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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.46 no.1 Rio de Janeiro July 2014

 

ARTIGOS

 

O conflito entre psicanalistas e sua ocasional falência da queda fálica

 

The conflict among psychoanalysts and its occasional failure of the phallic fall

 

 

Fuad Kyrillos Neto*

Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) - Brasil

Endereço para correspondencia

 

 


RESUMO

A partir de uma breve apresentação do percurso histórico das cisões nas associações de psicanalistas pretende-se investigar o motivo dessas rupturas. Embasados na teoria lacaniana dos discursos e no conceito de desejo do psicanalista, se faz a inferência que a segregação pode se manifestar a partir do não reconhecimento pelos pares psicanalistas. Trata-se de um reconhecimento recusado pelo outro, suposto detentor do saber psicanalítico, que se coloca em posição fálica devido à sua ascendência na árvore genealógica da psicanálise. Inferimos que a segregação pode se manifestar a partir do não reconhecimento pelos pares psicanalistas que enunciam os significantes da psicanálise com o objetivo de manter o poder em suas instituições. Propõe-se que o desejo do analista funcione como alicerce da fratria entre analistas.

Palavras-chave: associações psicanalíticas; falo; desejo do analista; teoria lacaniana dos discursos.


ABSTRACT

Departing from a brief presentation of the historical trajectory of splitting in the psychoanalyst associations, this study intends to investigate the reasons to such ruptures. Based on Lacan's theory of the discourses and on his concept of desire, we can infer that the segregation may rise from the non- recognition by the pairs of psychoanalysts. It is a recognition refused by the other, supposed holder of the psychoanalytic knowledge, who puts him/herself in a phallic position due to his/her ascendancy in the psychoanalysis genealogy. We conclude that with such refuse, the pairs of psychoanalysts enunciate the psychoanalysis significant aiming to maintain the power of their institutions. We propose that the analyst's desires work as a basis to the brotherhood among analysts.

Keywords: psychoanalyst associations; phallus; analyst's desire; Lacan's theory of the discourses.


 

 

Introdução

Desde o seu surgimento em solo brasileiro nos anos 1920, associado ao debate de questões locais tais como a identidade nacional e a política de branqueamento, os psicanalistas vivenciaram diversas cisões e rompimentos em sua trajetória de institucionalização. Não é nosso objetivo tecer um histórico detalhado de todas as cisões do movimento psicanalítico. Pretendemos, através de apresentações breves e esquemáticas de alguns desses momentos, analisar tais rupturas a partir de premissas lacanianas como desejo e formação do analista. Tais eventos ocorreram principalmente no eixo Rio-São Paulo, irradiador das práticas psicanalíticas no Brasil.

Em São Paulo, a criação de uma instituição psicanalítica destinada à formação de novos quadros fez com que os psicanalistas se aproximassem de um projeto de higiene mental e se afastassem de seus parceiros até então: os intelectuais e artistas (Mokrejs, 1993; Oliveira, 2005). Naquele momento a psicanálise em São Paulo viveu uma cisão caracterizada por um movimento institucionalista que pretendia se vincular à International Psychoanalytic Association (IPA) e um movimento cultural que utilizava a teoria psicanalítica em suas expressões artísticas. A primeira posição prevaleceu, e os artistas se afastaram da psicanálise. Assim, abriu-se espaço para estruturação dos dispositivos que tornaram possível a prática da clínica psicanalítica em São Paulo. Em 1936 chegou à cidade Adelheid Koch, que iniciaria seu projeto pioneiro de formação de analistas. Com ela, São Paulo teve sua primeira didata atuando em uma instituição em consonância com os critérios da IPA para formação de analistas: análise didática, supervisão de dois casos clínicos e oferta de cursos teórico-técnicos (Sagawa, 1994).

No Rio de Janeiro destacamos a presença de duas sociedades com seus respectivos didatas. Mark Burke chegou à cidade em 1948 e tinha o intuito de fazer avançar a institucionalização da psicanálise. Com o crescimento da demanda de psicanálise e o favorável contexto do Pós-guerra, chega ao Brasil Werner Kemper, o segundo didata a exercer suas funções naquela cidade.

