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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2013

 

RESENHAS

 

Poesia psicanalítica: as fronteiras entre psicanálise, poesia e ciência

 

Psychoanalytic poetry: the frontiers between psychoanalysis, poetry and science

 

 

Patrícia Saceanu

Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Supervisora do curso de Especialização em Clínica Psicanalítica (IPUB/UFRJ); Membro do Fórum do Círculo Psicanalítico - RJ. E-mail: psaceanu@hotmail.com

 

 

RESENHA DE:

Peyon, Eduardo Rodrigues (2011). Poesia, psicanálise e a construção do conhecimento: reverberações. São Paulo: Editora Escuta, 288p.

Em Poesia, psicanálise e a construção do conhecimento: reverberações (Peyon, 2011), o poeta e psicanalista Eduardo Peyon rompe com

o frequente distanciamento que caracteriza o discurso acadêmico, revelando desde o início a implicação de seu "próprio corpo" em sua obra. Corajosamente, compartilha com o leitor sua experiência de ter tido a semente desse trabalho plantada em seu próprio percurso analítico, no qual sua poesia emergiu articulada ao processo de associação livre e à investigação do inconsciente.

Para além de sua experiência pessoal, em que o encontro com o íntimo e desconhecido outro de si mesmo gerou poesia, Peyon (2011) percebe todo processo analítico como terreno fértil para a emergência da poesia de cada um, sempre singular. A partir daí, desperta para uma ampla interrogação sobre as relações entre poesia, psicanálise e ciência, reconhecendo e apontando a íntima familiaridade entre esses discursos aparentemente distantes.

Ao longo do livro, o autor discute a questão das fronteiras - que delimitam, separando e unindo. Situando-se na "tríplice fronteira" entre psicanálise, poesia e conhecimento, o texto de Peyon (2011) traz, em toda a sua extensão, a assinatura da poesia do próprio autor e sua contribuição para a construção de um conhecimento "mais poético". Mantendo o rigor teórico, o livro é permeado por "costuras poéticas", principalmente em suas notas, epígrafes e citações, oferecendo-nos o prazer de desfrutar de autores/poetas que vão de Chico Buarque a Fernando Pessoa, entre muitos outros.

A marca de Derrida - o filósofo de pensamento audacioso que Kofman (1984) denominou de "um filósofo Unheimlich", devido à peculiaridade de sua escrita capaz de se situar entre filosofia e literatura - é presente ao longo de todo o texto. Na proposta derridiana de desconstrução dos discursos baseados em oposições dualistas, Peyon (2011) encontra o equilíbrio possível num lugar fronteiriço.

Ciente, a partir de Derrida, de que "a leitura que endossa também trai o autor", Peyon (2011: 12) convida o seu leitor - e assim me senti convidada - a reescrever seu trabalho, a co-assiná-lo, com sua própria poesia, sempre portadora de uma différance1. Desse modo, sabendo que as sínteses fecham portas, busco nesta resenha apenas relançar algumas das inúmeras questões abertas por essa leitura.

Mesmo imbuído do projeto de construir uma ciência dentro dos cânones científicos da modernidade, Freud recomendava a indagação aos poetas para o avanço do saber psicanalítico, reconhecendo que os escritores exploram o mesmo terreno que o psicanalista, podendo chegar a conclusões semelhantes, mesmo que por caminhos diferentes. Em carta a Arthur Schnitzler, por exemplo, deixou transparecer sua admiração e sua identificação com esse escritor a quem chegou a considerar seu "duplo" (Jones, 1989).

Desde Freud, nós psicanalistas seguimos recorrendo à poesia ou à arte em geral para melhor observar e apreender nossas questões. Porém pouco nos perguntamos sobre o porquê de fazermos isso. Peyon (2011), que qualifica como poeta o escritor ou o artista criativo em geral, busca avançar nesta questão: afinal, o que a poesia ensina ao psicanalista?

Nesse intuito, percorre a obra freudiana buscando em diversos textos mostrar como o recurso à poesia foi fundamental para a construção da psicanálise, ressaltando também momentos "poéticos" na própria criação de Freud. Segundo Peyon (2011: 275), "Freud explica usando e fazendo poesia".

Desde "O projeto..." - "a fábula neurológica de Freud" -, passando por "A interpretação dos sonhos" - onde Freud mostrou que cabe a cada sonhador associar/criar a partir de seu sonho -, "Os chistes.." - que assim como a poesia são libertadores da ordem racional, "O escritor criativo e seus devaneios" - onde Freud aproximou a criação poética do brincar infantil -, entre outros textos, Peyon (2011) mostra como a obra de Freud foi marcada por idas e vindas quanto ao seu modo de uso da poesia. Se, em diversos momentos, Freud enriquecia seu texto com o recurso à literatura, em alguns outros propunha abordagens "enclausuradas", sugerindo, por exemplo, interpretações sobre os autores a partir de suas obras, como em "Dostoievski e o parricídio".

Assim, Peyon (2011) mostra que há conflito e diálogo entre o Freud mais iluminista, científico e fisicalista, e o Freud mais poético, especulativo e criativo, numa complexa relação de não-oposição: Freud buscava o modelo das ciências da natureza e, por outro lado, encontrava importantes aliados na poesia, admitindo abertamente o conhecimento do inconsciente pelos poetas.

