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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2013

 

ARTIGOS

 

Colapso de Eros nas adicções sexuais

 

The breakdown of Eros in the sexual addictions

 

 

Ney Klier Padilha NettoI; Marta Rezende CardosoII

IPsicólogo; Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ). E -mail: neynetto@yahoo.com
IIPsicóloga; Doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental pela Universidade de Paris VII - Denis Diderot; Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ); Pesquisadora do CNPq. E-mail: rezendecardoso@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar uma modalidade particular de adicção, a compulsão sexual, e definir essa patologia examinando os fatores implicados em sua gênese. Nas adicções sexuais, o recurso à passagem ao ato monopoliza o campo de respostas possíveis para a descarga da força pulsional. Sucede-se, então, a repetição, a automação de um circuito que reduz as possibilidades de encaminhamento criativo para a sexualidade. O gozo sexual, buscado numerosas vezes por dia, de forma imperativa e irremediável, diz respeito a um processo situado "além do princípio de prazer". Buscamos analisar o que estaria na base desse imperativo destrutivo e mortífero de obtenção de prazer sexual.

Palavras-chave: adicção sexual; compulsão; passagem ao ato; corpo; autoerotismo.


ABSTRACT

The aim of this paper is to analyze a particular mode of addiction, the sexual compulsion, and define this pathology by examining the factors involved in its genesis. In sexual addictions, the recourse to acting out monopolizes the field of possible answers for the discharge of the drive force. It follows then the repetition, the automation of a circuit that reduces the possibilities of a creative path towards sexuality. Sexual enjoyment searched many times a day in such imperative and irremediable way is related to a process situated "beyond the pleasure principle". We try to analyze what could be the basis of such destructive and deadly imperative to obtain sexual pleasure.

Keywords: sexual addiction; compulsion; acting out; body; autoerotism.


 

 

Se no final do século XIX, tempo de inauguração da psicanálise, a sexualidade era por excelência objeto da defesa psíquica e do recalque e, portanto, matéria-prima do desejo inconsciente, neste início do século XXI ela permanece sendo fator imprescindível na determinação da atividade humana. Entretanto, o seu manejo intersubjetivo já não está tão atrelado às defesas ligadas ao recalque de suas representações incompatíveis com o ego. Em quadros psicopatológicos que se evidenciam cada vez mais na clínica cotidiana, parece haver dificuldade de transcrição dessa sexualidade no âmbito psíquico, ou seja, parece haver dificuldade de representar essa sexualidade, o que evidencia a presença da dimensão de trauma na sua base.

A dificuldade de representar é marca fundamental das adicções, categoria de destaque no panorama dos estados-limites. No presente trabalho, discutiremos a problemática de uma modalidade particular de adicção: a compulsão sexual. Procuraremos definir essa patologia e examinar os fatores implicados em sua gênese.

O sujeito é impelido a agir, a buscar a satisfação sexual, mesmo que essa busca o prejudique em suas tarefas cotidianas, em suas relações familiares e responsabilidades profissionais. Em casos extremos, a própria vida do sujeito é colocada em risco, quando ele não consegue mais evitar relações sexuais com parceiros anônimos, praticadas sem nenhuma cautela e proteção contra doenças sexualmente transmissíveis. O imperativo de gozo sexual ultrapassa os critérios essenciais de estabelecimento do princípio de prazer.

Todavia, não se pode negar que nas sexualidades adictivas a experiência de prazer está presente, mesmo quando o sujeito não consegue sair de uma espiral destrutiva de passagens ao ato. Porém o gozo sexual buscado numerosas vezes por dia, de forma imperativa e irremediável, serve como importante protótipo de uma busca de prazer no registro do "além do princípio de prazer". Como entender então esse imperativo destrutivo, mortífero e avassalador de obtenção do prazer?

Segundo Anne Morellini (2008), a distinção entre as adicções sexuais e outras práticas sexuais excessivas que não chegam a constituir uma patologia se apoia sobre critérios de dependência similares aos de outras adicções, particularmente sobre as consequências psicológicas, físicas e sociais induzidas por essas condutas. Numerosas relações sexuais por dia, jogos sadomasoquistas, trocas sucessivas de parceiros em pouco espaço de tempo e fetichismo exacerbado são atividades que podem ser exercidas pelo sujeito sem que ele se sinta escravizado ou adoecido, não constituindo necessariamente um quadro patológico. A patologia se apresenta quando esses comportamentos estão associados a impulsos incontroláveis, ocupando quase a totalidade dos pensamentos do indivíduo, passando a determinar o seu modo de vida social, profissional ou familiar.

