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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro July 2014

 

ARTIGOS

 

A psicanálise é um trabalho? Uma profissão impossível e o conceito marxista de trabalho

 

Psychoanalysis as labour: an impossible profession and the Marxist conception of labor

 

 

Gabriel Tupinambá*

Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) - Brasil
European Graduate School (EGS) - Suíça

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo busca iniciar uma reflexão quanto ao estatuto da profissão de psicanalista e sua difícil relação com o Estado a partir da teoria marxista do valor-trabalho. Num exercício filosófico que busca evitar o tratamento analógico entre o pensamento psicanalítico e o pensamento marxista, encontramos um tipo diferente de solidariedade entre os dois na medida em que a concepção de Marx da dualidade contraditória do trabalho aponta um novo modo de pensar a posição do analista e essa, por sua vez, nos permite problematizar e levar à frente algumas determinações obscuras da diferença entre trabalho abstrato e concreto.

Palavras-chave: desejo de analista; demanda; trabalho abstrato; modalidades aristotélicas.


ABSTRACT

The present paper seeks to begin an investigation concerning the statute of the profession of the psychoanalyst and of its difficult relation to the State, a study undertaken from the perspective of the Marxist theory of labor-value. Our philosophical exercise strives to avoid the establishment of analogical relations between these two fields of thought, and points to a rather different sort of solidarity between them, insofar as the Marxist conception of a contradictory labor form allows us to think the position of the analyst from a new perspective and psychoanalysis, on the other hand, allows us to problematize and develop certain obscure determinations of the concept of abstract labour.

Keywords: desire of the analyst; demand; abstract labor; Aristotelian modalities.


 

Gostaria de partir da seguinte evidência: o psiquiatra, o psicólogo e o psicanalista trabalham. Primeiramente, isso significa que tanto o psiquiatra, quanto o psicólogo, quanto o psicanalista, são pagos para realizar uma certa atividade cujos respectivos produtos interessam a um terceiro. Decorrem daí as duas perguntas que iremos investigar nesta apresentação: (1) tanto o psicólogo quanto o psiquiatra quanto o psicanalista são pagos – isso equivale a dizer que os três trabalhos são profissões? (2) esses três trabalhos são atividades prestadas a terceiros – isso equivale a dizer que a psicanálise é um serviço?

O trabalho pode ser definido como uma atividade cujo produto tem uma utilidade ou uso para além da satisfação em exercê-la. Seja direta ou indiretamente, os frutos do trabalho têm utilidade para alguém. A profissão, por outro lado, é definida não só pela referência ao uso e à função econômica, mas a certo critério regulador, uma medida legal, que delimita de maneira precisa o escopo da atuação de um dado trabalhador. É comum encontrarmos manuais de economia que diferenciam ofício e profissão com base no nível de instrução envolvido em cada uma dessas diferentes atividades, mas, mais fundamentalmente, o que a instrução determina aqui é a profundidade da influência da regulamentação prévia de um trabalho na própria formação de uma dada atividade. Um médico possui um maior grau de instrução que um carpinteiro, mas o que qualifica o médico não é simplesmente o tempo de formação ou estudo, mas o tempo de formação em instituições capazes de verificar padrões de sua capacitação. Ou seja, se o trabalho é uma categoria determinada pelo valor de uso e de troca de sua produção, a profissão é uma categoria que já diz respeito à inserção do trabalho num sistema normativo de práticas produtivas. Encontramos aqui a distinção entre ofícios e profissões, enquanto que, no caso do trabalho, fazemos uma distinção entre atividades produtivas e improdutivas. Nossa primeira questão é, portanto, a seguinte: tanto a psicologia quanto a psiquiatria admitem processos de formação bem regulamentados e de etapas verificáveis – trata-se, de fato, de profissões. E a psicanálise? É uma profissão ou um ofício?

