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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro jul. 2014

 

ARTIGOS

 

A medicalização do psíquico: o uso do termo psicose nos manuais diagnósticos estatísticos

 

The medication of psychic: the use of the term psychosis in statistical diagnostic manuals

 

 

Roberto CalazansI*; Rosane Zétola LustozaII**

I Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) - Brasil
II Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo desse artigo é demonstrar, a partir do exemplo de como a psicose é tratada nos manuais estatísticos de diagnóstico de transtornos mentais, em especial o DSM-IV-TR, o processo de medicalização do psíquico. Desse modo, em primeiro lugar apresentamos o debate entre a psicanálise e a psiquiatria biológica para, em seguida, apresentar como a psicose é tratada no DSM-IV-TR e suas insuficiências quando cotejamos essas definições com a clínica psicanalítica.

Palavras-chave: psicanálise; psicose; medicalização; manuais diagnósticos estatísticos.


ABSTRACT

The purpose of this article is to show the process of medication of psychic through examples of how psychosis is treated in diagnosis and mental disorder statistical manuals, specially the DSM-IV-TR. Firstly, there is a debate between psychoanalysis and biological psychiatry. Then, it is presented how the psychosis is treated in the DSM-IV-TR and its lacking when compared these definitions with the psychoanalytical clinic ones.

Keywords: psychoanalysis; psychosis; medication; statistical diagnostic manuals.


 

 

1. Introdução

O processo de medicalização se caracteriza pela consideração de todo e qualquer problema como sendo um problema médico e, portanto, passível de ser reduzido a uma causa orgânica e a um tratamento medicamentoso. Esse procedimento está na raiz do programa de objetivação da psicopatologia, que visa abordá-la como síndrome, isto é, um conjunto de sinais e sintomas que se constituem à revelia da fala do sujeito.

O projeto de revisão dos Manuais Diagnósticos e Estatísticos de Transtornos Mentais (DSM), que se inicia com sua terceira edição em 1980, exprime perfeitamente essa orientação de trabalho. O objetivo deste artigo é avaliar criticamente como o projeto dos DSM's, mais especificamente sua penúltima versão (DSM-IV-TR), trata de um dos temas mais importantes da psicopatologia: a psicose. Espera-se apontar para os limites da proposta medicalizante do sofrimento subjetivo e contrapor a ela a proposta psicanalítica.

 

2. Contextualização do problema

A psicanálise é uma clínica que se define por ser ética, uma vez que considera a escuta do sujeito como fundamental ao tratamento. A partir de Freud e Lacan, podemos dizer que a clínica, quando é da ordem do campo psíquico, está às voltas com o sujeito. Articular clínica e sujeito é importante hoje, tanto no que podemos chamar de direção do tratamento, quanto no que podemos chamar de prática diagnóstica. De certo modo, a noção de sujeito é que permite unificar estas duas dimensões da clínica - diagnóstico e tratamento - no campo de problemas psíquicos.

São notáveis as diferenças entre clínica médica e clínica psicanalítica. A clínica médica divide-se em três etapas. Em primeiro lugar, a parte semiológica, em que temos a apresentação de sinais e sintomas. Em segundo lugar, a determinação de um marcador biológico, que seria um processo orgânico que indica a existência de um fato patológico (por exemplo, concentração aumentada de PSA no sangue sinaliza uma probabilidade significativa de câncer de próstata).

Quando o marcador biológico não apenas indica a probabilidade de ocorrência de uma doença, mas sinaliza de forma inequívoca a sua presença, ele é chamado sinal patognomônico. Tais sinais são encontrados, de acordo com Amaral (2004: 74), "sempre e apenas nos pacientes que são acometidos pela doença, mostrando-se através de métodos objetivos". Por exemplo, a detecção de anticorpos anti-HIV como patognomônico da AIDS. O sinal patognomônico já está evidentemente ligado à pesquisa da causa que explica a doença. Consegue-se aí atingir o terceiro nível, etiológico.