Estellon (2002, 2005, 2010) dedica bastante atenção ao tema das adicções sexuais, relatando casos clínicos, descrevendo suas características e buscando fundamento metapsicológico para elas. O autor acompanhou casos nos quais as práticas sexuais podem ser comparadas, em seu funcionamento, a uma busca incessante de drogas. Trata-se de um modo particular de escolha de objeto - parcial, frisa o autor - no qual intensos sentimentos de solidão, tristeza e até mesmo desespero são acompanhados de uma rara vontade de erradicar e esgotar o sexual, revelando precariedade de recursos psíquicos.

As atuações sexuais compulsivas não se inscrevem, não se integram na memória. Por exemplo, o sujeito que tem quatro parceiros por dia é muitas vezes incapaz de lembrar os primeiros nomes e até mesmo os rostos de seus parceiros. Restam apenas impressões, resquícios de sensações, quais restos diurnos que participam da composição do sonho. Todavia, esses resquícios não são acompanhados de erogeneização fantasística (Estellon, 2002, 2003).

O confinamento da libido objetal em libido do ego, ao reduzir progressivamente as forças eróticas da primeira, é uma armadilha que recai sobre o próprio ego, que vai ficando cada vez mais privado de suas capacidades fantasísticas e de sonho, atacado pelo excesso da força pulsional disruptiva, traumática. Sucede-se então a repetição, a automação de um circuito economizador de fantasias que reduz as possibilidades de encaminhamento criativo para a sexualidade, prejudicando o equilíbrio necessário entre produções fantasísticas e passagens ao ato.

Para Estellon (2002), é como se o sex-addict estivesse possuído por uma força misteriosa que o empurra para o ato e para a conquista. O sujeito se precipita em um "agir puro", aquém inclusive do processo primário, que pressupõe o plano fantasístico. O corpo parece estranhamente possuído. O excesso da pulsão sexual auto-hipnotiza o sujeito. Dessa forma, o recurso às passagens ao ato toma a frente da cena, monopolizando o campo de respostas possíveis para a descarga da força pulsional. O sujeito é impelido a agir, a buscar parceiros, a se entregar a diferentes tipos de práticas sexuais, muitas vezes com pouca ou nenhuma cautela. O agir é imperativo.

Nesse contexto, Estellon (2005) recorre ao exemplo de uma prática usual em casos de adicções sexuais, o barebacking, sexualidade voluntariamente não protegida entre duas ou mais pessoas que consentem, conscientes ou não dos riscos infecciosos ligados a essa prática. O autor menciona que desde a "Gênese", texto bíblico, o sexual está intrincado à consciência de morte, e com a prática do barebacking as suas dimensões de desafio, transgressão e desligamento evidenciam como nunca essa aproximação entre sexo e morte, numa inesgotável busca de parceiros "sem rosto".

A busca de um "objeto-sexual-prótese" (Estellon, 2002: 184) se faz imperativa, imprescindível para que o sujeito atinja níveis basais de equilíbrio e tranquilidade psíquica. O parceiro sexual, nas práticas adictivas, assume participação numa função reparadora não através de seu reconhecimento como outro, mas de sua disponibilidade para auxiliar o sujeito em sua busca de prazer e distanciamento das funções intelectuais e de pensamento.

 

A SEXUALIDADE ADICTA E SUA ECONOMIA

Joyce McDougall, em As múltiplas faces de Eros (1995/1997), se propõe examinar a economia psíquica da sexualidade quando esta cumpre a função de uma droga. Ao retomar a teoria freudiana, a autora destaca as noções de apoio, autoerotismo e pulsão parcial, imprescindíveis para o entendimento do processo de emergência da pulsão sexual.

O processo de apoio da sexualidade em uma função vital, no qual a pulsão sexual emerge ao destacar-se do objeto externo original - encontrando satisfação autoerótica antes de ser novamente empregada no objeto da realidade externa (Freud, 1905/1969) - serve como ponto fundamental para a discussão sobre o que se torna problemático não apenas nas adicções sexuais, mas nas adicções em geral. Em relação às primeiras, a autora escreve:

À noção de neossexualidades eu acrescentaria a de "neonecessidades", nas quais o objeto, o objeto parcial ou a prática sexual são buscados incansavelmente, à maneira de uma droga. Esses indivíduos vão recorrer apenas a objetos inanimados, eroticamente investidos (chicotes, algemas, sapatos, etc.), ou a uma garantia adictiva de parceiros que correm o risco de ser tratados como objetos inanimados ou intercambiáveis (McDougall, 1995/1997: 198).

