou sua causa. Sendo misteriosa a natureza da relação entre as duas coisas, preferiu ela falar de agressão independentemente, sem se referir ao instinto de morte (Bruehl, 1992: 145).

Entretanto, segundo Bruehl (1992), a obra inicial de Anna Freud foi teoricamente reservada ao utilizar a noção de agressão.

No percurso realizado por Anna Freud, podemos reconhecer que, desde o princípio da construção de sua técnica analítica, ela parece não ter se desviado do que podemos considerar como sua veia de formação pedagógica. Desde o início de sua formação, Anna Freud já se direcionava mais às questões voltadas para a adaptação da criança ao social do que às questões concernentes à produção do inconsciente. Mesmo participando dos conhecimentos psicanalíticos dos quais é considerada herdeira, Anna Freud não os adotou integralmente em sua prática com crianças, distanciando-se do que ela mesma reconheceu como um procedimento puramente psicanalítico (Calzavara, 2012).

O que podemos destacar na prática clínica de Anna Freud, sobretudo, é que a perspectiva centrada no desenvolvimento da criança não permite reconhecer em cada uma delas uma particularidade. A referência é uma teoria do desenvolvimento que preconiza determinados padrões de normalidade e anormalidade, posição que se distancia do fundamento da prática psicanalítica. Desse modo, a direção dada por Anna Freud por meio do interesse pedagógico do tratamento vai "se orientar em direção a um reforço do eu ao preço de um fechamento da verdade particular do desejo do sujeito" (AMP, 1996: 158)3.

Ao reportar-se à teoria para o entendimento dos comportamentos inadequados da criança que se apresentam em sua prática, Anna Freud não permite fazer existir a experiência do inconsciente na sessão. Do mesmo modo, a "questão do sujeito enquanto interrogação sobre seu ser é desqualificada em benefício da observação" (AMP, 1996: 158). No que concerne ao sintoma, essa clínica parece se amparar na crença de que a supressão dele, visto que não está em conformidade com o social, permitiria a resolução do conflito.

O sintoma, como produção do inconsciente e desse modo como resposta a ser dada pela criança, não se insere no contexto de uma prática na qual há preponderância do desenvolvimento, da adaptação e de técnicas que se preocupam em fortalecer o eu da criança. Nesse contexto, é a remoção do sintoma, como comportamento inadequado, que nos parece tomar a cena na prática de Anna Freud, para que se chegue à adaptação ao social.

Assim, a prática clínica com crianças a partir de Anna Freud implica certa reserva quanto à formulação da segunda tópica e da nova teoria pulsional. No que concerne a essa prática, isso tem como efeito a desconsideração da dimensão pulsional, e do inconsciente, numa prática preocupada com questões pedagógicas. Da mesma maneira, o sintoma, tomado como elemento que precisa ser suprimido, está na contramão do procedimento analítico que reconhece o sintoma como produção do inconsciente.

 

O SINTOMA NA PERSPECTIVA DE MELANIE KLEIN: ANGÚSTIA COMO DEFESA DO EU CONTRA A PULSÃO

Melanie Klein fez sua entrada no movimento psicanalítico sob uma perspectiva mais analítica no tratamento com crianças, sobretudo porque utiliza os conceitos fundamentais da psicanálise freudiana como fundamento de sua prática. Essa proposição define sua prática, principalmente quando se tem por objetivo demarcar sua divergência em relação aos pressupostos pedagógicos e adaptativos utilizados por Anna Freud.

Melanie Klein perfila um percurso teórico destacado por sua biógrafa Hanna Segal (1975), que revela dois momentos: um primeiro, datado de 1921 a 1932, o qual é dedicado à prática e elaboração da técnica com crianças, enquanto se atinha aos fundamentos psicanalíticos de Freud. O outro momento se iniciou em 1934 e culminou em 1957 com o livro Inveja e gratidão (Klein, 1957/1984), quando a autora se afastou da teoria freudiana e formulou o que ela mesma nomeou como sua prática no tratamento com crianças.