O importante é que, como demonstra Adriano Aguiar Amaral (2004: 75), no caso da Psiquiatria não existem marcadores biológicos que possam servir ao diagnóstico dos transtornos mentais. Não há marcadores nem no sentido probabilístico nem no sentido de um sinal patognomônico. A nosso ver, a ausência de marcadores biológicos para os transtornos mentais é o mais forte argumento contra a redução da clínica do sujeito à clínica médica.

Conforme a Psicanálise, em vez de um marcador biológico, devemos situar aí um marcador estrutural subjetivo. Esses marcadores podem ser delimitados, tal como fez Lacan a partir de sua releitura de Freud, nas tres modalidades de resposta que especificam as estruturas clínicas: o recalque como marcador subjetivo da neurose (1953/1998: 282); a foraclusão como marcador da psicose (1957/1998: 587); e o desmentido como o marcador das perversões (Lacan, 1956/1995, p. 124). são esses marcadores que ordenam os diversos sintomas e permitem orientar o tratamento de acordo com a especificidade das respostas do sujeito.

No entanto, a posição da Psicanálise não é unânime no campo do tratamento e do diagnóstico do sofrimento psíquico. Ao afirmar a importância da causalidade sexual, a Psicanálise se coloca na contramão da Psiquiatria medicalizante, segundo a qual não devemos nos pronunciar sobre questões relativas à etiologia dos transtornos. Salvo quando formos capazes de ligá-los a fatores biológicos. Ocorre que, para a Psicanálise, tal ressalva reintroduz de forma latente algo que havia sido manifestamente demonizado pela própria Psiquiatria, ou seja, o debate sobre a causa.

Embora se declare a-teórico, o Manual revela um embasamento teórico organicista, com teorias biológicas sustentando a medicalização do psíquico e, consequentemente, a ordenação do tratamento. Uma amostra do raciocínio organicista pode ser conferida ao lermos o capítulo sobre diagnósticos do Manual de Psicofarmacologia Clínica de Schatzberg, Cole e DeBatista (2009), onde encontraremos dois pontos importantes:

1 - o primeiro louva os DSM-III e IV como parte de uma abordagem que busca uma classificação mais exata: "grande parte da atenção a uma nosologia mais rigorosa deve-se aos avanços na biologia e no tratamento de diversas psicopatologias" (Schatzberg, Cole & DeBatista, 2009: 38).

2 - o segundo aposta que, com a reformulação futura do manual estatístico, "é possível que o DSM-V seja consideravelmente diferente de seus antecessores. Existe a intenção de começar a estabelecer o diagnóstico com base nas características biológicas e genéticas" (Schatzberg, Cole & DeBatista, 2009: 54). E os autores arrematam no parágrafo seguinte: "Finalmente a farmacogenética poderá desempenhar um papel não apenas na reclassificação das psicopatologias, mas também na definição dos algoritmos do tratamento ideal" (Schatzberg, Cole & DeBatista, 2009: 54).

Essas duas passagens apontam o que já estava em jogo na perspectiva medicalizante: que o viés a-teórico não é tão a-teórico assim e que a busca de bases empíricas releva mais de um pragmatismo de primeira ordem do que de uma mera descrição de eventos. A clínica, que é o objetivo primeiro e o cerne da questão, fica de lado. De qualquer forma, vê-se que o debate clássico entre os partidários da organogenese versus psicogenese dos problemas psíquicos não está tão ultrapassado quanto parece (Maleval, 1991).

Colocando a questão que julgamos ser a principal - a clínica -, devemos então nos perguntar se, dentro do campo dos problemas psíquicos, podemos afirmar que os manuais estatísticos de diagnóstico e os tratamentos de ordem farmacológica são apropriados para uma clínica do sofrimento psíquico. Consideremos primeiramente a prática diagnóstica: abordar o problema de um ponto de vista meramente estatístico é privilegiar a dimensão do que é geral, homogêneo, comparável.