O segundo ponto de nossa investigação, intimamente articulado ao primeiro, concerne ao problema do produto ou da utilidade da psicanálise. Tanto no caso da psiquiatria quando da psicologia, parece-nos pouco problemático afirmar: uma pessoa procura os serviços de um psiquiatra ou um psicólogo pois necessita, por uma razão ou outra, de algo que esses profissionais oferecem. De forma bastante geral, agrupamos esses trabalhos sob o campo de saúde mental porque é isso que buscamos quando procuramos os serviços de um psicólogo ou de um psiquiatra. No entanto, no caso da psicanálise, encontramos um curioso obstáculo quando tentamos enquadrá-la na categoria de um serviço: o que o psicanalista oferece àquele que traz um sofrimento para o diva? Como vimos, o sintoma na psicanálise não é somente o índice de um problema, mas também aquilo que torna legível o caminho singular de um sujeito, seu modo de habitar uma certa franja de indeterminação.

não é à toa, então, que, em linhas gerais, consideramos que a análise propriamente dita começa justamente no momento em que o analisando deixa de manifestar interesse exclusivamente em que o sintoma cesse, mas passa a se interessar também por aquilo que, naquela formação em que não se reconhece, parece indicar outra coisa, algo oculto ou enigmático a seu respeito. Trata-se assim de uma estranha inversão: quando procuramos uma análise, supomos que a utilidade do trabalho do psicanalista seria nos livrar da inutilidade do sintoma, mas, num segundo momento, perdemos nossa principal referência quanto ao que constitui o seu trabalho – isto é, nossa demanda de um serviço específico – na mesma medida em que começamos a nos indagar quanto ao uso que o sintoma tem para nós. E passamos, nós mesmos, a elaborar – isto é, a trabalhar. Ao desafio da regulamentação da profissão de psicanalista precisamos adicionar, assim, o problema do produto do trabalho do psicanalista, que contraria o que entendemos pela prestação de um serviço.

Pareceria impossível, portanto, considerarmos a psicanálise uma profissão. Os dois impasses que apontamos até aqui – o problema da regulamentação e o problema da utilidade ou do serviço – dificultam sua inscrição nos mecanismos administrativos mais gerais da sociedade, e, infelizmente, essa resistência não tem sido exatamente problematizada por nós psicanalistas, que parecemos estranhamente contentes com esse lugar ambíguo que ocupamos no campo do trabalho. Sem entrar em detalhes, basta dizer que, nos casos mais radicais, esse lugar ambíguo é evocado por alguns como justificativa para a desresponsabilização ou mesmo inadimplência frente aos mecanismos mais básicos da regulamentação das atividades produtivas – ou, pior ainda, como prova da dimensão política da psicanálise. Mas é realmente verdade que não podemos conceitualizar propriamente o trabalho do psicanalista?

O que todo verdadeiro impasse tem de melhor é nos convidar tanto a analisar sua obscuridade, seus paradoxos e limites, quanto a reconsiderarmos o aparato conceitual com o qual nos aproximamos dele. Assim, antes de aceitarmos que a psicanálise não atenderia exatamente os critérios do que consideramos um trabalho produtivo ou uma profissão, é extremamente frutífero questionarmos também nossa concepção de trabalho enquanto tal, dado que existem psicanalistas e dado que esses exercem essa atividade em troca de dinheiro.

 

A concepção marxista de trabalho

Iremos focar daqui em diante num tema aparentemente alheio à psicanálise ou ao campo da saúde mental – e também um tanto especulativo. Desculpo-me de antemão pelo circunlóquio que, apesar de necessário, requer que nos voltemos para um segundo para Marx e Aristóteles. não satisfeito, esse desvio pela filosofia e pela teoria do valor-trabalho não deixará de levantar suspeitas até para aqueles que possuem alguma intimidade com os dois pensadores, uma vez que pretendo defender uma dupla tese: (1) a categoria de trabalho tal como desenvolvida no Capital de Marx dá conta da especificidade da psicanálise – o que tornaria a dificuldade de considerá-la um trabalho dentre outros apenas um problema nosso, atual, e não uma condição estrutural dessa prática – e (2) ao confrontarmos o trabalho do psicanalista com as categorias de Marx, podemos também esclarecer alguns impasses do conceito marxista de trabalho, principalmente no que concerne à noção de "trabalho abstrato". Dadas as restrições de espaço, serei bastante esquemático em minhas colocações e tentarei apenas esclarecer uma possível orientação para um estudo mais aprofundado dessa questão.

