SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número2Para uma clínica psicanalítica do cuidadoPoesia psicanalítica: as fronteiras entre psicanálise, poesia e ciência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro dez. 2013

 

RESENHAS

 

Ferenczi: a análise como prática da amizade

 

Ferenczi: analysis as a practice of friendship

 

 

Eduardo Rozenthal

Psicanalista; Membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID); Professor do Centro de Ensino, Pesquisa e Clínica em Psicanálise (CEPCOP) do Instituto de Psicologia e Psicanálise da Universidade Santa Úrsula (USU); Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ. E-mail: rozen@infolink.com.br

 

 

RESENHA DE:

Oliveira, Luiz Ricardo Prado de Oliveira (2012). O sentido da amizade em Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Uapê, 232 p.

O livro de Luiz Ricardo Prado de Oliveira, certamente, causará polêmica. Alguns o acusarão de ter se afastado dos ensinamentos de Freud e se recusarão a reconhecer nos enunciados apresentados a mera pertinência ao que nomeiam de "a psicanálise". Outros, no entanto, celebrarão os argumentos lá contidos como criação de brechas, por onde os analistas poderiam buscar oxigênio novo para a sua prática. Tal "crônica de uma polêmica anunciada" não seria, em absoluto, sinal de insuficiência do texto. Muito ao contrário, a esperada discórdia de opiniões é indicadora do padrão de qualidade do livro que o leitor irá desfrutar.

Deveras, não seria a psicanálise feita do arrojo de alguns comentadores do texto freudiano que, em sintonia fina com a renovação das linhas de força da sociedade, são capazes de (re)descrever a subjetividade e a subjetivação, por meio de outras proposições? As respectivas (re)descrições não constituiriam o núcleo da tão citada "transmissão da psicanálise", mas que, no sentido forte, equivale a uma outra compreensão das teses freudianas, viabilizada, ou até mesmo exigida, pelas perspectivas do tempo presente? Mantendo viva a inspiração de Freud, não seriam esees sensíveis "comentadores", por conseguinte, verdadeiros criadores do pensamento psicanalítico? Este livro e seu autor pertencem a esse grupo.

O campo problemático escolhido por Luiz Ricardo para encaminhar suas teses é o da atualidade. O autor chama a nossa atenção para o quadro socioeconômico de hoje, marcado por um individualismo exacerbado e um utilitarismo elevado à enésima potência. Em tal contexto, a competição dominante e a indiferença ao outro acabam por impor severas restrições aos mandamentos da análise tradicional. De fato, a exigência de que os analisandos possuam um razoável grau de interiorização e de intimidade com a verbalização do que sentem choca-se com as características da "sociedade de consumo" de nossos dias. A partir dos desafios impostos à clínica da "ortodoxia" psicanalítica pelas subjetividades que ora se produzem, o livro aponta para a relevância do conceito de amizade tal qual Ferenczi o teria concebido e praticado.

Baseado em sua vasta experiência clínica, e no estudo aprofundado dos autores da psicanálise e da filosofia que servem aos seus propósitos, Luiz Ricardo foi buscar no tema da amizade material para a necessária (re)descrição criativa do processo de subjetivação em psicanálise. Assim é que o autor apropria-se do conceito de amizade pela via da leitura crítica que Francisco Ortega empreende do pensamento de Foucault e de Derrida. Esse artifício textual permite clarificar a importância capital do tema do livro.

Transposta para o território psicanalítico, a amizade se tornaria o instrumento de subjetivação privilegiado. Para mostrar a pertinência de tal argumento, o pesquisador recorre a Ferenczi, extraindo da obra deste a base da proposta intrínseca aos postulados do psicanalista húngaro, do potencial transformador da prática da amizade. As observações de Ferenczi quanto à centralidade da verdade, da sinceridade, da responsabilidade e da sensibilidade na clínica analítica levam-no a teorizar a respeito do valor da qualidade afetiva dos encontros analíticos. Para Ferenczi, o sucesso da análise depende da "verdade" do laço de amizade estabelecido entre analista e analisando, sendo ele o signo maior de que o analista teria sido capaz de controlar o próprio narcisismo e de que a sua demanda inconsciente está orientada na direção do tratamento do analisando.

Ao apostar na indissociabilidade da transferência e da contratransferência, Ferenczi afasta-se de Freud deslocando o foco analítico que se achava dirigido, exclusivamente, para a figura do analisando. Quanto a isso, cumpre notar que a "associação livre", ou seja, a regra fundamental da psicanálise, diz respeito tão somente ao analisando, tendo sido progressivamente proposta por Freud entre os anos de 1892 e 1898. É fato que Freud (1912/1986) não prescrevera, desde o início, a contraparte da "escuta igualmente flutuante" atinente ao analista, cujo enunciado, datado de 1912, é, portanto, bem posterior. Contudo, o desenvolvimento das teses de Freud, desde a introdução da tese do narcisismo até a "virada dos anos vinte", com a criação do conceito de pulsão de morte, do isso e da angústia automática, acabaria por diminuir a distância que o separa do pensamento ferencziano da amizade.

É certo que Ferenczi distende a abrangência clínica da prática da amizade, alargando-a para nela incluir as relações teóricas e institucionais do analista com os seus pares. Esse é o viés que permite ao autor do livro apresentar a clínica analítica como prática política. A compreensão da inexorável dimensão social da subjetividade é que libera, afinal, a proposta da amizade clínica como condição da subjetivação satisfatória do analisando.

Para dar conta de tais objetivos, o nosso autor nos apresenta o diálogo, a um só tempo, político e afetivo, entre Ferenczi e seus amigos. Nessa medida, as relações conturbadas de Ferenczi com Freud, de quem aquele foi, inclusive, analisando, e, de outro lado, os encontros com Rank e Groddeck apontam para a singularidade da concepção ferencziana da amizade, explorada no livro. Indicando, de forma prototípica, direções antitéticas, as relações de amizade vividas por Ferenczi junto aos psicanalistas de seu tempo servem a Luiz Ricardo para indicar dois tipos de processos de subjetivação na clínica analítica, estruturados, respectivamente, por opostas modalidades de estratégias clínicas.

Por um lado, haveria o modelo da ortodoxia, patriarcal e autoritário. O sentido da amizade que lhe corresponde possui um caráter estratégico, de modo que as divergências existentes entre os amigos devem ser superadas em função da superioridade conquistada por uma das partes. Tais analistas buscariam, na relação de amizade a seus pares, o fortalecimento de seus ideais teóricos e institucionais.

Os analistas comprometidos com esse significado do tema da amizade, dos quais Freud seria o emblema, impõem uma hierarquia clínica, na qual a superioridade do analista sobre o analisando se baseia no saber conceitual pertencente ao primeiro. Para essa linhagem, o tratamento seria visto como um avanço do autoconhecimento o qual, pela via da interpretação do analista, caminharia no sentido de desvendar o saber oculto no inconsciente do analisando. Considerando o complexo de Édipo como universal, essa prática clínica se distancia da singularidade e da historicidade específicas do sofrimento dos analisandos. Dificilmente, conclui Luiz Ricardo, as análises desse tipo seriam capazes de propiciar um modo de subjetivação satisfatório. Com efeito, o tom político da subjetivação que lhes corresponde tenderia para as relações autoritárias de dominação e controle.

O outro modelo de amizade, pactuando com o significado oposto da respectiva prática, questiona as regras da neutralidade e da abstinência do psicanalista, bem como a orientação predominante da escuta, dirigida, exclusivamente, ao discurso verbal do analisando. Associando essa outra inclinação clínica ao desenvolvimento dos afetos de sinceridade e franqueza entre os elementos do par analítico, Ferenczi considera que ditos afetos concorrem para o exercício da liberdade de ambos os protagonistas da análise, sendo tal situação indispensável para o avanço do processo em curso.

Admitindo que o analista não deve proteger-se, quer preservando a sua imagem narcísica, quer deixando-se dominar por acentuados traços superegoicos, a correspondente relação de amizade analítica teria o condão de evitar a transferência negativa, sendo esta entendida como tudo aquilo que não concorre para o aprofundamento da subjetivação satisfatória do analisando. A sensibilidade do analista lhe daria, enfim, o discernimento necessário para colocar-se de forma sincera e, ao mesmo tempo, responsável, vis-à-vis a resistência do analisando. Isso quer dizer que a amizade estabelecida na clínica seria o signo insofismável da orientação do inconsciente do analista na direção da subjetivação do analisando. Essa é, obviamente, a posição com a qual o nosso autor se identifica.

A contribuição do livro não termina aí. Como se o que até aqui se expôs não bastasse, o melhor ainda estaria por vir. Luiz Ricardo se serve da questão da amizade para propor o papel central para a teoria da subjetividade e para a clínica da subjetivação, que deriva do lugar ocupado pela questão da alteridade no pensamento psicanalítico. De fato, só então a importância do encontro e do outro, entendido em seu sentido radical, ou seja, como característica intrínseca da subjetividade, seria capaz de elevar a amizade a operador central de subjetivação.

Encontrando nos pensamentos de Derrida e de Foucault os subsídios teóricos para a conjunção entre a estrutura da sociedade e a da subjetividade, o livro nos coloca frente a frente ao pensamento da imanência (Laruelle, 1989). Retomando o viés revolucionário de Foucault que, por assim dizer, descobre no coração mesmo das relações de poder o primado da força de resistência imanente à subjetividade, a proposta encaminhada nas páginas do livro não deixa margem à dúvida. A íntima conjunção da subjetividade com forças de natureza social atesta a existência de uma potência de autoconstituição da subjetividade no núcleo da relação de poder, sendo esta até mesmo provocada pela autonomia daquela. Para Luiz Ricardo, o pensamento de Ferenczi, ao abrir mão de toda a transcendência universalista de Édipo, encontra a dimensão resistiva do encontro, apresentando, enfim, a amizade como o operador central de subjetivação. Dita amizade, enquanto instrumento clínico prioritário, consistiria, também, na resistência aos poderes coercitivos da sociedade, colocando-se, portanto, indiscriminadamente, como transformação de si e como afirmação política da democracia.

Com base nesse posicionamento maior, o autor não evita a questão a respeito do funcionamento operatório dessa amizade clínica, alertando, cauteloso, para o fato de que não pretende definir quaisquer diretrizes de cunho técnico. Luiz Ricardo orienta a atenção do leitor para a necessidade fundamental da implicação do analista na análise - entenda-se análise como modalidade eminentemente psicanalítica de encontro -, de tal forma que não seja ele a resistir (no sentido freudiano), ainda que inadvertidamente, ao tratamento do analisando. Ou seja, somente se o analista puder se colocar como "amigo" do analisando, com responsabilidade e sensibilidade, este poderá desenvolver um modo de subjetivação satisfatório.

Para o exercício da modalidade de amizade em destaque, alerta o conteúdo do livro, seria preciso que o analista fosse capaz de fazer apelo à alteridade subjetiva em si próprio, àquilo que, segundo Pontalis, nos ultrapassa em nós ou, ainda, ao que acontece a nós. Caberia ao analista, como condição da análise, apresentar-se como amigo do analisando, escapando, ele também, às identidades "universais" sociais. Dessa maneira, ao colocar-se disponível para o engendramento de um modo de subjetivação satisfatório, o analista se veria compromissado com a história singular do analisando. A mudança de estado subjetivo que, só então, ocorre a ambos os protagonistas lhes seria, do mesmo modo, evidente.

Assim é que o livro cumpre o que promete ao nos apresentar ao sentido da amizade em Ferenczi. Ao empreendê-lo, contudo, o autor nos oferece o seu entendimento de que os requisitos dilatados que se colocam aos analistas correspondem à busca da diferença absoluta no interior da subjetividade. Tal pressuposto, ou seja, a incansável procura daquilo que nos ultrapassa em nós mesmos, poderia ser dito, propriamente, como a ética da psicanálise. Tal significado de amizade, coletivo e subjetivo, propõe articular de forma indissolúvel as relações sociais e a prática clínica - vida e obra - dos analistas. Requisitos dessa envergadura tornariam a análise uma tarefa hercúlea para o psicanalista? Consistiria, como acreditava Freud (1937/1986), o trabalho de psicanalisar, ao lado de educar e de governar, em uma profissão impossível?

Sem sombra de dúvida, com Ferenczi e seus amigos, as demandas ao analista se multiplicam. Aos procedimentos decididamente compatíveis com a ética da psicanálise, acrescentam-se certas características de personalidade que os analistas deveriam possuir como, por exemplo, a sensibilidade e a perseverança. Mas, afinal, aqueles que se dedicam ao ofício de analisar não deveriam, preferencialmente, possuir certos atributos de personalidade? Não devem os músicos, de preferência, ser dotados de "ouvido" musical? O que dizer de marceneiros sem habilidades manuais? Essas e outras questões cruciais serão suscitadas no leitor desse "sentido da amizade" que Luiz Ricardo nos oferece.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Freud, S. (1912/1986). Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico. Obras completas, v. XII. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Freud, S. (1937/1986). Análisis terminable e interminable. Obras completas, v. XXIII. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Laruelle, F. (1989). La méthode transcendentale. In: Jacob, A. (directeur). Paris: L'Universe Philosophique.         [ Links ]