Ao inserir as adicções sexuais no panorama das "neonecessidades", McDougall (1995/1997) indica o empobrecimento do plano do desejo na dinâmica pulsional do adicto. A sexualidade perde grande parte de seu potencial fantasístico, tornando-se imperativa - via única e imprescindível para que o sujeito atinja níveis basais de estabilidade e segurança intrapsíquica.

Vale ressaltar que não se trata de um retorno ao plano da necessidade stricto sensu, já que estamos diante de um sujeito habitado pela força pulsional. Por esse motivo, a autora utiliza o termo "neonecessidade", que nos remete a uma exigência que é da ordem do pulsional e, portanto, do psíquico, mas simula algo mais primário. E é importante ser considerado que no âmbito das "neonecessidades" - âmbito do pulsional - a demanda de satisfação é ininterrupta, não há esgotamento pontual como no caso das necessidades estritas.

Em termos gerais, "a solução adictiva é uma tentativa de cura de si mesmo diante de estados psíquicos ameaçadores" (McDougall, 1995/1997: 202). O recurso à substância ou ao ato adictivo, quando criado ou descoberto, torna-se frequente com a finalidade de atenuar ou anestesiar vivências emocionais para as quais o sujeito não encontra outras vias ou modos de manejo. O recurso a determinado objeto ou ato adictivo tende a corresponder a períodos do desenvolvimento nos quais fracassou a integração dos objetos internos que cuidam e apaziguam as tensões pulsionais. É possível dizer que com a ausência de uma função de contenção bem interiorizada, o sujeito encontra-se sem anteparo frente às intensidades pulsionais.

Nessas circunstâncias, as práticas sexuais compulsivas vêm a representar uma tentativa de impedir que a autoimagem narcísica, precariamente construída nos estádios iniciais de desencadeamento do psicossexual, se desintegre. Basicamente, o ato sexual é utilizado não somente para reparar a imagem narcísica fragilizada e dissipar sobrecargas afetivas, mas também serve como recurso para contrainvestir forças destrutivas que ameaçam o ego com o desmoronamento.

"Abordar o frágil domínio da sexualidade e de suas diversas práticas no registro das precariedades não é anódino: mal assegurada, efêmera, sujeita à revogação, dependente do outro, a sexualidade é, por essência, precária" - escreve Estellon (2005: 63, tradução nossa). Todavia, o autor questiona em que aspectos as sexualidades adictivas seriam mais precárias que outras. A urgência da demanda, a dependência do efeito de gozo sexual, a pobreza da criatividade, o sentimento de não existir fora do terreno adictivo e o aumento de doses para atingir a tranquilização são elementos descritos como cotidianos nos toxicômanos da sexualidade.

O que essa busca irrefreável e patológica por determinadas práticas sexuais revela sobre a constituição e função do corpo erógeno, corpo devassado pelo pulsional e pela polimorfia dos prazeres? Qual seria o papel do autoerotismo na ligação da força pulsional e qual sua implicação nos estados destrutivos da sexualidade? Essas questões nos orientam em direção a um exame mais detalhado da relação entre corpo sensorial e autoerotismo nas adicções sexuais.

 

CORPO SENSORIAL E AUTOEROTISMO NAS ADICÇÕES SEXUAIS

A sexualidade adictiva pode ser considerada como expressão de uma falha exacerbada do autoerotismo. Pode-se dizer que há um desequilíbrio do nó autoconservação/autoerotismo, desembocando numa repetição patológica, conforme pontua Estellon (2002). Em muitos casos, o sujeito precisa, por exemplo, desfrutar do gozo sexual ao menos cinco vezes por dia para poder dormir tranquilo à noite.