No famoso primeiro capítulo do Capital, Marx parte da noção de mercadoria – isto é, dos objetos de troca e consumo no nosso sistema político-econômico – para então construir o conceito de trabalho que é pressuposto por seu funcionamento (Marx, 1867/2013: 113). Ou seja, sua pergunta inicial é algo como "o que tem de ser o trabalho se a mercadoria existe?". Aqui entram em jogo as duas categorias desenvolvidas pela teoria econômica clássica: o valor de uso e o valor de troca. Uma mercadoria é uma coisa que tem utilidade, isto é, que pode ser consumida de acordo com as suas propriedades concretas, e também algo que pode ser trocado por outras mercadorias. Um lápis, por exemplo, pode ser utilizado de uma maneira específica por conta de seu formato, de seu material, etc, e pode também ser trocado por outras coisas, por uma borracha ou por dinheiro. Marx denomina de trabalho concreto aquela dimensão da atividade humana responsável pela transformação direta e qualitativa de um dado material inútil em algo útil, dotado de propriedades determinadas adequadas a um determinado consumo. Mas nem tudo o que tem valor de uso, e é fruto de um trabalho concreto, qualitativamente definido, é uma mercadoria. A mercadoria não só tem que ter um valor de uso, mas um valor de uso social, um valor de uso para outros. E se ela tem valor de uso para outros, a mercadoria tem então um valor de troca.

É aqui que reside todo o mistério da mercadoria – e, por conseguinte, o mistério da concepção de trabalho no Capital: para se tornar uma mercadoria, uma utilidade específica, de propriedades não quaisquer, tem que ser passível de troca com um outro consumível, de propriedades diferentes da primeira. A troca é sempre uma troca entre elementos qualitativamente diferentes. Uma dada quantidade da mercadoria "a" é trocada por uma outra quantidade da mercadoria "b". Mas qual é o critério, a dimensão em comum que permite que mercadorias qualitativamente heterogêneas sejam colocadas em relações de equivalência quantitativa? O que um lápis tem em comum com uma consulta médica que faz com que ambos possam a priori ser trocados entre si ou pelo intermédio do dinheiro? Aqui é que se dividem as grandes correntes na economia: o que permite essa equivalência entre valores de uso absolutamente heterogêneos?

Sem entrarmos aqui na questão das diferentes escolas de pensamento, podemos por em contraste uma resposta baseada no senso comum com a resposta dada por Marx. Como podemos comparar de maneira puramente quantitativa produtos ou processos que não tem nada de concreto em comum – "x" da mercadoria "a" por "y" da mercadoria "b"? Um caminho, ao qual recorremos de maneira quase espontânea, é pensar que o que permite essa equiparação seria o fato de que os homens têm vontades diferentes e portanto dão mais valor a isso do que àquilo. A troca seria, assim, uma convenção arbitrária baseada no fato de que cada vontade abstrai de um dado produto a expectativa de satisfação que tirará dele e de que, enquanto os produtos são qualitativamente diferentes, as diferentes expectativas de satisfação não o são; portanto podem ser comparadas (Pinho & Vasconcellos, 1998: 81). Se cada expectativa de utilidade e satisfação corresponde a uma demanda específica – como, por exemplo, a demanda de melhorar de saúde –, então diferentes demandas podem entrar em relação fazendo equivaler por meio delas produtos diferentes. A demanda por saúde seria, subjetivamente, homogênea à demanda por um novo lápis, ou pelo prestígio que decorre de usar certas roupas ou frequentar certos restaurantes.

Ora, Marx não está interessado no papel que tem a psicologia do consumidor para a consistência intersubjetiva do processo de troca – sua pergunta, como vimos, é "o que é o trabalho se a mercadoria existe?". A pergunta que está em jogo aqui, então, seria algo como "o que tem de ser o trabalho se os produtos qualitativamente diferentes de trabalhos qualitativamente distintos podem ser trocados entre si através de equivalências puramente quantitativas e homogêneas?". E é aqui que entra a noção de trabalho abstrato – não o trabalho na medida em que é um trabalho específico, que produz uma mercadoria específica, isto é, o trabalho concreto, mas o trabalho como aquilo que todos os produtos do trabalho têm em comum, o próprio fato de serem fruto do dispêndio de força de trabalho humana. Essa é a resposta de Marx para a questão que nos colocamos anteriormente, e que o fascina profundamente. As mercadorias podem ser trocadas entre si, apesar de serem totalmente heterogêneas enquanto valores de uso, não por uma convenção intersubjetiva que faria equivaler nossas vontades e apetites, mas porque toda mercadoria é fruto de dispêndio de força de trabalho – e esse fato do trabalho faz parte da forma da mercadoria, é o que lhe confere homogeneidade (Marx, 1867/2013: 116).