As investigações teóricas de Melanie Klein promoveram novas descobertas sobre o desenvolvimento emocional infantil referente à exploração das fases mais primitivas da vida mental, que se caracterizavam pela relação de objeto, pela noção de mundo interno da criança, pela fantasia inconsciente e por mecanismos mentais de defesa, tais como divisão e projeção (Klein, 1952/1986).

A noção de angústia se tornou a pedra de toque da teoria kleiniana e foi por meio dela, e dos mecanismos de defesa contra ela, que Melanie Klein (1952/1986) pôde verificar na prática clínica o vínculo direto entre a angústia e a teoria das pulsões de vida e de morte. Concebida na teoria de Melanie Klein (1923/1981) como uma primeira manifestação neurótica da criança, a angústia manifesta-se "preparando o caminho, por assim dizer, para os sintomas" (Klein, 1923/1981: 114). Isso porque o sintoma é uma resposta do psíquico à angústia proveniente do medo de aniquilamento pela pulsão de morte.

No entanto, na referência à pulsão de morte freudiana, ela é tomada por Melanie Klein (1952/1986) como a causa primária da angústia. Esta se apresenta não só como expressão da pulsão de morte interna e inerente ao sujeito, mas também resulta de fontes externas de frustração que estão presentes na vida do bebê desde o início da vida pós-natal.

Na biografia consagrada à obra de Melanie Klein, Phillis Grosshurth (1992) afirma que a nova teoria pulsional proposta por Freud foi aceita por Melanie Klein. Entretanto, segundo Grosshurth (1992), a compreensão da pulsão de morte pela autora não era exatamente tal como elaborada por Freud. As atitudes destrutivas observadas nas crianças eram, para ela, um correlato da pulsão de morte.

Ela sempre achou que estava seguindo uma orientação dada por Freud, mas, ao contrário de Freud, [...] ela não tinha uma compreensão verdadeira do instinto no sentido em que Freud falava. O que Klein via era que as crianças de que ela tratava estavam empenhadas em atividade destrutiva, e chamava a isso a ação do instinto de morte (Grosshurth, 1992: 118).

No livro Inveja e gratidão (Klein, 1957/1984), Melanie Klein destaca a divergência de seu pensamento em relação à pulsão freudiana, esclarecendo que, para ela, é o eu que se defende dessa pulsão. Para ela (1957/1984), o ego existe desde o início da vida pós-natal, embora de forma rudimentar, e desempenha uma série de funções importantes de defesa contra a pulsão de destruição. O ego se apresenta como ator principal nesse cenário em defesa de sua integração, colocando-se a serviço da pulsão de vida e buscando se defender da pulsão de morte.

A relação de objeto vivida pela criança com a mãe é correlata desse momento no qual o ego da criança se defende da pulsão de morte. Nessa primeira relação dual com a mãe, a criança vivencia a experiência de angústia, proveniente dos estímulos de fontes internas e externas. Isso porque, como nos diz Klein (1952/1986: 217), supomos "que há sempre uma interação, embora em várias proporções, dos impulsos libidinais e agressivos, correspondendo à fusão dos instintos de vida e de morte". Essa experiência pela qual passa o ego tem a função de possibilitar uma proteção contra a pulsão de morte, estando a serviço da pulsão de vida. Dessa forma, é na interação entre as pulsões de vida e de morte que a integração do ego se dá, sobretudo no predomínio da pulsão de vida nessa relação.

Na mesma medida, a relação de objeto é um ponto de ancoragem para a realização do tratamento. É por meio dela e do reconhecimento da pulsão agressiva inerente ao sujeito, bem como das fantasias e mecanismos projetivos e introjetivos nessa relação, que o sujeito irá buscar uma solução que se afaste do aniquilamento, alvo da pulsão de morte.

Por outro lado, a ênfase na relação de objeto na teoria kleiniana se dirige ao objetivo analítico, que será o de conduzir o sujeito a uma realização plena com o objeto, à completude imaginária do objeto. Em consequência, essa prática "acentua a teoria do objeto em detrimento da teoria das pulsões e, mais que ao desenvolvimento pulsional, ela reserva uma importância fundamental à resolução da ambivalência em relação à mãe" (AMP, 1996: 127).