O conceito freudiano de autoerotismo se refere, em termos gerais, a uma modalidade de satisfação sexual que prescinde da presença real do objeto. Trata-se de "um comportamento sexual infantil precoce pelo qual uma pulsão parcial, ligada [...] à excitação de uma zona erógena, encontra a sua satisfação no local, isto é, [...] sem recorrer a um objeto exterior; [...] sem referência a uma imagem unificada do corpo" (Laplanche & Pontalis, 1967/1982: 47). Autores pós-freudianos, especialmente vinculados à psicanálise francesa, ressaltaram a importância de considerar no autoerotismo a presença do objeto ou de fragmentos deste no plano fantasístico.

Nessa direção, torna-se fundamental recorrer à noção de realização alucinatória do desejo proposta por Freud (1900/1969), na qual determinada carga excitatória encontra satisfação através da reprodução alucinatória de percepções transformadas em imagens mnésicas de experiências precoces de satisfação. Em outras palavras, o desejo infantil está ligado a inscrições psíquicas, a traços mnésicos que são reinvestidos e reativados na ausência do objeto que propiciou previamente a vivência de satisfação original: "o reaparecimento da percepção é a realização do desejo" (Freud, 1900/1969: 595). Não se trata da satisfação de uma necessidade biológica, mas de algo que perpassa o biológico e se inscreve no âmbito psíquico, estando ligado a traços mnésicos, a certo trabalho psíquico. As percepções transformadas em signos de satisfação "têm sempre um caráter sexual, uma vez que o desejo sempre tem como móbil a sexualidade" (Roudinesco & Plon, 1998/2001: 147).

O prazer de associar, a capacidade de devaneio, o desejo de investir nos objetos e outros fatores que permitem à criança poder diferenciar o dentro e o fora, presença e ausência são derivados da satisfação alucinatória do desejo. Portanto, não é difícil supor que esse trabalho inicial e elementar é fundamental para a boa instauração do autoerotismo na vida psíquica do sujeito.

As adicções sexuais são marcadas, essencialmente, pela precariedade de produções fantasísticas derivadas da realização alucinatória do desejo, capazes de produzir presença na ausência. Essas produções são resultantes de uma capacidade depressiva, faltante nesses quadros, comprometendo as vias de consolação alucinatória. Como resultado, o sex-addict encontra-se sem anteparo frente às intensidades pulsionais - afetivas e sexuais -, já que tanto a capacidade depressiva quanto a consolação alucinatória apresentam como função proteger o sujeito das elevações excitatórias (Estellon, 2002).

Nessa balança onde há pouca fantasia e muita excitação, a sexualidade se apresenta de forma bruta, crua e se coloca de forma indomável, exigindo do sujeito cada vez mais satisfação e descarga. A satisfação sexual se torna o veículo possível para a descarga pulsional, vetando e empobrecendo outros meios e caminhos de satisfação. A sexualidade se impõe como algo que o sujeito não consegue controlar.

As produções fantasísticas estão curto-circuitadas pela automatização das passagens ao ato. Há regressão do pensamento ao ato. Consequentemente, os processos de pensamento estão empobrecidos em benefício da sensorialidade periférica. Não à-toa, Estellon (2002: 188, tradução nossa) define o sex-addict como "adicto do corpo sensorial". A excitação sexual torna-se tóxica, transbordante, delineando o que o autor chama de "circuito curto", primado do impulso. É como se houvesse a transformação de um afeto indefinível e transbordante em excitação sexual, evitando compulsivamente o acúmulo de tensão.

Nesse primado do impulso, observa-se significativa regressão sensorial e erotização fisiológica, as quais promovem busca incessante pela descarga sexual. O sujeito se lança sem qualquer precaução aos riscos e sacrifícios da sexualidade, naufragando nos mares de uma sensualidade bruta que não se transpõe em trabalho psíquico, em trabalho de Eros - trabalho realizado inicialmente pelo autoerotismo e, mais especificamente, pela realização alucinatória do desejo.

À sexualidade adictiva tradicional, com múltiplos parceiros por dia, mas numa relação de sucessão temporal, adicionam-se muitas vezes práticas relacionadas a orgias, com múltiplos parceiros ao mesmo tempo. Essas práticas viriam responder às angústias de fragmentação, permitindo ao sujeito perder-se, ao mesclar-se a outros corpos, e paradoxalmente experimentar mais do que habitualmente os limites e contornos do seu corpo. "Mãos acariciam em todos os lugares" (Estellon, 2002: 191, tradução nossa). Por intermédio do prazer tátil, o corpo pode ser sentido, experimentado de forma mais apurada, fazendo-se assim existir de forma mais integrada. Nesse sentido, as práticas sexuais adictivas, em suas diferentes manifestações, podem fornecer, em parte, uma função de contorno ou envoltório corporal. Nessa busca de uma segunda pele,

o sex-addict, através da multiplicação de seus encontros sexuais mais ou menos anônimos, encontra antes de tudo os corpos, entra em contato com a pele de outros, a qual desempenha [...] uma função de contenção inegável, assegurando-o da autopercepção de seu próprio contorno corporal (Estellon, 2002: 193, tradução nossa).