A essa altura, a pergunta fundamental é, evidentemente: o que isso tem a ver com a psicanálise? É importante ficar claro o que nós estamos buscando. Citamos anteriormente duas respostas possíveis para o problema da homogeneidade do valor de troca: podemos explicá-la com base na satisfação de demandas – supondo essas de igual qualidade – ou podemos, como Marx, supor que o trabalho tem uma função enquanto trabalho concreto e outra enquanto "geleia de trabalho humano indiferenciado" – o que significa considerar que o fato do trabalho de alguma maneira faz parte da forma da mercadoria. A essas duas posições correspondem duas maneiras possíveis de investigar o trabalho do psicanalista. A primeira defende que o trabalho é definido pela demanda a qual atende – ou seja, o psicanalista é aquele que responde à demanda por uma psicanálise. Mas, como já discutimos, uma das características curiosas da psicanálise é que o trabalho começa justamente quando não sabemos mais o que queremos dele: a clínica suspende a cura como finalidade para poder de fato produzir efeitos, o sintoma nos traz ao diva pelo sofrimento que nos causa, mas nos mantém ali pelo modo como desvela uma certa utilidade sub-reptícia. Nesse caso, a que demanda responderia a oferta do psicanalista?

É claro que chegamos com uma demanda – há uma expectativa de satisfação, e poderíamos até considerá-la homogênea àquela que nos leva a comprar um lápis novo ou a consultarmos um médico ou advogado. Mas o que recebemos pelo dinheiro que pagamos ao analista não é o que fomos buscar lá – descobrimos o que queremos do analista depois que já estamos em análise. Jacques Lacan resume esse ponto paradoxal em um rápido comentário que faz em seu texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder": "Consegui, em suma, aquilo que se gostaria, no campo do comércio comum, de poder realizar com a mesma facilidade: com a oferta, criei a demanda" (Lacan, 1966/1998: 623).

Do ponto de vista do campo do comércio comum, organizado pela ideia de que a função que equaciona o preço de produtos heterogêneos é a expectativa de satisfação que tiramos deles, a psicanálise realmente aparece como um paradoxo: há oferta de psicanalistas, mas a demanda a que essa oferta corresponde é produzida em análise. Por essa perspectiva, é quase indistinguível o mecanismo que valida o serviço do psicanalista daquele que justifica o preço de um novo celular, cujo apelo deriva de suas inovadoras funções – novidades que não sabíamos que precisávamos até o novo aparelho nos ser ofertado.

Por outro lado, a concepção marxista da forma de valor parte da hipótese metaeconômica de que o fato do trabalho é o que consolida a homogeneidade do campo das trocas – o que significa, como veremos a seguir, que o produto do trabalho carrega dois tipos de "marcas": é marcado pelas transformações qualitativas que caracterizam aquele trabalho específico – a marca concreta do trabalho concreto – e pela marca bastante enigmática deixada por aquilo que todo trabalho concreto tem em comum, a marca, digamos, abstrata, que torna legível que toda mercadoria é fruto de algum trabalho, qualquer que esse seja concretamente.

A teoria do valor baseada na relação entre demanda e oferta só precisa da primeira dimensão, a concreta: uma demanda é sempre uma expectativa de satisfação qualificada, e assim é também a oferta que corresponde a ela. É justamente a falta dessa marca que torna problemático pensarmos a psicanálise como um serviço, já que mesmo que tenhamos uma expectativa específica quanto ao que esperar de uma análise, essa será, por definição, frustrada, dado que a utilidade da psicanálise para o analisando é algo que é construído pelo próprio processo de análise. Mas se esse é o limite da teoria "subjetivista" da troca, é aqui que a concepção de trabalho de Marx pode ser útil para nós, pois permite que ainda nos questionemos quanto a essa outra marca, puramente formal, que dá aos diferentes trabalhos sua comensurabilidade. A psicanálise não carrega a marca de um trabalho concreto – não responde a nenhuma demanda concreta – mas será que ela carrega a marca de ser "um trabalho humano em geral" (Marx, 1867/2013: 116-117)?

 

Quatro modalidades aristotélicas

Nossa tarefa é a seguinte: primeiro, entender de que maneira o trabalho abstrato marca a mercadoria; segundo, investigar se encontramos essa marca no trabalho do psicanalista; e, terceiro, descobrir o que isso nos diz sobre o desafio de pensar o lugar da psicanálise na sociedade civil e no Estado.