Assim, os primeiros conflitos, produtos da oposição entre as pulsões de vida e de morte, têm como objetivo analítico conduzir o sujeito a uma realização plena com o objeto. Desse modo, "a linguagem do inconsciente é deduzida dessa relação de objeto concebida como relação de completude imaginária" (AMP, 1996: 122). Como consequência, mesmo que a interpretação vise à pulsão, na teoria kleiniana tem-se como linguagem do inconsciente a reparação da relação de objeto objetivando sua completude. Essa solução terapêutica como resolução do tratamento se distancia da prática psicanalítica que se ancora na perspectiva da falta do objeto e não em sua completude.

Melanie Klein, ao interrogar no tratamento o que falta ao objeto, o faz na tentativa de encontrar um objeto que complemente essa falta. Desse modo, suas interpretações visam a um recobrimento do imaginário e "não lhe permitem saber que a dialética do sujeito e do objeto não é a complementação" (AMP: 136). Mais do que isso, a leitura da teoria de Klein referente à completude da relação de objeto não permite a ela fazer o questionamento desse objeto como falta, próprio da perspectiva da prática psicanalítica.

Embora a dimensão pulsional esteja inserida em todo o percurso teórico de Melanie Klein, a perspectiva do sintoma como solução não nos parece tomar o primeiro plano em sua perspectiva.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resposta à questão inicial deste trabalho, podemos dizer que a forma de entendimento do sintoma na prática clínica com crianças é o modo orientador dessa clínica.

Dessa maneira, a análise das contribuições teóricas e clínicas de Anna Freud nos levou a considerar como objetivo para sua prática clínica, a adaptação da criança ao social mediante a eliminação dos sintomas. A ênfase nos elementos da consciência, tão recorrentemente utilizada por Anna Freud em detrimento de uma exploração do inconsciente, leva sua prática ao compromisso com um viés pedagógico.

Por outro lado, a prática clínica de Melanie Klein não desconhece a presença da dimensão pulsional inserida no campo da fantasia e na relação de objeto. No entanto, essa posição não nos permite reconhecer a perspectiva do sintoma como solução, como produção particular do sujeito no tratamento. Isso porque sua teoria privilegia a perspectiva de uma relação de objeto em detrimento da teoria das pulsões. Desse modo, na prática de Melanie Klein, o inconsciente e seus efeitos podem ser deduzidos dessa relação de objeto (AMP, 1996).

Enfim, na perspectiva de um desvio da clínica com crianças em relação ao referencial da pulsão, pode-se dizer que se encontra em Anna Freud uma desconsideração da pulsão em sua elaboração teórica e em sua prática. Em Melanie Klein também se encontra essa desconsideração mas em menor grau. Desconsiderar a dimensão pulsional no sintoma é desconhecer seus efeitos que se traduzem em resposta singular do sujeito. Dessa maneira, querer eliminar o sintoma, eliminar o que está fora da norma, é não considerar o sintoma como solução para o sujeito, uma solução particular que contraria terminantemente qualquer proposta adaptativa.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 O presente artigo constitui desdobramento parcial da tese de doutorado de Maria Gláucia Pires Calzavara, intitulada A Clínica Psicanalítica com Crianças: da adaptação à solução em referência ao sintoma, apresentada no ano de 2012 ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

2 Como psicanalista de crianças, Hermine Von Hug-Hellmuth é a autora dos primeiros escritos sobre a clínica com crianças, mas quem são realmente reconhecidas como primeiras psicanalistas de crianças são Anna Freud e Melanie Klein.

3 Livro: Os poderes da palavra, resultado de uma compilação de artigos da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) do ano de 1996, sem especificação de autores nos artigos.

 

 

Recebido em 21 de fevereiro de 2013
Aceito para publicação em 14 de outubro de 2013