A estatística lida com populações, deixando de lado a singularidade do sujeito. No caso do diagnóstico em Psicanálise, considera-se que no caso clínico sempre há o enlaçamento da generalidade da teoria com a singularidade do caso. Entre o universal do conceito e o singular do caso há a necessidade de um ato de julgar, como disse Jacques-Alain Miller (2006) a propósito do diagnóstico.

Miller (2006) lembra da lição kantiana segundo a qual o conhecimento de uma regra não basta para saber se ela se aplica ao caso; do conceito ao caso há um intervalo, ao qual o ato de julgar deve responder. Entre o caso e a regra, há sempre uma hiância. Ora, o recurso à estatística neste caso parece uma tentativa de evitar justamente essa hiância.

Já em relação à farmacologia, sabemos que ela lida com processos bioquímicos e não com a consideração do sujeito em sua relação com o Outro e seus modos de gozo. Não se trata para a Psicanálise de se opor ao tratamento farmacológico, mas de se opor ao uso abusivo desse recurso sem a consideração de que ele deve ser acessório, mas não um substituto para a clínica do sujeito.

 

3. Críticas

Se quisermos criticar tal abordagem do pathos, não podemos afirmar simplesmente que esta abordagem deixa de lado a consideração do sujeito. Afirmar isso é insuficiente e insatisfatório para uma crítica epistemológica. Afinal, os promotores dos manuais diagnóstico e estatístico não disfarçam que sua pretensão é precisamente deixar de lado o sujeito. Ou seja, o que para a perspectiva crítica aparece como defeito é justamente o ponto que os defensores da medicalização enaltecem como qualidade.

Contudo, tais psiquiatras não deixam de afirmar que tem objetivos clínicos no campo dos problemas psíquicos. E este sim é, a nosso ver, o calcanhar de Aquiles da orientação em exame. Os psiquiatras que adotam o DSM-IV-TR como manual diagnóstico não devem referir-se ao sujeito somente porque a psicanálise o faz; isto seria uma proposição inteiramente autoritária.

Mas, uma vez que os redatores do DSM afirmam ter objetivos clínicos, eles deveriam, sim, se referir ao sujeito, porque a clínica dos problemas psíquicos assim o exige. Podemos nos valer aqui não mais de um autoritarismo para fazer esta formulação, mas daquilo que Carlo Vigano (2010) chama de autoridade clínica.

A partir daqui, a crítica à Psiquiatria medicalizante pode então tomar duas direções:

a) A primeira é demonstrar como, internamente, as proposições dos DSM's acabam sempre tocando em noções próprias à dimensão do sujeito, mesmo que a neguem explicitamente. Encontramos isso nas inúmeras advertências de que o DSM-IV é "apenas um primeiro passo e de que o médico necessitará de muitas informações adicionais acerca da pessoa" (APA, 2004: 31); ou ainda na curiosa manutenção do termo mental, de clara ressonância subjetivista, que por mais embaraçoso que seja não pode ser inteiramente evitado na especificação dos ditos transtornos (APA, 2004: 27). E não poderia ser diferente, uma vez que seus objetivos não são somente de pesquisa, mas de tratamento clínico também, como consta primeiro parágrafo (APA, 2004: 21) e na advertência (APA, 2004: 33); assim como os autores de um manual de psicofarmacologia não deixam de dizer que não se pode esquecer da experiência do médico ou de uma flexibilização da ação do médico:

o diagnóstico e a classificação precisos fornecem dados para o desenvolvimento de estratégias psicofarmacológicas. No entanto, o médico não deve esperar correlações perfeitas entre os tipos de paciente observados na prática e os protótipos clássicos da literatura. Essa advertência é importante especialmente quando o médico acompanha o paciente por muitos anos. Nesse caso, uma abordagem flexível precisa ser desenvolvida - uma que inclua rotina e reavaliação regular da condição do paciente, bem como consideração da necessidade de mudanças do medicamento (Schatzberg, Cole & DeBatista, 2009: 55).