Por mais especulativo que possa parecer, acredito que o melhor caminho para procedermos em nossa análise é através de uma referência a Aristóteles, mais precisamente, a uma esquematização de seu tratamento das quatro categorias modais: necessidade, possibilidade, impossibilidade e contingência. Podemos entender cada uma dessas categorias como nomeando uma articulação precisa entre ato e potência – e, como vimos, o trabalho abstrato, o fato do trabalho em geral, é uma estranha potência genérica, uma potência de trabalho indistinta, não qualificada. Vamos tentar descrever rapidamente cada uma dessas quatro modalidades, cruzando a apresentação da distinção entre potência e ato proposta na Metafísica (Aristóteles, 2002) com aquela das modalidades proposta no Órganon (Aristóteles, 2005).

Para Aristóteles, "a potência preexiste ao ato como condição de sua atualidade, e o ato preexiste à potência como revelador" (Aubenque, 2012: 410), isto é, são duas categorias intrinsecamente relacionadas, de modo que uma só faz sentido se pensada em sua articulação com a outra. Dessa maneira, quando dizemos que algo é contingente dizemos não só que acontece sem que soubéssemos ser possível, mas que só depois que acontece é que descobrimos sua possibilidade. Uma catástrofe, por exemplo, é contingente na medida em que sua atualidade revela a potência de seu acontecimento: depois que ocorre, descobrimos "ter sido" possível a catástrofe – trata-se de uma atualidade que revela sua potência específica, que, além de acontecer, torna legível algo sobre as condições de seu acontecimento.

O possível – que espontaneamente, e erroneamente, tenderíamos a equivaler com a potência como tal – se diferencia da contingência justamente por não depender da sua atualização para se revelar. Isso significa que o possível é uma categoria ambivalente, é aquilo que tem tanto potência de se atualizar quanto de não se atualizar – por exemplo, uma profissão: um médico é alguém que pode tanto exercer a medicina quanto não exercê-la, que pode praticar uma cirurgia e que pode não praticá-la, se quiser. É claro que outras pessoas, dada as circunstâncias corretas, podem até vir a dar um conselho médico ou mesmo, em casos extremos, podem se ver obrigadas a se envolver com um procedimento cirúrgico – mas só um médico pode tanto exercer quanto não exercer a medicina e, mesmo não exercendo essa função, permanecer um médico. A possibilidade é portanto a potência de passar à atualização assim como a potência de não se atualizar. Nesse estado suspenso, ambivalente, a possibilidade é sempre uma possibilidade determinada, a potência de alguma habilidade ou atividade específica – no exemplo das profissões, chamamos isso de capacitação ou qualificação. Assim, a um trabalho concreto, que produz uma mercadoria qualitativamente determinada, corresponde uma potência igualmente determinada – distinta da potência genérica que estamos tentando delimitar. Sigamos em frente.

Uma vez compreendida a potência ambivalente inerente àquilo que é possível, podemos entender o que é a necessidade: é aquilo que não tem potência de não passar a atualidade – aquilo que só pode se atualizar. O exemplo paradigmático aqui seria, provavelmente, uma lei da física. Seria contraditório assumirmos que as leis da física poderiam, repentinamente, cessar de serem atuais – elas não possuem a potência de não ser. Assim como é fácil confundir a possibilidade com a potência, estamos sempre tentados também a fazer a necessidade equivaler com a atualidade pura, mas nota-se logo que esse não é o caso: as leis da física também possuem potência – potência de serem atuais em lugares, mundos, que não sabemos existir ainda.

Isso nos leva para a categoria do impossível, que, espero poder agora esclarecer, não se constitui tanto como o oposto do possível, mas do necessário. Se o necessário é aquilo que nega a potência de não ser, pois sua potência é a de sempre passar à atualidade, o impossível é aquilo que nega a potência de passar à atualidade, é aquilo que só tem potência de não ser. É uma ideia muito complexa e é fácil simplesmente identificar o impossível à impotência – a negação da potência como tal: afinal, aquilo que não pode nunca se manifestar, não "poderia" nada. O próprio Aristóteles (2005: 98) parece fazê-lo em certos momentos. Mas, mais uma vez, temos que investigar tanto a dimensão da potência quanto da atualização. E o cerne da dificuldade em entender o que é o impossível é justamente o de localizar a sua atualidade.