Em 1951 aconteceu uma grave crise no Instituto Brasileiro de Psicanálise (IBP) que envolveu Kemper e Burke. Kemper não aceitou os questionamentos sobre a prática profissional como analista didata de sua mulher e acusou Burke de ser louco e manipulador (Perestrelo, 1987). Estaríamos apontando uma prática de abuso de autoridade e nepotismo? Contudo, a não resolução interna do conflito levou Kemper a sair do grupo e fundar o Centro de Estudos Psicanalíticos. Dessa forma, em 1951, o Rio de Janeiro sediava três grupos que buscavam reconhecimento da IPA. Um grupo composto por profissionais que fizeram formação na Argentina, o outro grupo liderado por Burke e os integrantes do grupo que faziam formação com Kemper (Facchinetti & Ponte, 2003).

Ao longo dos mais de cem anos de história da psicanálise, as crises, rupturas, cisões e recomeços se repetem. Na vertente lacaniana podemos apontar a cisão de Lacan com a IPA em 1953, a dissolução da Ecole Freudienne de Paris e, em 1998, a cisão da Escola Brasileira de Psicanálise.

Após esse brevíssimo percurso, caracterizado por conflitos e cisões, nos parece que a causa das rupturas e dissidências nem sempre reside em significativas divergências teóricas entre grupos. Sobre esse aspecto, julgamos pertinentes as considerações de Roustang (1987) que nos aponta o fascínio que o mestre causa no aprendiz de psicanalista, levando-o, em algumas ocasiões, à servidão. Essa servidão ao mestre e a transformação de discípulos em clientes estão presentes nos códigos de formação da IPA. Para manter sua posição de chefia, Freud, exemplo primeiro e paradigmático dessa história, adotou a fidelidade como principal critério para conservar a proximidade de seus discípulos consigo e aniquilou aqueles que ameaçaram sua soberania.

A partir dessas considerações, inferimos que, apesar de a maioria das rupturas em instituições de formação de analistas ser justificada por divergências teóricas ou relacionadas com a práxis, seu elevado número e a passionalidade que envolve tais situações sugerem outra perspectiva de análise. Trilharemos, assim, um percurso que envolve as vicissitudes de alguns analistas com a posição fálica como motor das divergências.

 

Rivalidades fálicas e busca de reconhecimento

Sabemos que a psicanálise não é uma profissão regulamentada. Portanto, os psicanalistas não possuem um conselho profissional, nem estão submetidos ao controle do Estado. Dessa forma, para seu exercício, a psicanálise depende de certa iniciação, já que sua formação não é realizada pelas vias do ensino formalizado pelo Estado. O futuro analista deve fazer sua análise pessoal com um analista experiente. Ou seja, ele deve formalizar sua experiência de análise teoricamente para ser capaz de conduzir uma análise.

Sobre esse aspecto, Freud (1912/1996) nos ensina que o analista deve usar todo o seu conhecimento para garantir que seu inconsciente funcione como um órgão receptor na direção do inconsciente transmissor do paciente. Assim, sua "autoanálise" deve ser utilizada para impedir que suas próprias resistências interfiram no material trazido pelo paciente, sem ser crivado por sua crítica ou seleção consciente. Todos aqueles que queiram ser analistas devem se submeter à análise, pois nas palavras de Freud "obter-se-ão, em relação a si próprio[s], impressões e convicções que em vão seriam buscadas no estudo de livro e na assistência a palestras" (Freud, 1912/1996:131).