Nós perguntaríamos se, em vez da abordagem flexível preconizada pelos autores, não seria mais adequado afirmar a necessidade de uma abordagem aberta à dimensão de não-saber da clínica. são propostas diferentes. Afinal, ser flexível é ir até certo limite, mas sem necessariamente abandonar os princípios ou ultrapassar o limite. Ou seja, mesmo quando se quer negligenciar explicitamente o sujeito, implicitamente acaba-se esbarrando nessa dimensão. Ao apontar estes momentos podemos fornecer uma outra inflexão à crítica: não é que os manuais não tratam do sujeito, mas, ao pretender excluí-lo, ele retorna com um resto ineliminável.

b) A segunda direção para uma crítica à psiquiatria biológica é demonstrar que o campo de problemas da clínica do psíquico, por incluir inevitavelmente o sujeito, deve pautar o diagnóstico por métodos eminentemente clínicos (e não estatísticos), assim como deve incluir procedimentos que sejam da ordem da fala. A razão desta segunda dimensão é revelar a estrutura de um campo de ação e apontar para as consequências de usar procedimentos estranhos a este campo de ação.

Em outras palavras, demonstrar que se trata de uma questão que parte de princípios éticos, mesmo que no discurso manifesto tenhamos afirmações de que se trata de uma questão científica, ou como é colocado no próprio texto do DSM-IV-TR baseado em "evidências empíricas" (APA, 2004: 22).

Nós nos dedicaremos aqui, por uma questão de delimitação do artigo, à segunda dimensão de crítica. Principalmente no que tange às consequências de tais considerações. Utilizaremos a psicose como um caso de como é considerada a psicopatologia do DSM-IV-TR, pois, se temos uma dimensão que foi mitigada na psicopatologia pelos manuais estatísticos e cujo tratamento acabou sendo empurrado para procedimentos farmacológicos, é a questão da psicose.

Acreditamos que seja um caso emblemático, pois, ao contrário da neurose, que sofreu um processo de expurgo desses manuais estatísticos, a psicose sofreu um processo de diluição, a ponto de ser tomada como um caso restrito de um conjunto maior de transtornos denominados de esquizofrenia.

O modo como esse termo é utilizado demonstra como a perspectiva descritivista leva a uma abordagem estritamente fenomenica e, por isso mesmo, insuficiente para a clínica, por não trazer nenhum saber e nenhum ordenamento explicativo que não seja da ordem da frequência de ocorrência destes fenômenos. O privilégio do fenômeno tem como consequência a multiplicação indevida de entidades, ignorando o princípio unificador que poderia demonstrar sua lógica. A perda aqui é dupla: quanto à inteligibilidade teórica e quanto ao manejo ampliado de uma situação clínica.

 

4. A psicose no DSM-IV-TR

A questão da psicose é importante para estabelecer esse diálogo da psicanálise com o DSM-IV-TR por duas razões: a primeira é que o seu diagnóstico é um problema clássico na psicopatologia ao qual o discurso psicanalítico não deixou de trazer sua contribuição, como podemos notar na questão do autismo e dos fenômenos de linguagem.

A segunda razão é que a questão da psicose revela um diagnóstico diferencial que envolve, diretamente, a questão de uma estrutura subjetiva. A estrutura é o que permite ordenar os diversos fenômenos, de tal modo que não precisemos entrar em uma multiplicação de transtornos. Desconsiderar este aspecto estrutural nos leva, hoje, a uma situação diagnóstica complicada.

Como demonstram Eduardo Rocha e Fernando Tenório (2004), hoje temos uma exacerbação de diagnóstico de esquizofrenia, devido muitas vezes a se considerar disruptivo qualquer evento que contrarie uma programação. A consequência é uma prática diagnóstica equivocada que leva a tratamentos desastrosos. Prática equivocada não somente pelo mau uso do manual, mas principalmente por não recorrer à elaboração de um saber que ordene estes fenômenos.