Seguindo essa reflexão sobre os diferentes usos da poesia, Peyon (2011) discute as abordagens de Lacan e de Derrida acerca do conto de Poe, "A carta roubada". De modo crítico, considera que a leitura lacaniana desse texto encontrou ali apenas um "exemplo ilustrativo" da teoria que já procurava - a castração, como uma "verdade transcendental" -, "enclausurando" as múltiplas possibilidades da poesia2.

Já em Derrida - tanto em sua leitura desse conto de Poe quanto em seu recorrente uso da literatura ao longo de toda a sua obra - os poetas não são evocados para comprovar, ilustrar ou fundamentar qualquer tese filosófica, mas emprestam sua capacidade de "abalar" todo discurso que se pretenda unívoco.

Peyon (2011: 262) alerta que a utilização a priori de um texto como "confirmação de uma verdade" pode ser aplicada a qualquer texto, inclusive, e mais violentamente, ao texto dos pacientes em análise.

Quando Freud recusou os "manuais de interpretação dos sonhos", entregou a cada sonhador o direito de interpretar o próprio sonho, de ser "inventor de si mesmo", fazendo sua própria poesia. Também quando deixou suas histéricas falarem, expressando suas verdades, Freud permitiu que partissem do enigma que cada sintoma porta para iniciarem o próprio percurso poético.

Peyon (2011) lembra que Freud jamais se situou além dos poetas, tampouco de seus pacientes, e por isso continuou sempre aprendendo com eles sem fechar um sistema teórico pleno. Baseado nessa postura de Freud, entende que ser psicanalista é possibilitar que cada analisando escreva sua poesia, re-lance sua narrativa, re-construa seu passado, teça um novo mito sobre seu existir.

É desse modo que Peyon (2011) responde à questão, que atravessa todo o livro, sobre o porquê de tantos analisandos se aproximarem da poesia:

o processo analítico que deixa falar o inconsciente, sem o apelo a uma ordem, a uma contenção lógica da fala, a uma racionalização, é fértil terreno para o poético, para a emergência da différance, para deixar chegar o dantesco e criar, no seio da repetição, novas formas de representar, de existir, de amar (Peyon, 2011: 206).

Porém, para que o setting analítico possa favorecer a criatividade poética, o "relançamento das cartas", é fundamental a abertura de cada analista. A rigidez (resistência?) de um analista dogmático deixa escapar a singularidade de cada analisando, de cada encontro.

Podemos entender assim que é necessária uma "hospitalidade" do analista diante de cada paciente, sempre singular e "estranho". A hospitalidade, para Derrida (1997), implica na capacidade de se deixar afetar pelo outro, de se deixar expor, questionar, alterar, desestabilizar, sem julgamentos prévios.

Crítico e admirador da psicanálise, Derrida reconhecia sua "vocação desenclausuradora", ao mesmo tempo que apontava a "resistência da psicanálise a ela mesma". Na conferência Estados da alma da psicanálise (2000), Derrida afirmou que a psicanálise vinha se esquivando de seu papel subversivo e questionador dos abusos dogmáticos, de desconstruir os discursos soberanos, mantendo-se muitas vezes enclausurada em modelos de oposições binárias, por exemplo.

Seguindo Derrida, Peyon convoca a psicanálise em seu papel de evitar os grandes fechamentos, a tirania do conhecimento e da moral, de sustentar o debate e o direito à diferença, ao imprevisível, ao mais estranho - o que faz nascer a poesia. Nesse sentido, afirma: "a psicanálise parece-me ter um lugar essencial no esforço ético contra todo reducionismo, epistemológico ou moral, da complexidade dos acontecimentos humanos" (Peyon, 2011: 275).

Mantendo-se uma abertura, a poesia trará sempre uma surpresa imprevisível, assim como toda teoria psicanalítica e cada análise, onde o não-saber e o inconsciente emergem imprevisivelmente, despertando estranhamento e perplexidade.

Um dos grandes méritos de Peyon nesse trabalho é nos lembrar que a ausência de garantias de uma "verdade última" abre espaço não apenas para o desamparo, mas também para o novo e a possibilidade infinita de criação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Derrida, J. (1997). De l'hospitalité - Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à répondre De l'hospitalité. Paris: Calmann-Lévy.         [ Links ]

Derrida, J. (2000). Les états d'âme de la psychanalyse. Paris: Galilée.         [ Links ]

Jones, E. (1989). A vida e a obra de Sigmund Freud, v. 3. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Kofman, S. (1984). Lectures de Derrida. Paris: Galilée.         [ Links ]

Poe, E. A. (1845/2005). A carta roubada. In: Tavares, B. Contos fantásticos no labirinto de Borges (pp. 120-138). Rio de Janeiro: Casa da Palavra.         [ Links ]

Santiago, S. (1976). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

 

NOTAS

1 "Neografismo" proposto por Derrida (Santiago, 1976), produzido a partir da introdução da letra "a" na escrita da palavra différence.

2 Cabe lembrar aqui a epígrafe do conto de Poe, que parece alertar justamente para a importância da abertura para o novo: "Nada é tão odioso à sabedoria quanto a excessiva sagacidade" (Poe, 1845/2005: 121).