A posição freudiana de recomendar a análise pessoal a futuros analistas nos remete ao fato de que, em psicanálise, temos uma diferença entre ensinar e transmitir. Podemos aprender teoria psicanalítica com a leitura de livros e assistindo a aulas ou cursos. Porém a transmissão da psicanálise está associada à articulação da teoria psicanalítica com a experiência do analisando. Isso certamente se encadeia com o manejo da transferência na clínica e nas instituições psicanalíticas. Assim, nas instituições psicanalíticas estamos expostos ao risco de uma formação baseada no personalismo, o que pode se manifestar de diversas formas: desde a apropriação da instituição por um analista que pretende regular seu funcionamento até aquele analista que se arvora detentor e guardião da pureza da teoria.

Estamos falando da lógica discursiva que domina a linguagem usual e gira em torno do amor ao saber (posição fálica). Tal posição é incompatível com o desejo de saber, pois se mostra avessa ao encontro com o real ao pretender preencher com o já sabido o que ainda não se sabe. Porém, como nos lembra Barbato (2008), o saber no discurso analítico não se configura como um fim, nem é vinculado a qualquer objeto que lhe forneça substância. Sua característica, em psicanálise, é possibilitar que os qualificativos que o sujeito atribui a si mesmo sejam convocados ao comprometimento e queda. Ou seja, temos uma convocatória à queda do saber que é subjetiva e, por isso, o saber em psicanálise mostra-se refratário à verdade.

Na perspectiva da psicanálise o saber, como inconsistente, é incapaz de transmitir-se sem resto. Essa proposição se aplica ao próprio saber psicanalítico (Lacan, 1956/2003; 1967/1998). Não estamos afirmando que a psicanálise recusa o saber, mas que exige que trabalhemos com ele de forma peculiar. O que se exige não deriva da ideia de um saber absoluto, que afiançaria a verdade. É exatamente a falta de uma garantia última que dá ao saber sua inconsistência, como descompleto, e não incompleto. Ressalta-se, em psicanálise, o desejo de saber e as vias de acesso a este em detrimento do saber e de seu conteúdo. Temos, assim, uma inversão de vetores clínicos, já que não estamos falando de um método aplicado, mas de uma clínica teorizada e formalizada.

O paradigma hegeliano de desejo nos ajuda a tecer algumas considerações sobre a posição de alguns analistas perante suas instituições. Hegel, no capítulo IV da Fenomenologia do espírito, se interessa pelos conflitos aos quais os homens estão expostos.

Tais conflitos são impulsionados pelo desejo de reconhecimento. De acordo com Hegel (2008), para tornar-se humano o desejo implica reconhecimento, que leva a uma ação. Garcia-Roza (1991) nos lembra que é do ato com o objetivo de reconhecimento que se originará a autoconsciência, ou seja, para ser reconhecida a autoconsciência precisa do outro, daí a luta por puro prestígio que vai caracterizar a dialética do senhor e do escravo.

O reconhecimento inclui necessariamente um ato de confrontação de duas consciências que se pretendem humanas. Elas se reconhecem, para si mesmas e para a outra, ao converterem o que era uma certeza subjetiva em verdade objetiva. Porém temos um paradoxo: "Só há Eu verdadeiramente humano na relação com o outro, mas também esse Eu só se constitui na supressão do outro Eu" (Garcia-Roza, 1991: 143).

Entretanto, nessa luta a morte, apesar de possível, não é desejável, porque o senhor precisa do escravo para reconhecê-lo. O senhor não só ganha a luta, mas subjuga o escravo, tira sua autonomia. A posição do senhor é de quem domina e demanda reconhecimento. Não é necessário o senhor matar o escravo, porém é possível. É dessa possibilidade que vem o poder do senhor. Ele deve poupar-lhe a vida e destruir sua autonomia, deixando-o subjugado. É a posição do gozo, já que ele demanda o reconhecimento pela dominação. No entanto, é o escravo que está no avesso do gozo, ou seja, na angústia gerada pela ameaça da sua total eliminação pelo senhor. O senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa. Portanto, ele se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa (Hegel, 2008). O escravo mediatiza a coisa (o saber psicanalítico) e a alça à condição de objeto de desejo. O senhor depende do escravo para gozar da coisa. Assim, o fundamento da dominação é, antes de tudo, um desejo. É esse que funda o movimento de reconhecimento.