O que diz o DSM-IV-TR em relação às psicoses? O mesmo que em relação a outros transtornos: um uso que privilegia a descrição em torno da presença ou ausência de alguns fenômenos, bem como sua frequência em vez de avaliar qual seria a causa desses fenômenos e como eles se estruturam. Vejamos as definições do DSM-IV. Segundo o manual, existiria a possibilidade de episódios psicóticos em diversos tipos de transtorno (por exemplo, na demência do tipo Alzheimer ou nos transtornos de humor com episódios depressivos), mas apenas os transtornos da seção "Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos" tem o sintoma psicótico como sua característica distintiva.

Na tentativa de definir a psicose, o manual sumariza tres usos que a noção teria recebido historicamente, indo das acepções mais estritas às mais amplas. Na mais estrita, o termo psicose especificaria a presença de delírios e alucinações proeminentes, sendo que as alucinações se dariam sem insight sobre seu caráter anormal. O sentido que chamaremos de intermediário incluiria, além das experiências citadas acima, também aquelas em que o indivíduo tem um insight sobre o caráter patológico das alucinações. A ampla envolve não somente delírios e alucinações, mas outros sintomas positivos da esquizofrenia, como o discurso desorganizado e a catatonia.

No primeiro caso teríamos o que eles chamam de Transtorno Psicótico Devido à Condição Médica Geral e Transtorno Psicótico Induzido por Uso de Substâncias; no segundo caso, teríamos os Transtornos Delirantes e os Transtornos Psicóticos Induzidos e psicose seria quase sinônimo de delirante; e no terceiro caso teríamos a Esquizofrenia, os Transtornos Esquizofreniformes, os Transtornos Esquizoafetivos e os Transtornos Psicóticos Breves (APA, 2004: 303).

Frente a essas definições, devemos então avaliar como os DSM's definem o delírio e alucinação, uma vez que sua presença ou ausência é que define um transtorno psicótico ou não, estando presentes nas tres categorias acima citadas. Encontramos as definições no glossário ao final do Manual, uma vez que o DSM não tem uma parte semiológica. Lá, alucinação é definida como "uma percepção sensorial que apresenta a sensação de realidade de uma verdadeira percepção mas que ocorre sem a estimulação externa do órgão sensorial relevante" (APA, 2004: 766).

Já o delírio é, por sua vez, tomado como uma "falsa crença baseada em uma inferência incorreta acerca da realidade externa, firmemente mantida, apesar do que quase todas as outras pessoas acreditam e apesar de provas ou evidências incontestes em contrário. A crença não é habitualmente aceita por outros membros da cultura ou subcultura" (APA, 2004: 767).

 

5. Insuficiência das definições

Ora, estas definições, que são capitais para o uso que se faz do termo psicose nos DSM's, não deixam de ser clássicas. são tomados de empréstimo de Kraepelin, de Henri Ey entre outros. Como tal, elas tem o inconveniente de se ater a descrições fenomenicas a partir de um realismo ingenuo em que a realidade é tomada como uma evidência. Neste aspecto, vemos que os critérios, mesmo colocando em pauta uma metodologia estatística, ainda permanecem os mesmos para identificar uma psicose: a perda de contato com a realidade e a sociabilidade prejudicada.

Examinemos a ideia de que a alucinação seria a percepção de um objeto que não existe na realidade externa. Não se trata de alegar que tal concepção é falsa; ela é antes de mais nada extremamente limitada e deixa escapar a questão essencial em jogo na psicose. Pois o ponto fundamental na alucinação não é ser ela um erro perceptual; se ela fosse só um erro, poderia ser perfeitamente compensada através de um julgamento corretivo. Por exemplo, quando sou enganado pelos meus sentidos, posso retificar o engano por um novo julgamento, que diz "Isso que vejo não faz parte da realidade". Já o que caracteriza a alucinação na estrutura psicótica é justamente sua resistência em se deixar negar por qualquer juízo ulterior.