Tratar-se-ia de uma espécie de retorno ao autoerotismo, reduzido nessas práticas à sua expressão mais autossensual. Pode-se dizer que se trata de um autoerotismo no qual "Eros seria atrofiado em favor do auto" (Estellon, 2002: 194, tradução nossa).

Pierre Fédida (1990/1991), ao evocar Eugen Bleuler, já havia formulado a concepção de um autoerotismo sem Eros, através de rigoroso estudo sobre o autismo, no qual vislumbrou a potencialidade de distinguir esta entidade clínica de outros estados, por ele denominados "autísticos", que não se confundem com a primeira. "Tais fenômenos apresentam como principal particularidade o fato de se encontrarem isolados de uma fala que possa descrevê-los, produzindo apenas imagens sensoriais experimentadas pelo analista de uma forma diversa daquela que poderia ser chamada 'metáforas'" (Fédida, 1990/1991: 152).

Fédida (1990/1991) busca então, através da percepção e interpretação de processos referentes ao autismo, criar um modelo que sirva como paradigma para se pensar outros estados que não se reduzem - assim como não se confundem - com essa entidade clínica. Determinadas síndromes remetem imediatamente a essa intuição, particularmente certas toxicomanias, anorexias, bulimias, farmacodependências, distúrbios psicossomáticos, entre outros quadros que a psicanálise francesa, especialmente, inclui na categoria de estados-limites. Estamos aí diante dos limites da metaforização, dos processos de representação e simbolização da força pulsional, entre outros limites.

Nas adicções sexuais estaria em jogo basicamente a busca incessante de uma integração psíquica do corpo, que ficou comprometida pela precária interiorização de experiências satisfatórias e apaziguadoras no contato com o objeto primário, a mãe. "Na sexualidade adictiva, os parceiros - objetos parciais - parecem ser tratados sob um modo quase autístico: utilizados como partes do corpo e as partes do mundo exterior experimentadas como pertencentes ao próprio corpo" (Estellon, 2002: 192, tradução nossa).

O fato de a prática sexual envolver um parceiro não a descaracteriza como algo próximo dos fenômenos autísticos. E esses fenômenos, na descrição de Fédida (1990/1991), se articulam justamente com uma vertente rudimentar - sem fantasia - do autoerotismo, na qual sensações corporais são buscadas e exploradas com pouca ou nenhuma equivalência simbólica.

[...] o autismo seria subtração de eros, mas, correlativamente, excesso de autos funcionando, de uma certa maneira, privado do movimento de eros. Como se fosse preciso compreender que o autismo é um tautismo, já que, como o eros está ausente (ou derivado), autos é incapaz de encontrar forma através das formas que só poderão ser engendradas graças à circulação de eros (Fédida, 1990/1991: 164).

Essa ausência de formas se articula com a precariedade do autoerotismo, justamente porque o último se refere a "formas vivas de fantasia capazes de se autogerar" (Fédida, 1990/1991: 158). O autoerotismo resulta da perda do objeto real, perda que vai incitar a sexualidade no plano da fantasia, como capacidade de criar ou recriar fantasisticamente o objeto perdido - e que vai, em última instância, servir como "suporte temporal das formas" (Fédida, 1990/1991: 167). A autossensualidade, nesse sentido, vem suplantar um autoerotismo que não se desenvolveu propriamente.

Quando o autoerotismo não supre eficazmente a ausência das figuras de apego, pode ocorrer por parte da criança significativo investimento perceptivo-motor do ambiente ou apelo excessivo a condutas de autoestimulação (Chabert, Ciavaldini, Jeammet & Schenckery, 2006). Em ambos os casos, há déficit do trabalho representativo, e pode-se observar claramente forte apelo ao corpo e ao ato. Não se trata daquilo que a autora denomina

autoerotismo positivo, libidinal, ligante, portador de experiências de prazer associadas ao objeto, que incita o devaneio, a busca de satisfação alucinatória do prazer e o trabalho de representação; mas de seu oposto, o autoerotismo negativo, destruidor, com uma função anti-introjeção e antipensamento (Chabert et al., 2006: 31, tradução nossa).