A solução que propomos, mas que não desenvolveremos aqui, é a seguinte: a atualidade do impossível é sua suspensão paradoxal, é aquilo que é somente na medida em que não passa ao ser. Trata-se de uma contradição: o impossível é aquilo que é atual na medida em que não tem manifestação concreta, na medida em que não é atual – caso viesse a ter uma realidade, caso acontecesse, deixaria de ser o que é. Um exemplo um tanto patético, mas ilustrativo, desse paradoxo pode ser retirado da teoria modal do lógico Saul Kripke (Kripke, 1971/2012: 69), que gostava de dizer que caso viéssemos a descobrir um animal que atende todas propriedades daquilo que comumente chamamos de "unicórnio" – ou seja, um corpo de cavalo, com um chifre na testa, etc –, esse animal não seria um unicórnio justamente por faltar-lhe uma propriedade importante, aquela de ser "mítico". O próprio ser do unicórnio inclui o fato de que ele não tem realidade: caso viesse a ter, deixaria de ser o que é, seria algo como uma curiosa raça de equinos. Em suma, a contradição que caracteriza o impossível é a de ser algo cuja atualidade, ou quasi-atualidade, depende de sua suspensão da atualidade propriamente dita: caso acontecesse ou se realizasse, não só trocaria de modalidade, sendo algo mais próximo do contingente ou do possível, mas esse ser realizado deixaria de corresponder àquele ser suspenso do qual é a suposta manifestação.

Proponho ainda dois outros exemplos dessa modalidade paradoxal. Primeiro, a noção freudiana de "Outra Cena", denominada por Lacan de "fantasia". A fantasia inconsciente não é nada inefável: podemos descrevê-la, delimitar seus contornos e traços fundamentais. No entanto, qual é a famosa resposta histérica ao encontrar na realidade o objeto construído na fantasia como objeto do desejo – mesmo que essa seja exclusivamente a realidade da fala? Um convicto "não é isso". E por que "não é isso"? não porque a fantasia diria respeito a uma outra coisa, diferente daquilo que foi dito ou do que aconteceu, mas porque o próprio fato de a fantasia ter ganho atualidade contraria uma propriedade especial sua, que é não ter atualização. Uma fantasia realizada – o nome freudiano para isso é pesadelo. É justamente como potência sem atualidade que o neurótico goza da fantasia, essa é a sua atualidade. Quando consideramos esse paradoxo, vemos que não é à toa que a neurose universaliza a filosofia!

 

O trabalho do psicanalista

Voltamos, por fim, à dimensão concreta do trabalho do psicanalista. Como vimos anteriormente, o impasse que encontramos quando tentamos entender a que demanda atende o psicanalista com seu serviço é que a dimensão concreta do trabalho do psicanalista, por definição, e não por acidente, não é aquela que nos leva a demandar uma análise. O psicanalista nos presta um serviço? Parece que não, uma vez que não atende à demanda que nos traz até seu consultório. Mas essa suspensão é o trabalho do psicanalista, e portanto ele presta um serviço, sim – eis a contradição: se atendesse à demanda pela cura do sofrimento, a psicanálise não produziria efeitos de cura. Em termos da teoria do trabalho de Marx: o trabalho concreto do psicanalista é suspender toda determinação do seu trabalho concreto. Ora, o que sobra do trabalho quando suspendemos essas determinações qualitativas? Só o trabalho abstrato, aquilo que marca a inscrição de uma atividade na geleia homogênea do dispêndio de força de trabalho. Isso significaria então que o psicanalista não tem um trabalho específico? não – mas seu trabalho específico e concreto é se reduzir à marca do trabalho indistinto, como se fornecesse somente o aval de que há trabalho – no sentido estrito de trabalho concreto – na elaboração do analisando, oferecendo a chance de que este produza ele mesmo a utilidade do seu sintoma. Se posso me aventurar um pouco, diria então que o trabalho do psicanalista é devolver os meios de produção do sintoma ao sujeito.

Em todo caso, a modalidade do impossível aparece aqui claramente: o trabalho concreto do psicanalista é, de certa maneira, carregar somente a marca do trabalho abstrato. Caso essa marca fosse atualizada, "concretizada", de maneira a corresponder a uma demanda concreta e determinada, deixaria de ser o que é, pelo simples fato de que é uma das propriedades dessa marca seu estatuto modal, ser apenas a quasi-atualidade de uma potência de não passar à atualidade. Trata-se, efetivamente, de um trabalho impossível, uma atividade cuja produção ou realização entra em contradição consigo mesma, na medida em que, se pudermos traçar o caminho do produto de volta ao produtor – se o fruto de uma análise fosse um analisando marcado pelo trabalho do psicanalista, do modo que a saúde de um doente que se recupera é marcada pelo trabalho do médico, ou do modo que uma mesa nos remete ao trabalho do carpinteiro – então podemos estar certos de que não houve ali trabalho propriamente analítico.

Em "Análise finita e infinita", Freud (1937/1980) lista a psicanálise junto com outras duas profissões "impossíveis" [unmöglichen Berufe]: a arte de educar e a de governar. Relembremos essa importante passagem do texto:

Detenhamo-nos aqui por um momento para garantir ao analista que ele conta com a nossa sincera simpatia pelas exigências muito rigorosas a que tem de atender no desempenho das suas atividades. Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas "profissões impossíveis" quanto às quais se pode de antemão estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a arte de educar e de governar. não podemos evidentemente exigir que o analista seja um ser perfeito antes da sua análise, noutras palavras, que só as pessoas de alta e rara perfeição possam ingressar na candidatura a analista. Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais que necessita a sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua preparação para a futura atividade. Por razões práticas, esta análise só pode ser breve e incompleta. O importante é que se possa fazer um juízo sobre se o candidato pode ou não ser aceite para uma formação posterior. A análise didática terá alcançado o seu alvo se fornecer àquele que fica firmemente convencido da existência do inconsciente a capacidade, quando o material recalcado surge, de perceber em si mesmo coisas que de uma outra maneira seriam inacreditáveis para ele. Mas só isso não basta para a formação do analista; contamos também com que os estímulos que recebeu da sua própria análise não cessem quando esta termina, com que os processos de remodelação do ego prossigam espontaneamente no indivíduo analisado, e com que o uso de todas as experiências subsequentes nesse recém-adquirido sentido (Freud, 1937/1980: 244).

Vemos assim que Freud faz referência a duas propriedades que definiriam o trabalho do psicanalista: primeiro, trata-se de um trabalho no qual só podemos contar com "resultados insatisfatórios" [ungenügenden Erfolgs] e, segundo, é um trabalho para o qual é impossível exigir as qualificações ideais do profissional, já que também o analista precisa de análise, e essa, de acordo com a primeira propriedade, produz resultados sempre insatisfatórios. A leitura mais comum dessa passagem entende o trabalho do analista como sendo inerentemente incompleto: os seus resultados seriam insuficientes porque a psicanálise lida primariamente com o fracasso das identificações, com os atos falhos, o mal-entendido, etc. Daí decorreria a impossibilidade de regulamentar esse trabalho, dado que se trata de uma prática estruturalmente precária e frágil, orientada por aquilo que resta ou que resiste às identificações, um trabalho sobre a qual, consequentemente, nada de universal pode ser postulado.

Outra maneira de entender essa leitura do texto freudiano é traduzi-la nos termos da teoria do trabalho: poderíamos dizer que o trabalho concreto do psicanalista seria aqui inscrever ou evidenciar aquilo que faz objeção à estabilidade das identidades de um sujeito. Isto é, traduziríamos a insatisfação a que Freud faz referência como uma propriedade qualitativa do trabalho do analista – seu trabalho concreto é dar lugar ao fracasso, às falhas e lapsos. E assim, uma vez que a regulamentação de uma profissão, como vimos, diz respeito sempre ao seu aspecto qualitativo, seria portanto impossível regulamentar a psicanálise, pois seu produto determinado, aquilo que é fruto de seu trabalho concreto, é inscrever a incompletude das identificações de um sujeito, é "descompletar" aquilo que leva alguém à análise. Ora, se a regulamentação necessita que identifiquemos certos procedimentos associados ao trabalho concreto e o trabalho concreto do psicanalista é introduzir ambiguidade e falta de sentido nas identificações, então não é possível regulamentar essa prática sem perder aquilo que a define.

O problema com essa leitura bastante difundida é que ela não esclarece por que essa fragilidade colocaria a psicanálise em série com a arte de governar e de educar. não só isso, mas também não esclarece um ponto ainda mais fundamental: a psicanálise produz resultados insatisfatórios para quem? Insatisfatórios em contraste com qual expectativa de satisfação – a do analista ou a do analisando?

A única maneira de resolver esse impasse, acreditamos, é levar a sério as consequências lógicas da referência de Freud à insatisfação. Podemos antecipar que resultados da prática psicanalítica serão insatisfatórios porque, por definição, a prática analítica não responde à demanda que leva alguém ao diva – como sugerimos anteriormente, o trabalho concreto do psicanalista é uma "potência de não se atualizar", a potência de não produzir nenhuma marca concreta do seu trabalho, e portanto não responder à demanda concreta e determinada daquele que procura uma análise. Em suma, enquanto a primeira leitura sugere que o trabalho concreto do analista seria positivamente incompleto – pois inscreve a uma falta na vida e determinações de um dado sujeito – a nossa proposta é de considerar esse trabalho como inconsistente ou contraditório, ou seja, um trabalho concreto cuja única qualidade é se reduzir ao trabalho abstrato.

Essa pode parecer uma diferença sutil e sem consequências, mas é só colocarmos em jogo mais uma vez o problema da regulamentação para que se torne evidente quão diferentes são essas duas posições: a primeira, que coloca o impossível do lado da concretude do trabalho analítico, que a inscreveria na forma da incompletude ou do fracasso, sustenta que a psicanálise não deve ser regulamentada, pois isso implicaria no esfacelamento da sua especificidade, enquanto que a segunda, que localiza o impossível do lado do trabalho abstrato, daquilo que não deixa marcas concretas, aposta na ideia – totalmente contraintuitiva para um psicanalista hoje – de que a psicanálise pode sim tolerar alguma regulamentação.

Parece uma tese insustentável, mas notemos que decorre diretamente de nossa investigação até aqui: se o trabalho do psicanalista é impossível por conta do papel privilegiado do trabalho abstrato em sua prática, e se a regulamentação das práticas só pode incidir sobre sua dimensão concreta, então aquilo que pode vir a ser regulamentado na psicanálise – todas as restrições concretas que podem ser impostas a essa prática – incidirão sobre o trabalho do analisando e não do analista, que permanecerá igualmente livre para interpretar essas novas determinações. As consequências dessa conclusão nos parecem vastas e dignas de serem exploradas – ela nos sugere, no mínimo, uma outra via para pensarmos a relação da psicanálise com as questões da normatividade e de sua vocação crítica e social.

Isso nos traz, finalmente, ao outro ponto de impasse que mencionamos: a questão do que é que justificaria pensarmos a série de três profissões impossíveis proposta por Freud – um impasse que, acredito, também se esclarece quando assumimos essa nova perspectiva. O que a educação e a arte de governar têm em comum com a psicanálise, e que justifica o título de "profissões impossíveis", é precisamente o fato de que, nos três casos, o critério de cada trabalho está diretamente ligado a sua capacidade de condicionar um trabalho concreto que não é realizado pelo próprio trabalhador em questão. Aquele que governa trabalha para que outros possam exercer trabalhos específicos e serem responsáveis pelos frutos de seus respectivos trabalhos. Aquele que educa trabalha para que o estudante possa aprender por si mesmo, e não simplesmente repetir o que lhe é apresentado em sala de aula. Em suma, trata-se de profissões cujo trabalho concreto concerne menos a um produto específico – um serviço qualitativamente determinado dentre outros – e mais às condições do trabalho como tal, seja esse de fins econômicos, conceituais ou inconscientes.

Para concluir, proponho a seguinte linha de raciocínio. Vimos anteriormente que Marx divide o conceito de trabalho em trabalho concreto e abstrato. O trabalho concreto diz respeito às propriedades qualitativamente determinadas das atividades que produzem diferentes mercadorias para consumo – isso é, diz respeito à utilidade. Por outro lado, o trabalho abstrato concerne apenas ao fato do trabalho como tal, ao seu aspecto indistinto, comum e genérico – o que Marx chama de "substância social" (Marx, 1867/2013). Vimos também que um trabalho cuja especificidade é definida justamente pela suspensão de sua utilidade específica – já que não responde a uma demanda qualificada nem oferece um produto determinado – se encaixa na modalidade aristotélica do impossível, encontrando sua atualidade e realização na própria medida em que nunca se atualiza diretamente. Considerando agora a tríade proposta por Freud, podemos concluir que um trabalho cuja efetividade está inerentemente ligada ao trabalho abstrato será um trabalho fundamentalmente social – não no sentido de oferecer um produto ou serviço que atende às demandas uma comunidade ou de uma cidade, mas no sentido muito mais profundo de que presentifica algo da própria tessitura do que é comum a todos.

 

Referências bibliográficas

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Marx, K. (1867/2013). O capital, v. I. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Gabriel Tupinambá
E-mail: gabriel.tupinamba@egs.edu

Artigo recebido em: 10 de fevereiro de 2013
Aprovado para publicação em: 20 de maio de 2013

 

 

*Psicanalista; Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP); Coordenador do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII); Doutorando em Filosofia na European Graduate School (EGS).