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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro July 2014

 

EDITORIAL

 

Em seu novo número a Tempo psicanalítico é dedicada ao trabalho de Ana Maria Rudge, que esteve a frente da revista como editora responsável, transmitindo sua dedicação e belíssimo trabalho para o público e que, agora, o transmite para nós, para que continuemos.

É uma excelente oportunidade, também, para lembramos uma ideia simples que não deixa de ser íntima a revista, já que faz parte de seu título mesmo: a ideia de tempo. A Tempo psicanalítico chega ao segundo número de sua quadragésima sexta edição. Ativa desde os anos 70, a longevidade da revista é uma raridade entre as publicações da área. Testemunha de grandes transformações interiores a psicanálise, a psicologia e as ciências humanas, de uma forma geral, nas páginas da Tempo inscreveram-se também a dedicação, não apenas dos autores, mas daqueles que foram responsáveis, dentro da Sociedade de psicanálise Iracy Doyle, por sua existência. E também, é claro, a atenção dos leitores que folhearam suas páginas ou, em sua nova versão on-line, tela, encontrando estudo, inspiração, discordância, curiosidade...

Por isto esta edição é dedicada a Ana Maria Rudge, mas também aqueles que, ao longo destes anos, ajudaram—direta ou indiretamente, conforme as possibilidades e meios dos quais dispunham—a fazer da Tempo um documento valioso de memória da psicanálise. Mas que também é, hoje, um testemunho de seu presente: é o que vemos nos artigos presentes nesta edição.

Em A medicalização do psíquico: o uso do termo psicose nos manuais diagnósticos estatísticos, Roberto Calazans e Rosane Zétola Lustoza nos oferecem uma instigante reflexão sobre a clínica psicanalítica das psicoses. Os autores mostram como o diagnóstico psiquiátrico pautado em manuais como o DSM-IV-TR busca substituir a escuta clínica por um a-teorismo que, segundo alguns dos padrões inerentes a própria tradição psiquiátrica, é insustentável.

A política está presente através da confrontação, realizada por Gabriel Tupinambá em A psicanálise é um trabalho? Uma profissão impossível e o conceito marxista de trabalho, entre a categoria marxista de trabalho e uma simples questão dirigida aos psicanalistas: a psicanálise, afinal, é um trabalho? Se sim, qual conceito de trabalho que dispomos para compreendê-la? Será ela um trabalho produtivo, cuja mercadoria é a cura, ou engajará, antes, uma paradoxal cura cujo estatuto é essencialmente improdutivo?

Também sobre temas relacionados a política versam os artigos de Angélique Christaki, Destinos do vínculo e dos afetos no mal estar contemporâneo. O modelo da depressão, e de Raquel Horta Fialho do Amaral Cougo e Marcus André Vieira, Do universo infinito ao mercado ilimitado – a hipermodernidade de Jacques Lacan. Ambos traçam reflexões valiosas sobre a contemporaneidade, ao levantar questões como a da prevalência do diagnóstico da depressão e a das transformações no laço social.

Fuad Kyrillos Neto, em O conflito entre psicanalistas e sua ocasional falência da queda fálica, desloca o foco da política para aquele da política interna as instituições de psicanálise. Podemos acolhê-lo como uma publicação importante para nossa revista, já que a Tempo, também, é fruto do trabalho institucional realizado na Sociedade de psicanálise Iracy Doyle. Será que, ao criticarmos o discurso atual a partir do referencial teórico da psicanálise, nos incluímos no quadro que descrevemos? Serão nossos diagnósticos apenas exortações morais ou seremos, nós mesmos, como psicanalistas, inscritos também naquilo que observamos?

Já Daniela Giorgenon, Lucília Maria Abrahão Sousa e Soraya Maria Romano Pacífico, em Sujeito, corpo e um espelho (cibernético): a memória em imagem e em discurso, oferecem uma valiosa contribuição, por deslocar-se de um referencial privilegiadamente psicanalítico e, junto as análises de Jacques Lacan sobre o estádio do espelho, incluir a Análise do discurso de Pecheux e a Arqueologia do saber de Michel Foucault dentro de uma investigação também ancorada sobre os múltiplos espelhos em que se reflete a difícil categorização do presente.

O estudo sobre as modificações corporais, realizado por Alexandra Arnold Rodrigues e Angela Maria Pires Caniato, Rupturas, experiências de choque e o elogio a crua e nua realidade: prenúncios do trauma no fenômeno das Bodymodifications, também aborda um tema espinhoso: o crescimento de fenômenos como as feridas autoimpingidas e as modificações corporais extremas, que desafiam a categoria psicanalítica do masoquismo e colocam novas questões sobre o lugar do trauma e do excesso no laço social.

Devastação e gozo na ópera. Erwartung opus 17, de Schoenberg, de Isis Fraga Segal e Rita Maria Manso de Barros, propõe uma reflexão sobre a ópera Erwartung do compositor Arnold Schoenberg realizada a partir das relações observadas por Jacques Lacan entre a sexualidade feminina e o gozo. De fato, na virada do século XIX para o XX, quando emerge a psicanálise através da escuta do discurso histérico, são inúmeros os dramaturgos, pintores, poetas e escritores que, através de seus próprios meios, se confrontaram com a histeria. O artigo é testemunho das marcas que o encontro com a sexualidade feminina deixa na música de Schoenberg, e de como a psicanálise pode nos ajudar a compreendê-lo.

A contribuição de Carla de Abreu Machado Derzi, Catarina de Sena: a anorexia e suas manifestações de ato busca, através da categoria de ato, pensar a anorexia religiosa de uma Santa do século XIII. Carla de Abreu realiza um exercício de conjunção entre conceitos psicanalíticos, relatos e documentos históricos, que não se deixa reduzir a uma "psicanálise aplicada", justamente porque mostra, psicanaliticamente, como não é apenas o presente que deve explicar o passado, mas o passado, também, que tem força para iluminar algumas das questões de nosso presente, como o crescimento das anorexias nervosas.

E, como não poderia deixar de ser, o eixo clínico é privilegiado através de dois artigos: Sobre o trauma: contribuições de Ferenczi e Winnicott para a clínica psicanalítica, de Solange Maria Serrano Fuchs e Carlos Augusto Peixoto Júnior e Um ato de amor paradoxal, de Sônia Altoé e Marco Antônio Coutinho Jorge. O primeiro é uma importante reflexão sobre o conceito de trauma presente em Winnicott e Ferenczi. Importante por mostrar como ambos os psicanalistas, encontrando resultados clínicos e teóricos distintos daqueles propostos por Freud em suas teorias sobre o trauma, não deixaram de seguir os resultados destas diferenças. De maneira que a originalidade de suas perspectivas torna-se, hoje, fundamental para a compreensão dos chamados "pacientes difíceis", que representam um desafio tão grande a clínica contemporânea.

Já Sônia Altoé e Marco Antônio Coutinho Jorge empreendem o relato de um caso clínico realizado através de reflexões sobre as relações não tão opositivas entre o amor e a pulsão de morte, e da proposta da seguinte questão: o que caracteriza o ato de amor de uma mãe?

Por fim, a resenha do livro de Isabel Fortes, A dor psíquica, realizada por Rodrigo Ventura, reafirma o objetivo desta seção da revista: apresentar publicações relevantes de autores que reflitam sobre a psicanálise contemporânea, constituindo uma plataforma para a visibilidade e divulgação de textos que merecem atenção e discussão no meio.

Boa leitura!