Nessa perspectiva, o autoerotismo negativo se refere à busca de sensações essencialmente somáticas em detrimento do estabelecimento de uma relação de investimento libidinal com o objeto, seja no plano da fantasia, seja no plano das relações que se estabelecem na realidade externa. O recurso excessivo ao campo sensorial, à intensidade das sensações, serve como maneira de evitar, na subjetividade, a posição depressiva, imprescindível para o desencadeamento da atividade psíquica de realização alucinatória do desejo, precursora do trabalho de simbolização. O mundo interno, dessa forma, está entregue à constante ameaça de desmoronamento.

O autoerotismo é reduzido à sua expressão mais autossensual, mais próxima do que Chabert et al. (2006) denominaram autoerotismo negativo. Assim, a resposta sexual compulsiva ao traumático, ao transbordamento pulsional interno, se torna inerente a qualquer afeto de angústia, não abrindo espaço para os devaneios autoeróticos. A privação de sonhos, de devaneios, resulta num quadro em que o sujeito adoece cada vez mais e Eros não pode mais circular, cedendo espaço a seu antagonista, Tânatos.

 

DESOBJETALIZAÇÃO E PRAZER NO REGISTRO "ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER"

Em sua argumentação sobre a intersubjetividade da pulsão, Roussillon (2004a) defende a pertinência de uma diferenciação no seio da sexualidade infantil entre uma sexualidade arcaica (precoce ou primeira) e uma sexualidade propriamente infantil, no sentido tradicional do termo. O sexual infantil é organizado pela dupla questão da diferença dos sexos e das gerações, enquanto o sexual arcaico é comandado pela questão da diferenciação eu/não eu.

Ao se deter nas características do sexual arcaico, o autor defende diferentes formas de prazer, que podem ser conjugadas e integradas apenas se o encontro com o objeto suprir minimamente determinadas condições relacionadas à qualidade do vínculo objetal. O prazer ligado às zonas erógenas, estimulado primeiramente pelas funções de autoconservação e depois tornado independente e autossensual, é apenas potencialmente subjacente ao autoerotismo. Ou seja, a estimulação das zonas erógenas e o prazer sensual decorrente dessa estimulação não necessariamente se transpõem em trabalho de Eros.

O que permite a passagem desse prazer autossensual, predominantemente sensorial, para o prazer autoerótico, que garante imersão inicial no plano fantasístico, é a possibilidade de o infante experimentar o prazer de encontro com o outro, com o objeto primário. Este último diz respeito ao jogo em que acordos e ajustes recíprocos entre adulto e criança encontram via satisfatória, sendo a condição sine qua non para o desencadeamento satisfatório do autoerotismo, ou seja, para a possibilidade de representação psíquica dos prazeres erógenos.

A atividade representativa, a troca simbólica do objeto real pelo objeto na fantasia, vem suprir a distância que a criança sofre das condições primárias de satisfação, à medida que gradualmente precisa se afastar da relação corpo a corpo com o adulto. Se o encontro com o outro não abrange minimamente uma dimensão prazerosa, prazeres primitivos como o da autoconservação e o das zonas erógenas permanecem com escassas possibilidades de integração psíquica. Como consequência dessa não integração, o princípio prazer-desprazer que rege o psiquismo entra em curto-circuito, ameaçando a própria sobrevivência do indivíduo (Roussillon, 2004b). Contudo, vale questionar qual seria o estatuto do prazer que não se integra psiquicamente, que não se conforma ao funcionamento do princípio de prazer.

Neste horizonte, Roussillon (2004b: 437) traz significativas contribuições ao propor diferenciação entre prazer e satisfação, entre o "prazer-descarga" e a satisfação subjetiva que resulta do prazer de encontro ou laço com o objeto. O prazer ligado à descarga pulsional não produz necessariamente o sentimento de satisfação, sentimento que depende do compartilhamento de afeto, de partilha do prazer.