A questão verdadeira seria: o que impede o psicótico de dialetizar a alucinação? Tal resistência é correlata à certeza que o sujeito tem de que é ele o destinatário da alucinação. Daí vem também a inquietação e o estado de extrema angústia em que ele é colocado, na medida em que tem certeza que tais fenômenos se endereçam a ele inexoravelmente. Conforme Lacan (1946/1998: 166; grifos nossos),

quanto à realidade que o sujeito confere a esses fenômenos, um caráter muito mais decisivo do que a sensorialidade que ele experimenta neles ou a crença que lhes atribui é que todos esses fenômenos - alucinações, interpretações, intuições -, e não importa com que alheamento ou estranheza sejam vividos por ele, todos o visam pessoalmente: eles o desdobram, respondem-lhe, fazem eco e leem nele, assim como ele os identifica, interroga, provoca e decifra.

Examinemos agora a ideia do delírio como julgamento falso; novamente, para a Psicanálise o acento não deve ser colocado sobre a adequação ou não desse juízo. Quando um psicótico delira que é rei, não se trata de negar que há aí um erro, mas de assinalar como o sujeito está impedido de reconhecer tais pensamentos como seus, ou seja, de subjetivá-los como o faria um neurótico. Lembremos que para um neurótico está aberta a possibilidade de subjetivação, em que ele se pergunta: "Será que sou mesmo um rei ou apenas desejo muito ser rei, sendo no fundo um impostor?". Já na psicose esta pergunta está vedada.

Tal raciocínio permite teorizar inclusive os casos excepcionais em que o delírio pode retratar corretamente a realidade, sem deixar por isso de ser um delírio. É o caso do rei Luís II da Baviera, a propósito de quem Lacan (1946/1998: 171) fará o seguinte comentário: "convém assinalar que, se um homem que se acredita rei é louco, não menos o é um rei que se acredita rei". O acreditar-se rei caracteriza a psicose quando o sujeito tem certeza de sua posição, uma certeza que não pode ser mediatizada pela dúvida ou colocada em questão (Alvarez, 2007).

Compreende-se porque Freud afirmou que na psicose o que foi abolido de dentro retorna de fora. O que foi excluído é o sujeito como aquele que pode se reconhecer em suas produções psíquicas. Ele tomará suas produções como provenientes de fora, ou seja, do Outro. No entanto, a marca desse interno que foi abolido será reencontrada no fato de o sujeito ser o alvo, o destinatário preferencial visado por todos os fenômenos que o assediam.

Ressalte-se que o DSM passa ao largo dessa sofisticada discussão, preferindo aderir a um realismo ingenuo. Realismo que não deixa de ser uma posição teórica, o que demonstra que o a-teorismo não é tão a-teórico assim. Como consequência, um diagnóstico que utilize como critério somente a frequência de ocorrência dos fenômenos resulta num empobrecimento da clínica. Ao passo que, para a Psicanálise, a pergunta principal que um clínico deveria se colocar não é a anotação da frequência dos fenômenos, mas interrogar também o porque de estes fenômenos serem frequentes.

A falta de contexto clínico leva a uma confusão na elaboração do diagnóstico. Se, para os promotores dos DSM's, a confusão entre os clínicos seria proveniente de utilizarem nomenclaturas diferentes, podemos dizer que para nós a confusão maior reside em outro lugar: o uso exacerbado de definições fenomenicas conduz à impossibilidade de diferenciar uma psicose do que ela não é.