Contudo, a verdade do escravo não está no senhor. Está nele próprio. Ele efetiva sua independência pelo trabalho. Já o senhor efetiva sua independência pela dominação. Agora o escravo se coloca na posição do senhor não pela dominação, mas pelo trabalho. O senhor depende do escravo para obter seu gozo. É nesse sentido que a concepção psicanalítica de desejo segue o modelo hegeliano, ou seja, o desejo do desejo do outro. Lembramos que a concepção de desejo em Lacan tem seu primeiro tempo em Hegel. Entre 1953 e 1957, por intermédio da ideia hegeliana de reconhecimento, Lacan introduz o termo demanda. Essa é endereçada a outrem e incide sobre um objeto desprovido de essência, pois a demanda é demanda de amor. O desejo nasce da distância entre a demanda e a necessidade. Ele incide sobre uma fantasia, isto é, sobre o outro imaginário. Com isso Lacan retira a substância desse outro, ressignificando o termo reconhecimento e sua função.

Lacan vai alçar o desejo a uma posição central em psicanálise. Na vertente lacaniana o desejo é uma negatividade e não alguma coisa que concederá contentamento. Quanto ao discurso em suas relações com o desejo, temos como referência que sua característica está naquilo que pretende dominar. Porém Lacan (1969-1970/1992: 69) nos apresenta um paradoxo ao afirmar que "só o falo pode ser feliz, não o portador do dito cujo". O portador do falo se empenhará em fazer seus parceiros aceitarem essa privação, em nome de todos os seus esforços de amor e promessas de favores. A presença do falo reaviva a ferida da privação. Tal ferida, então, não pode ser compensada pela satisfação que seu portador teria ao apaziguá-la. Pelo contrário, ela é reavivada por sua própria presença, pela presença daquilo cuja nostalgia causa ferida. Estamos falando do reconhecimento imaginário, no qual o portador do falo, a partir desse atributo, se arvora a manipular o outro a partir da promessa fálica de obturar sua falta.

Em seu seminário intitulado O avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992) designa o "discurso do mestre":

 

 

Ao dialogar com Hegel, coloca S1 (o significante mestre) como o "senhor" e mostra a suposta identidade entre o sujeito e o S1. O mestre tenta sustentar-se no mito ultrarreduzido de ser igual ao seu próprio significante. S2 (o saber) aparece como o "escravo". O que se produz nessa relação é gozo. É disso que Lacan fala ao notar a facilidade de gozo do escravo. A verdade do mestre é que ele é castrado. O escravo tem algum saber sobre a castração do senhor, pois o no lugar da verdade mostra que não existe essa identidade ôntica, que o sujeito não é unívoco, mas dividido.

O discurso do mestre é o avesso do discurso do analista, que opera pela transferência e cujo pivô é o sujeito suposto saber. O discurso do analista se opõe à sugestão que opera por meio do saber e oblitera a transferência.

Segundo Jorge (2002: 30), "operando pelo saber, a sugestão impede a transferência do saber inconsciente". Ao impedir a produção de saber, o discurso do mestre incorpora a função alienadora do significante, à qual o sujeito está assujeitado. O mestre não se preocupa com o saber, contanto que tudo funcione e seu poder seja mantido.

Podemos entender que o mal-estar na instituição é sustentado pelo discurso do mestre, justamente o discurso que repousa sobre a ilusão do saber completo e da explicação definitiva. Lembremos que Freud (1930/2010), ao analisar o sofrimento social, afirma que as instituições criadas por nós não forneceriam bem-estar e proteção para todos. Em contrapartida, as instituições se apresentam como um produto de nossa cultura, que tem a função de regulamentar as relações entre os sujeitos. Elas tentam regular a hostilidade que toda cultura deve combater, tentando substituir o poder do indivíduo pela comunidade. Contudo, o fracasso que encontramos na prevenção desse sofrimento nos faz lembrar que Freud (1930/2010) considera que a agressividade é elemento constitutivo do psiquismo.

No que concerne ao Outro, ao próximo propriamente dito, ele não me oferece referencial quanto ao que quer de mim, quanto ao seu bem-querer ou mal-querer. Temos assim o enigma do gozo do Outro, que, ao me concernir, pode ter como consequência ser totalmente diferente do meu bem (Julien, 1996). No que tange às instituições psicanalíticas e suas disputas fálicas, seja de cunho escolástico, como o domínio da obra de um autor de considerável complexidade, ou de reconhecimento social, como um psicanalista que possui uma clínica estabelecida, constatamos a questão: o Outro, em suposto gozo cabal, não me considera. Vivencio esse gozo como a intenção de me espoliar. Julien (1996) assevera que se trata de inveja que surge do olhar (invidia). Vejo no Outro um gozo que provoca meu ódio, porque vejo nele um privador e não um semelhante passível de identificação. As rivalidades na instituição podem nascer dessa suposição sobre o gozo do Outro. Isso nos aproxima da assertiva lacaniana de que: "A intrusão da psicanálise na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso - e não apenas o analítico - que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade" (Lacan, 1969-1970/1992: 74).

O sintoma surge no ponto de cisão e se constitui como satisfação substitutiva diante da perda de ser que o sujeito sofre com a entrada na linguagem (sujeito submetido ao significante). O sujeito, por ser falante e sexuado, defronta-se com a impossibilidade de que haja um saber padronizado e normativo sobre o sexo. Se pensarmos que a característica do sintoma é fazer da contingência um atributo existencial, podemos inferir que alguns psicanalistas, ao sucumbirem à demanda de amor, adotam uma posição personalista e, por consequência, não querem saber da castração. Assim, é possível presumir que, nas manifestações egocêntricas, a psicanálise é tomada como sintoma do analista. Ou seja, nesse contexto temos o analista ocupando o lugar de mestria.

Freud, no texto "O estranho" (1919/1996), nos fornece elementos para desenvolvermos essa ideia. Nessa obra ele fala que o semelhante (em nosso caso as sociedades psicanalíticas) é o outro da relação especular. Freud situa o núcleo central da estranheza no complexo de castração à medida que qualquer afeto que seja de um impulso recalcado transforma-se em ansiedade. Algo que indique seu retorno poderia, então, ser vivido como o assustador angustiante acrescido da peculiaridade do estranho.

Freud nos ensina ainda que o estranho aparece a partir do retorno de um conteúdo recalcado, qualquer que fosse seu afeto original. A estranheza se deveria ao retorno em si e à secreta familiaridade do fenômeno, indicando, portanto, não ser ele novo ou alheio à mente, pois apenas teria sido afastado pelo recalque.

O conceito de estranho é associado ao fenômeno do duplo. A ideia do duplo nos remete à projeção, ou seja, expelir para fora de si aspectos considerados intoleráveis. Eles poderão revestir outra pessoa, atribuindo-lhe aspectos malfazejos.

Nesse fenômeno persistem os efeitos da agressividade. Assim, o semelhante é segregador porque a imagem que vejo nele perpassa a minha. É segregador porque odeia ou não se quer ver. Porém o retorno do recalcado pode se manifestar na compulsão à repetição inconsciente e involuntária, levando à reprodução de ações e circunstâncias, retorno da mesma coisa, coincidências. Isso porque a compulsão à repetição fornece a impressão de estranheza ao evidenciar especialmente seu caráter de destino inescapável, prevalente até mesmo sobre o princípio de prazer. Assim, o estranho estaria inscrito em sua mensagem compulsiva e repetitiva. Esse modo de operar desperta a impressão mais que a própria situação repetida. O breve percurso histórico do rompimento nas associações psicanalíticas, anteriormente assinalado, nos aponta para esse fato.

Sobre esse aspecto, lembramos que a fratria entre alguns analistas traz consigo o ônus de estarem todos empenhados em seguir a miragem do líder, do ideal. Essa via de direcionamento dos excessos nos apresenta uma compensação característica da ambivalência dos laços sociais em questão: ou se volta contra o sujeito, sob a forma terrificante do supereu, ou se volta como ódio ao pai que é direcionado ao outro, instituindo a segregação. "A fratria entre psicanalistas cobra um alto custo, disseminando a intolerância contra os de posição divergente, de um lado, ou acirrando o olhar superegóico das instituições sobre o candidato em formação, de outro" (Martins & Poli, 2012).

Inferimos que a segregação pode se manifestar a partir do não reconhecimento pelos pares psicanalistas. Trata-se de um reconhecimento recusado pelo outro, suposto detentor do saber psicanalítico que se coloca em posição privilegiada devido à sua ascendência na árvore genealógica da psicanálise. Essa forma de reconhecimento recusada vem acompanhada do adjetivo impuro ou, em alguns casos, com a negação de que o outro seja psicanalista.

 

Conclusão: o desejo do analista como fundamento da fratria entre analistas

Nesses termos, podemos afirmar que, no decorrer da história das rivalidades entre as instituições de psicanalistas, os significantes da psicanálise foram enunciados com o objetivo de manter o poder de alguns psicanalistas em suas instituições.

A consideração de Lacan (1960-1961/1992: 371) de que "no próprio lugar que é o seu, o analista deve se ausentar de todo ideal do analista" é fundamental para nosso argumento. O autor nos aponta o fascínio dos objetos investidos narcisicamente, demarcando a diferença entre demanda, desejo e necessidade. Para ele, o desejo do analista se funda no resto, na identificação com a ilusão da imagem que lhe falta, cuja presença invisível lhe fornece o encanto.

O desejo do analista nos remete à sua responsabilidade na condução de uma análise. Se sua responsabilidade não está claramente delineada, o analista se arrisca a deixar-se envolver por um poder equívoco, que tem sinistras consequências, pois ele traz à baila a absorção da relação analítica por uma relação pautada na ordem social vigente, domínio por excelência no qual os homens exercem o poder (Safouan, 1985). Podemos afirmar que o sujeito que dribla a castração estaria por condição e ética fora do discurso analítico.

Precisar os termos poder e autoridade nos ajuda na apresentação de nosso argumento. A autoridade está alicerçada na competência e no prestígio alcançado pelo conhecimento. Portanto, a possibilidade de obediência da autoridade se faz através do reconhecimento pelo outro como aquele que possui um saber. O poder, por sua vez, está ancorado nas relações de direito, influência e força que refletem mais precisamente situações de execução, de cumprimento de determinações.

A responsabilidade do analista se faz presente no fato de que é sua escuta que funda o sujeito que se dirige a ele. Lembramos que o texto de Lacan "Situação da psicanálise e formação do analista em 1956" (1956/1998) se constitui numa crítica ao fato de a relação entre analistas estar organizada sob a forma de uma relação social alicerçada no poder - que consequentemente divide os sujeitos entre os mais fortes e os mais fracos, os superiores e os inferiores ou entre mestres e aprendizes.

A relação alicerçada no poder se faz presente também no ensino da psicanálise, o curriculum traz consigo a pretensão de uma profissionalização. Safouan (1985) faz alusão à metáfora lacaniana do "saber pré-digerido", no qual um ensino responde à demanda de aprender. O aspirante a psicanalista adquire conhecimentos comuns, porém tem sua ignorância enganada ao invés de se servir dela.

Essa relação pautada no reconhecimento imaginário se mostra perniciosa para as instituições psicanalíticas. Tal relação dispensa a palavra como mediadora da ação. Já o reconhecimento simbólico pressupõe uma palavra, um terceiro termo, que seria enunciado por aquele que se submete a uma lei universal e a apresenta como recebida de alhures. Estamos falando de uma posição de autoridade. Assim se posiciona a figura do Outro do Outro, à qual se acham remetidos os poderes da enunciação.

Servir-se da ignorância: eis uma questão fundamental para tornar-se analista. Numa análise didática o analisante não aprende a conduzir análises. Uma análise conduzida de forma adequada comporta uma passagem a analista daquele que no início era analisante. Tal mudança define-se pelo nascimento de um desejo de retomar no inconsciente de outrem a experiência realizada em seu próprio inconsciente.

Estamos falando do desejo do analista, que pode ser examinado como uma nova formação do inconsciente. Temos, assim, a acepção mais fidedigna da formação do analista. O desconhecimento dessa acepção desviou completamente as concepções correntes da relação entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão (Safouan, 1985). Nesse sentido, consideramos indispensável a afirmação lacaniana de que a psicanálise não deve, jamais, trabalhar a favor do serviço dos bens e de sua "racionalização moralizante". Nas palavras do autor:

A ética da psicanálise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação do que chamam serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão do que se chama de experiência trágica da vida. É na dimensão trágica que as ações se inscrevem, e que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores (Lacan, 1959-1960/1988: 376).

É por meio do desejo do psicanalista, tomado aqui em sua proximidade com a experiência trágica da vida, que surge a possibilidade de uma ética sustentada no desejo e não em qualquer promessa ou ideal de felicidade, de cura ou de bem-estar.

Lacan, na "Proposição de outubro" (1967/1970), formaliza o desejo do analista como um luto, quer dizer, em termos da operação de privação. Fica claro que não se alude ao falo, que é precisamente a medida comum, comensurável dos objetos. Esses objetos supostamente comensuráveis, que carecem de medida comum, valem para cada sujeito em particular, indicam a inexistência de um bem supremo, universalizante, comum a todos os sujeitos.

Rabinovich (2000) ressalta que se tornar objeto causa do desejo só pode acontecer com o sujeito quando o Outro o perdeu. Portanto, só na perda o objeto se relaciona com a função de causa em relação ao desejo. A identificação especular exclui a falta, exclui a castração, mascara a perda constitutiva do desejo. A partir da identificação especular não é possível aceder à posição do sujeito como causa do desejo, nem há modo de responder ao enigma do desejo do Outro.

Não percamos o fio de nossa discussão. Acreditamos que o eventual personalismo de certos psicanalistas nas instituições de formação seria um indicativo de sua dificuldade de se afastar da busca de reconhecimento pela posição de legítimo continuador e divulgador do legado freudiano. Posição que, apesar de revelar um sintoma do analista, é socialmente valorizada, inclusive em termos de visibilidade social e dividendos financeiros.

Como exemplo, podemos citar a crise do Instituto Brasileiro de Psicanálise, envolvendo Kemper e Burke. Transcreveremos na íntegra o resumo do episódio relatado por Mário Pacheco de Almeida Prado, citado por Perestrello (1987: 42):

Em abril de 1951 houve uma grande crise no Instituto Brasileiro de Psicanálise, quando seu diretor descobriu que o doutor Kemper havia transformado sua mulher em analista didata, mandando para ela pacientes e candidatos à formação psicanalítica. Foi lhe exigido estancar o trabalho da senhora Kemper, e como Kemper não aceitasse essa exigência foi eliminado do Instituto. Kemper não se defendeu com dados realistas e sim acusou o doutor Burke de ser louco e estar dominando com sua loucura seus analisandos. Episódio muito doloroso para todos.

O desfecho dessa cisão, conforme apontamos no início deste manuscrito, se faz com Kemper fundando seu próprio grupo e oferecendo supervisão para vários aprendizes de psicanálise, inclusive alguns que eram filiados a outros grupos. Posteriormente, na disputa com outros grupos do Rio de Janeiro pelo reconhecimento da IPA, o grupo de Kemper se aproximou estrategicamente de São Paulo e foi reconhecido em 1953. Nesse exemplo temos alguns elementos importantes a serem considerados: apropriação da instituição por um de seus membros, que indica sua esposa como didata, luta pelo reconhecimento de legítimo continuador do legado freudiano via aceitação pela IPA e, obviamente, os dividendos financeiros que tal conquista acarreta com convites para seminários, procura por supervisão de aprendizes de psicanalista.

Sabemos que uma das características do sintoma é fazer laço social e produzir gozo. Conjecturamos que uma das consequências desse sintoma é produzir segregação entre analistas a partir da divisão em grupos que se consideram mais legítimos que outros no quesito possibilidade de dar continuidade ao trabalho freudiano. Porém uma questão insiste: não seria uma atribuição legítima dos analistas guardarem certa distância da moral vigente, desfusioná-la das exigências sociais de obediência e sucesso, possibilitando um acolhimento do jovem analista?

O analista não responde a partir da posição de mestre, daquele que sabe, mas da posição de não-saber que lhe é própria. Ele ocupa, na aparência, o lugar de objeto a, causa de desejo, a partir do qual é possível a associação livre. O saber (S2), ao estar no lugar da verdade, é um enigma. Com isso podemos afirmar que o discurso do analista produz outro S1, separado do gozo, que não seja do estilo do Pai e seu semblante, mas do estilo do Real: do que ele deixa em branco.

 

 

A experiência analítica é, para Lacan, "uma experiência de discurso", uma experiência da ordem do saber, que liga S1 a S2. O saber é posto na berlinda pela psicanálise e nos impõe um dever de interrogação. O discurso do analista permite que os outros discursos possam ser isolados como tais. Essa afirmação reconhece que todo discurso é um meio de gozo e pode servir como aparelho de poder.

O desejo do analista e seu corolário, o discurso do analista, possibilitariam a transmissão da psicanálise e o liame social entre analistas. A esse respeito Lacan (1967/2003) afirma que há um real na formação do analista e que as sociedades se fundam sobre esse real. Em nosso incipiente percurso histórico notamos uma evasão dos analistas do campo da psicanálise, particularmente nas instituições de formação.

Isso nos leva a conjecturar que nem sempre os analistas querem saber da castração. Talvez por isso a presença significativa do discurso universitário em sua formação. Discurso que não lhes é próprio, mas que se propõe driblar a castração a partir de uma sustentação fundamentalmente burocrática que valoriza os títulos acadêmicos. Para isso, o discurso universitário valoriza aquele agente que se apresenta portando títulos, independente do envolvimento do sujeito na construção do saber. O discurso universitário sustenta e convoca a mestria e não necessariamente uma construção de saber que considere a inconsistência do real, castrando a lógica fálica. Contudo, gostaríamos de deixar em aberto uma questão: seria possível pensarmos um laço social entre analistas fundado na castração, no objeto a?

Retomamos uma preocupação de Lacan com as pretensas sociedades que fazem da análise uma agregação. Lacan defende que há saber no real e que, portanto, só existe analista se este saber do real lhe advier. Estamos nos aproximando da noção cara a Lacan do desejo de saber ligado à produção, à invenção e não ao seu consumo.

Conforme infere Jorge (2006), a noção de transferência de trabalho estaria vinculada ao desejo de saber, pois ela supõe uma transferência direcionada do trabalho do saber inconsciente. Estamos bordejando a questão da contribuição do saber e do analista para o futuro da psicanálise.

Se considerarmos essa possibilidade, faríamos uma aposta que o desejo do analista convoque a verdade de qualquer discurso na direção de S2 - saber metonímico, não-todo. Porém temos que considerar um fato: as instituições que agregam psicanalistas não funcionam exclusivamente no discurso do analista. Assim, acreditamos que, nas instituições de formação de analistas, devemos estar advertidos sobre o risco do afastamento do objeto a da posição de dominante e suas consequências para o laço social entre analistas.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondencia
Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br

Artigo recebido em: 8 de janeiro de 2014
Aprovado para publicação em: 9 março de 2014

 

 

* Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com Pós-doutorado pelo Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (IPUSP). Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).