De acordo com o autor, as formas alienantes de dependência estão relacionadas às formas de prazer sem satisfação, às formas de prazer sem compartilhamento. Nas sexualidades adictivas, parece haver justamente certa recusa ou impossibilidade de compartilhamento do prazer, de trocas intersubjetivas com o parceiro sexual, que é mero auxiliar numa prática que visa anestesiar e apaziguar afetos catastróficos de solidão, desamparo e abandono. O sujeito fica preso a um circuito pulsional mortífero, no qual o excessivo recurso ao "prazer-descarga" não se transpõe em trabalho de ligação psíquica.

Ao propor os conceitos de função objetalizante e desobjetalizante, André Green (1986/1988) oferece importantes ferramentas para se pensar a articulação entre pulsão e objeto e as consequências derivadas dessa relação em diferentes situações clínicas. O autor denomina função objetalizante a expressão psíquica das pulsões de vida, que procura garantir não apenas a possibilidade de investimento nos objetos internos e externos, mas também a própria criação de objetos na ausência do objeto stricto sensu. A possibilidade de investir, de criar vias de ligação para a força pulsional, é o que melhor caracteriza a função objetalizante.

A objetalização seria uma função sexual, aquilo que permite acesso à ligação e aos objetos. "A meta objetalizante das pulsões de vida tem como consequência principal realizar, mediante a função sexual, a simbolização" (Green, 1986/1988: 68). Assim, o papel de Eros não se restringe apenas ao de criar uma relação com o objeto (interno e externo), pois também se estende ao de transformar estruturas em objeto, mesmo quando o objeto não está diretamente em questão.

Em contraposição à função objetalizante, haveria a função desobjetalizante, expressão da pulsão de morte na vida psíquica. A desobjetalização, por meio do desligamento, ataca não somente os vínculos objetais estabelecidos por Eros, mas também tudo o que poderia fazer as vezes de objeto, como o próprio ego, e o próprio fato do investimento (Scarfone, 2005). Em sua expressão mais radical, a função desobjetalizante, após desinvestir os demais objetos e desinvestir o ego, destrói a própria possibilidade de investimento.

Se nas adicções sexuais o parceiro sexual é totalmente relegado ao anonimato, inexistente em sua singularidade e desinvestido como objeto-alteritário, não é difícil supor que estamos diante de evidente manifestação da função desobjetalizante. O fato de o sex-addict buscar inúmeros parceiros sexuais em pouca quantidade de tempo não está referido aos esforços de ligação das pulsões de vida. Essa busca está no sentido contrário ao estabelecimento de vínculos e compartilhamento de prazer. O prazer buscado não resulta em satisfação subjetiva, fica restrito ao domínio de um autoerotismo sem trabalho de Eros, sem objetalização.

Não há investimento significativo no outro, nem em aspectos da fantasia que enriquecem a vida sexual - o que não descaracteriza a compulsão sexual como uma tentativa de dominar algo da ordem do pulsional mortífero, sem representação. O problema é que essa tentativa de dominação não encontra efetivação, não se sofistica a ponto de viabilizar ao sujeito acesso ao campo de elaboração e por esse motivo torna-se patológica.

A predominância da função desobjetalizante possui estreita relação com a qualidade do autoerotismo na vida infantil, já que o último permite o investimento e a criação do objeto na falta de sua presença real, concreta. Não se trata de uma atividade na qual o infante está imerso em isolamento profundo do objeto, como nos fenômenos autísticos - que ilustram bem a radicalidade da função desobjetalizante. A satisfação autoerótica é subordinada à qualidade do prazer experimentado na relação com o outro e suas expressões carregam em si os traços desse compartilhamento de prazer. Em última instância, pode-se dizer que o autoerotismo é o vetor inicial, a via primária que permite o desencadeamento da função objetalizante na vida intrapsíquica.

Os afetos catastróficos que ameaçam a integridade psíquica do sujeito adicto podem estar referidos justamente a uma falha da função de espelho que exerce o objeto primário, a essa impossibilidade de se experimentar o prazer no encontro com o outro. Como consequência desse desencontro de prazeres, o autoerotismo permanece rudimentar, com poucas vias representativas sendo abertas. No caso das adicções sexuais, esse fato assume proporção imensa. Apesar do excesso de práticas sexuais e de trocas íntimas com diversos corpos "sem rosto", e apesar da imersão do sex-addict no plano do gozo sexual - literal e incessante -, o encontro com o outro não resulta em prazer.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 02 de agosto de 2013
Aceito para publicação em 01 de setembro de 2013