Alguns casos ilustram a dificuldade. Pois, se tomarmos ao pé da letra os critérios do DSM, como poderíamos classificar, por exemplo, as conversões histéricas, os pensamentos e atos compulsivos, e os comportamentos fóbicos? Eles não prejudicam o convívio social? Se levarmos a sério a questão de que na esquizofrenia temos discurso desorganizado, também não podemos encontrar em alguns transtornos não-psicóticos esta desorganização discursiva? As ideias fóbicas também não seriam inaceitáveis para o convívio social, podendo ser consideradas como "falsas crenças"? A anoréxica que diz estar gorda não poderia ser tomada como alguém que tem uma percepção alucinada, sem "estimulação externa do órgão sensorial" relevante?

É evidente que os psiquiatras raramente confundem os diagnósticos acima citados. Isso demonstra que é a sua sensibilidade clínica o que os previne de cometer erros grosseiros e não os princípios ordenadores desse manual. Por outro lado, há casos em que não se consegue evitar confusões diagnósticas importantes quando o clínico se guia pelo manual. É o que veremos na próxima seção.

 

6. Questões clínicas

A crítica clínica aqui tomará dois sentidos. Em primeiro lugar, apontar para as consequências de um tratamento considerar um caso somente a partir das descrições do fenômeno ou a partir da fala do sujeito. É um caso em que, em termos descritivos, os partidários do DSM oscilam entre diversos diagnósticos, inclusive de psicose. Daí nosso interesse. Em segundo lugar, trazer um caso clássico em que os próprios psiquiatras não confundiam um diagnóstico de histeria com o de psicose, risco que podemos correr caso aplicássemos a ele os parâmetros descritivistas do DSM-IV-TR.

Comecemos com o caso relatado por Ana Cristina Figueiredo (Figueiredo & Tenório, 2002), de uma mulher internada com estupor. A paciente havia parado de se alimentar, urinar, evacuar e falar, sem apresentar escuta de vozes, nem humor exaltado e muito menos mania de grandeza. A paciente apresenta esses episódios por vinte anos. Resume a história de sua doença a esse quadro e não formula queixa. Vejamos então como o caso é diagnosticado pelos psiquiatras:

O diagnóstico nosológico foi estabelecido segundo os dois sistemas internacionais de classificação - a Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde, 10a revisão (CID 10); e o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 4a edição (DSM-IV). Nos termos da CID 10, o diagnóstico nosológico foi de "transtorno depressivo recorrente, episódio atual grave com sintomas psicóticos". Nos termos da DSM-IV, "transtorno depressivo maior recorrente, severo, sem sintomas psicóticos, crônico, com características catatônicas". Como diagnóstico diferencial, isto é, como segunda hipótese diagnóstica, menos provável, mas da qual o quadro ainda não fora completamente diferenciado, foi indicada esquizofrenia catatônica (Figueiredo & Tenório, 2002: 32).

Ou seja, temos aí uma confusão diagnóstica entre síndromes. No que tange à questão da psicose, vemos que ora o mesmo quadro pode ser definido "com sintomas psicóticos" e "sem sintomas psicóticos". Não se trata de uma dúvida do psiquiatra em questão, mas de uma consequência natural de uma lógica que nada quer saber de como esses sintomas se ordenam, preocupando-se apenas em anotar sua presença ou ausência.

Quando se dá oportunidade ao sujeito de falar, aparecem dados que não apareceriam somente pela descrição fenomênica. Alguns elementos que surgem:

Não há na fala da paciente à entrevista algo que é fundamental na melancolia, a autoacusação. A dor, tão enfatizada por Freud em "Luto e melancolia", também não aparece intensamente. Ao contrário, ela diz que sua vida é boa quando não está doente e que se não fosse a doença ela seria feliz. A doença, por sua vez, não mostra a centralidade do "eu" que se observa na melancolia. Ela vem de fora, "de repente". Também não se observam, na fala da paciente, os distúrbios de linguagem que caracterizam a psicose (neologismos, frases interrompidas, vazios de significação...), bem como alucinações ou delírios que traduzam a morte do sujeito. Do ponto de vista da psicose, resta interrogar a posição frente ao Outro, o que podemos fazer no desenvolvimento da hipótese de uma neurose histérica (Figueiredo & Tenório, 2002:36).

Frente a esse quadro estrutural que se destaca a partir de uma entrevista clínicaaparecem elementos claramente histéricos, derivando para um trabalho em que a paciente, mesmo quando internada novamente, não precisou mais dos eletrochoques para sair do estupor e sim de que pudesse produzir algo a partir de sua fala dentro das condições de sua estrutura clínica.

Essa é uma das razões pelas quais as noções de estrutura clínica e de sujeito não podem ficar de lado em um diagnóstico. Pois, ao ficarem de lado, as consequências podem ser consideradas danosas. Afinal, a descrição de fenômenos pode levar a um diagnóstico equivocado, ao negligênciar que delírios e alucinações não são fenômenos privativos e muito menos definidores da psicose, residindo a diferença no modo como eles são ordenados. O erro diagnóstico está ligado também a uma concepção equivocada de tratamento, já que o descritivismo está amparado numa perspectiva biologizante. O resultado é a aplicação de medicamentos em situações que necessitariam de uma dimensão de elaboração subjetiva.

Como demonstra Maleval (2000), em muitos casos de delirantes o que a medicação faz é somente impedir um processo, situando o sujeito no mesmo lugar de fragmentação e introduzindo aí um círculo vicioso. Mas se não quisermos falar dos psicóticos delirantes, basta lembrar dos diversos casos de histeria tratados como esquizofrenia que poderiam ter uma destinação melhor quando abordados pela via da fala. Tal pode ser exemplificado por um caso clinico de Pierre Janet (Maleval, 1991), que submete à hipnose um paciente que afirma estar em possessão demoníaca. Conforme veremos, Janet introduz a consideração do sujeito - importa notar que Janet nem era psicanalista...

Janet acompanhou o caso de Achilles, em que o sujeito dizia-se possuído pelo demônio e urrava blasfemias para, logo em seguida, com seu tom de voz habitual e contrito, dizer que era o demônio que o forçava a blasfemar. O tom de voz mudava novamente, para indicar a presença do demônio que o contradizia. É um exemplo nítido de dissociação que muitos colocariam no campo da esquizofrenia - Bleuler certamente o faria. É uma dissociação delirante, não compartilhada por membros de sua cultura ou subcultura (afinal,ele não é tratado por um exorcista e sim por um médico). Ela, no entanto, desaparece por força da sugestão hipnótica que revelou, sem precisar da psicanálise, a natureza sexual de um trauma que originou todos estes fenômenos: uma falha que demandava um perdão da esposa de Achilles.

O importante nos casos de possessão é que os autores clássicos sempre o tomaram como casos de histeria. Mas se hoje tomarmos a sério os índices dos DSM's e os aplicarmos às descrições feitas por Charcot e citadas por Maleval (1991), veremos que seriam considerados como esquizofrenia: "Os fenômenos somáticos tais como grandes ataques, anestesia sensitiva e sensorial, transtornos vasomotores como vômitos de sangue e estigmas, disputam com os fenômenos mais particularmente psíquicos como as alucinações visuais e auditivas, etc" (Maleval, 1991: 288).

Desse modo, acreditamos ter efetuado uma crítica de modo a defender a questão do sujeito que não fique somente na dimensão acusatória. Em um outro momento iremos avançar e demonstrar como estas definições fenomênicas acabam por levar a um exagero nos diagnósticos de esquizofrenia e como a psicanálise, ao retomar os temas da psicopatologia clássica, pode renovar as suas finas observações como acréscimo da dimensão subjetiva.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
Roberto Calazans
E-mail: roberto.calazans@gmail.com

Rosane Zétola Lustoza
E-mail: rosanelustoza@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 02 de janeiro de 2014
Aprovado para publicação em: 05 de março de 2014

 

 

*Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFSJ. Professor Associado 2 do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSJ. Bolsista de Produtividade CNPq nível 2.
**Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná).